Fã de Iron Maiden é chato, mas reclama com razão quando diz que os repertórios de shows tiveram pouca mudança em turnês recentes. Por um lado, compreende-se que algumas músicas precisam ser tocadas. Por outro, sabe-se que a banda de heavy metal fundada por Steve Harris em 1975 está em outro patamar e tem autoridade, sim, para fazer diferente.
Por isso, a tour “The Future Past”, que se encerra no Brasil neste fim de semana com dois shows esgotados em São Paulo, gerou tanta repercussão logo em seu anúncio inicial. Além de seguir promovendo o álbum mais recente, “Senjutsu” (2021), o grupo retoma várias canções de “Somewhere in Time” (1986), disco criminosamente ignorado por seus autores ao longo dos anos. E para compor o set, ainda rolaram alguns resgates, a exemplo de “The Prisoner” e “Can I Play With Madness?” — e consequentemente cortes, como “The Number of the Beast”, “Hallowed Be Thy Name”, “Run to the Hills” e “2 Minutes to Midnight”. Histórico, para dizer o mínimo.
Seria uma turnê para fã nenhum botar defeito… se Nicko McBrain não tivesse sofrido um mini-AVC e comprometido sua performance. O próprio baterista admitiu isso e pediu desculpas. Como se precisasse. Não apenas por ser um dos gigantes em todos os tempos de seu instrumento no heavy metal, mas, também, por ter encontrado soluções inteligentes para adaptar o repertório às suas limitações. Com justiça, foi ovacionado além da conta por duas vezes, ao fim do set convencional e do bis, quando se encaminhou à frente do palco para distribuir baquetas e peles de bateria.
Dito isso, dá tempo de corrigir o início do parágrafo anterior: é uma turnê para fã nenhum botar defeito. Pelo menos o brasileiro. Na primeira das duas apresentações no Allianz Parque, nesta sexta-feira (6), McBrain não deixou dever em nada. Nem Bruce Dickinson, que, aos 66 anos e tendo superado um câncer na língua, canta uma barbaridade com tudo no tom original. Nem qualquer outro integrante ou membro da equipe técnica — sim, porque som e visual estavam impecáveis.
Deu tão certo que Dickinson, um pouco mais falante que o habitual de outras tours, sentiu-se confortável para confirmar o retorno do Maiden ao Brasil com sua próxima turnê — “Run for Your Lives”, que celebra os 50 anos de banda — “talvez daqui uns dois anos ou até antes”. A ver.
Volbeat
Se desta vez não teve show do Iron Maiden em outras cidades além de São Paulo, ao menos acertou-se e muito na atração de abertura. O Volbeat, banda dinamarquesa que vai do rockabilly ao thrash metal sem abdicar das melodias grudentíssimas, foi escalado para abrir as duas apresentações — e só no Brasil, visto que na Colômbia, Chile e Argentina, a Donzela de Ferro contou com outros nomes no apoio.
Michael Poulsen (voz e guitarra), Jon Larsen (bateria) e Kaspar Boye Larsen (baixo), além do músico de turnês Flemming C. Lund (guitarra) na vaga deixada por Rob Caggiano, fizeram um show tão correto que conseguiram driblar dois dilemas: a falta de telões laterais à sua disposição (ligados apenas para a atração principal) e o som abafado da bateria, com bumbo bem mais alto. Aconteceu justo com Larsen, que é o coração desta banda.
Mas tudo bem. Mesmo sem realizar show há mais de um ano (a turnê do álbum “Servant of the Mind” foi concluída em agosto de 2023), o Volbeat, que já excursiona como headliner e lota grandes espaços na maior parte do planeta, está acostumado com palco.
Do início ao fim, Poulsen fez de tudo para interagir com a plateia enquanto trajava uma camiseta com a capa do disco “Beneath the Remains” (1989), do Sepultura. Clamou por palminhas, cantou em três pedaços diferentes do palco (centro, esquerda e direita, com pedestais montados só para ele), pediu lanternas de celular (em “For Evigt”), solicitou punhos em riste e fez questão de apresentar a maioria das canções do setlist, ciente de que vários ali não conheciam o grupo, tão bem-sucedido lá fora.
Ok, o frontman pisou na bola ao dizer que esta era a primeira vez no Brasil. Houve uma passagem anterior, em 2018, como parte do Lollapalooza — além de uma visita marcada para o malfadado festival maranhense Metal Open Air que, como sabemos, não aconteceu. Mas se esse é o nível do vacilo, estamos bem demais.
A plateia pareceu ter gostado mais quando o Volbeat apostou em sons mais pesados. A abertura com “The Devil’s Bleeding Crown”, a sensacional “Seal the Deal” — que encapsula todos os elementos do som dos caras — e a “metalliquesca” “Shotgun Blues” arrancaram reações mais enérgicas, assim como o encerramento “Still Counting”, faixa mais popular. A diretíssima “Wait a Minute My Girl”, com direito a solos pré-gravados de piano e sax, e a diferentona “Sad Man’s Tongue”, que parece transformar Johnny Cash em heavy metal, também se saíram bem.
Já canções mais melódicas como “Lola Montez” e “Fallen”, nem tanto. Soam melhores nos discos; ao vivo, se beneficiariam de uma dinâmica de apoio vocal que pudesse balancear a performance característica demais e variável de menos de Poulsen. Nada, porém, que afetasse tão negativamente uma apresentação que com certeza gerou muitos fãs, além de ter agradado uma parcela notória que, sim, conhecia o Volbeat.
Repertório — Volbeat:
Gravação: “Born to Raise Hell” (Motörhead)
1. The Devil’s Bleeding Crown
2. Lola Montez
3. Sad Man’s Tongue (com trecho de “Ring of Fire”, de Johnny Cash)
4. A Warrior’s Call
5. Black Rose
6. Wait a Minute My Girl
7. Shotgun Blues
8. Fallen
9. Seal the Deal
10. The Devil Rages On
11. For Evigt
12. Still Counting
Gravação: “Trust Me” (Brad Fidel)
Iron Maiden
Show do Iron Maiden se inicia antes de começar. Sete minutos antes das 21h, as caixas de som passaram a reproduzir “Doctor Doctor”, clássico do UFO, uma das maiores influências de Steve Harris e companhia. Ainda dá tempo de executar o tema do filme “Blade Runner” (1982), inspiração para capa e “conceito” de “Somewhere in Time”.
A introdução de “Caught Somewhere in Time” é pré-gravada. Steve Harris, Bruce Dickinson, Nicko McBrain e os guitarristas Dave Murray, Adrian Smith e Janick Gers só entram quando a bateria oferece sua primeira batida. Catarse. Explosão. É como se cada um ali presente aguardasse por esse momento desde setembro de 2022, ocasião da visita anterior.
Ainda que sensacionais, “Caught Somewhere in Time” e a seguinte “Stranger in a Strange Land” — com um dos melhores solos da carreira de Smith — não eram tocadas ao vivo respectivamente desde 1987 e 1999. Mesmo assim, a plateia as cantou como se não fossem lados B. Essas e outras faixas de “Somewhere in Time”, trabalho queridíssimo pela gigantesca maioria dos fãs, acabaram recebidas com um carinho descomunal.
Também foi o caso de “The Writing on the Wall”, primeira representante de “Senjutsu” que parece já ter virado clássico. Sua sonoridade quase hard rock cativa e, curiosamente, permite associação com “Somewhere in Time”, de estética menos pesada que o habitual do Maiden. Mais duas do novo álbum foram emendadas para reações não tão enérgicas, mas ainda assim pulsantes: “Days of Future Past”, talvez a menos legal de todo o set, com palminhas logo na abertura; e “The Time Machine”, de riff cantarolável, mobilizando pulos após o refrão.
A partir de “The Prisoner”, incluída nos setlists pela primeira vez desde 2014, os panos de fundo no telão central começam a ser alterados faixa por faixa. Nesta, rola até execução em vídeo de trecho do programa de TV homônimo que inspirou a composição. Se havia qualquer preocupação com a performance de Nicko McBrain, aqui ele enterra todas as dúvidas. O baterista nunca a tocou exatamente igual ao saudoso e inimitável Clive Burr, mas não faz feio. Recentemente, passou até a tocá-la de modo menos acelerado, na batida da gravação original.
Legado que não se apaga
Ainda que longa em demasia, a folk metal “Death of the Celts” cativa por toda a sua ambientação temática na cor verde, em referência aos celtas, e por um discurso prévio bastante agregador por parte de Bruce Dickinson. Após perguntar se havia alguém da república da Irlanda na plateia — e não receber qualquer resposta —, o vocalista destaca a inspiração da letra: tentaram exterminar os celtas, primeiro povo a acreditar em vida após a morte, e ainda bem que não conseguiram, pois, questões humanas à parte, sua cultura e seu legado não foram apagados. Ele aponta que buscaram fazer o mesmo com os judeus, felizmente também havendo fracasso.
Do complexo ao simples: a irresistível “Can I Play With Madness?” fez geral cantar e se impressionar com seu instrumental tocado com finesse. Por sua vez, “Heaven Can Wait” empolgou além do esperado e ficou marcada por uma batalha de armas entre Dickinson e o Eddie de “Somewhere in Time”, que reapareceu após ter surgido em “Stranger in a Strange Land”.
Em meio a tantos resgates, o Maiden tem presenteado os fãs nesta turnê com uma estreia: “Alexander the Great”. Inexplicavelmente, o épico do álbum de 1986 nunca havia sido tocado ao vivo. Valeu a espera. Se em outros países a plateia repetiu o entusiasmo brasileiro ao ouvi-la, a faixa que narra a vida e as conquistas de Alexandre, o Grande, Rei da Macedônia não vai sair mais do repertório.
De uma canção que exala frescor a outra que está batidíssima. Mas funciona. Nenhum fã de longa data do Iron Maiden ouve “Fear of the Dark” em casa, mas no show oferece experiência única. É quase obrigação pular ao som dos grooves de McBrain e esgoelar o refrão junto de Dickinson, que lança seu primeiro e único “Scream for me São Paulo” antes de introduzir “Iron Maiden”, canção que dá nome à banda e é de longe a mais executada ao vivo de sua história. Ambas tiveram breves “atravessadas” no tempo por parte de Bruce. Ninguém ligou. Compensava mais prestar atenção na divertida batalha travada entre Janick Gers e o Eddie na versão “Senjutsu” na segunda música citada.
Bis pouco convencional — mas de muito bom gosto
Até o bis da “The Future Past” foge do óbvio. Começa com “Hell on Earth”, possivelmente a melhor música de “Senjutsu”. Dona de climática e dinâmica próprias, a canção tem, curiosamente, as únicas falhas mais notórias de execução: Janick Gers sofrendo para encaixar o tempo certo na introdução e conclusão, Nicko McBrain precisando adaptar as linhas que ele próprio gravou três anos atrás e Bruce Dickinson tendo raros momentos de sumiço de voz. Nada disso afeta a experiência literalmente quentíssima, visto que labaredas surgem do palco durante boa parte da canção de 11 minutos.
“The Trooper” é a parte mais convencional do encore e, como esperado, faz todo mundo cantar junto do começo ao fim. Trata-se de outra canção que Nicko precisa adaptar, mas só ouvidos mais treinados notam. Afinal de contas, há outros elementos para se prestar atenção: os vocais impressionantes de Bruce, riffs e solos de guitarra históricos e uma linha de baixo que ajudou a definir como se deve tocar o instrumento no heavy metal.
Tudo se encerra de um jeito curioso com a envolvente “Wasted Years”, em geral não utilizada como último número. Faz sentido quando se analisa a mensagem do refrão: “não perca tempo em busca daqueles anos perdidos, […] você está vivendo seus melhores anos”. Um recado direto não apenas aos críticos de plantão, como ao próprio conceito da turnê “The Future Past”, cujo repertório começa divagando sobre viagem no tempo. Se “Caught Somewhere in Time” retrata alguém que foi enganado por essa máquina que transporta pelos anos, “Wasted Years” é direta em afirmar: viva o presente.
O tempo está do seu lado?
Tempo se mostra uma questão sensível para um Iron Maiden que concluiu seu show fazendo promessas de um retorno “para daqui dois anos” e um Nicko McBrain ovacionado por conseguir se apresentar tão bem após superar problemas de saúde. Como ele, Bruce Dickinson também venceu uma doença grave. Nossos ícones do heavy metal não são mais garotos e sabem disso.
Havia até quem teorizasse que a já citada “Hell on Earth” seria uma mensagem de despedida em “Senjutsu”. Talvez seja, visto que o grupo não tem planos de lançar mais um álbum.
Até agora, porém, não há sinais de que o Maiden vai pendurar as chuteiras. Notou-se neste show de sexta-feira (6), o antepenúltimo da especialíssima turnê “The Future Past”, que há tanto vigor físico — apesar dos pesares — e artístico a ponto de o sexteto fazer qualquer fã pensar: esses caras têm o tempo em seu favor.
Iron Maiden — ao vivo em São Paulo
- Local: Allianz Parque
- Data: 6 de dezembro de 2024
- Turnê: The Future Past
- Produção: Move Concerts
Repertório:
Gravação: “Doctor Doctor” (UFO) + “Blade Runner” (“End Titles”, trilha sonora)
1. Caught Somewhere in Time
2. Stranger in a Strange Land
3. The Writing on the Wall
4. Days of Future Past
5. The Time Machine
6. The Prisoner
7. Death of the Celts
8. Can I Play With Madness
9. Heaven Can Wait
10. Alexander the Great
11. Fear of the Dark
12. Iron Maiden
Bis:
13. Hell on Earth
14. The Trooper
15. Wasted Years
Gravação: “Always Look on the Bright Side of Life” (Monty Python)
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