Eric Clapton mostra seu propósito de vida a um lotado Allianz Parque

Guitarrista propaga distintas mensagens, todas positivas, em show marcado por altruísmo artístico e celebração ao blues

Por que, no alto de seus 79 anos, Eric Clapton ainda se mantém na ativa? Não apenas gravando — a ponto de ter lançado vários singles nos últimos anos e anunciado um álbum, “Meanwhile”, para 4 de outubro —, como também em turnê?

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Até pouco tempo, nem ele sabia muito bem a resposta para esta pergunta. Acreditava ser, simplesmente, por sua paixão pela música. Todavia, uma conversa com um velho amigo de Alcoólicos Anônimos o fez decifrar este mistério.

Em entrevista ao The Real Music Observer, ele conta:

“É o último dos 12 passos do meu programa de reabilitação, que diz: ‘tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades’. Meu amigo disse que era exatamente isso que eu estava fazendo: transmitindo a mensagem de paz, amor e compreensão da forma que considero certo — aí entra a minha consciência moral e dificulta —, mas é por isso que ainda estou aqui.”

O mencionado programa de 12 passos foi criado há quase um século como forma de auxiliar no tratamento do alcoolismo. Tamanha a eficácia, foi levado para todos os tipos de dependência química e compulsões. E só funciona em comunhão: as pessoas precisam se reunir em grupos para discutir seus problemas e superações, bem como apoiar os demais.

Clapton nunca escondeu seus problemas com drogas e especialmente o álcool. Inclusive, tornou-se ativista na causa não apenas ao discutir o tema em inúmeras entrevistas, como também ao fundar em 1998 o Crossroads Centre. Localizado na ilha de Antígua, no Caribe, o espaço auxilia outras pessoas com o mesmo problema. O evento Crossroads Guitar Festival é promovido anualmente visando arrecadar fundos para a iniciativa.

Apesar da iniciativa louvável e do talento que rendeu tal comparação, Clapton nunca foi deus. Nem demônio, apesar das condenáveis declarações racistas — das quais afirma sentir vergonha — e, mais recentemente, negacionistas em relação à vacinação contra a covid-19. É apenas um músico que não quer parar. E quem o assistiu durante a turnê de quatro shows pelo Brasil — encerrada no último domingo (29) para um lotado Allianz Parque, em São Paulo — entende o porquê.

Convidado de peso

A ocasião pedia uma grande atração de abertura. Reeditando uma parceria vista no Brasil em 2011, Gary Clark Jr foi trazido para esquentar o público de Eric Clapton nesta turnê. Ainda que jovem para o mundo do blues rock, o americano de Austin, Texas, tem 40 anos, 23 deles dedicados a uma carreira de artista de gravação. Em carreira solo, lançou seis álbuns de estúdio — dois de forma independente e quatro pela gigante Warner —, lhe rendendo quatro prêmios Grammy em categorias de três gêneros distintos: blues, rock e R&B. Colaborou ainda com Alicia Keys, Foo Fighters, Childish Gambino e Tom Morello, além de ter dividido o palco com os Rolling Stones, Dave Matthews Band e o próprio Clapton.

O público, todavia, parecia não estar ciente de nada disso. O Allianz Parque ainda estava vazio quando, às 18h20, começou a tocar a introdução do show do guitarrista/cantor, “Turn It Up Give It Shrooms” (Stro Elliot). Três minutos depois, ele subiu ao palco junto de King Zapata (guitarra), Elijah Ford (baixo e sintetizadores), JJ Johnson (bateria), Dayne Reliford (teclados) e suas irmãs, Shawn, Savannah e Shanan (vocais de apoio) e executou uma longa versão de “Maktub”, faixa de seu novo álbum, o ligeiramente experimental “Jpeg Raw” (2024).

Não foram calorosas as reações. A situação melhorou conforme o set avançava, inicialmente com o blues uptempo “Don’t Owe You a Thang” e a arrastadinha “When My Train Pulls In”, referenciando alguns de seus primeiros trabalhos. A primeira chamou atenção por Johnson segurar um instrumento de percussão (aparentemente um chocalho) acoplado à sua baqueta direita. E ambas se destacaram por trazer Clark Jr sem palheta e Zapata cuidando dos solos — apesar do protagonista da noite tomar para si os holofotes na segunda canção citada, com um solo sem qualquer distorção e fugindo de escalas mais óbvias do gênero.

Mais dramática, “This is Who We Are” é mais uma de “Jpeg Raw” a aparecer no setlist e reforça a diversidade do som de Gary: tem blues, tem rock, tem R&B e tem até uma pontinha de hip-hop no groove e na vocalização do verso. “What About the Children”, gravada ao lado de Stevie Wonder no mesmo novo disco, vai na contramão ao oferecer uma melodia aconchegante.

O groove curiosamente sensual de “Bright Lights”, com final arrebatador, e o conforto harmônico do número conclusivo “Habits”, cujo dedilhado inicial chega a lembrar “Tempo Perdido” (Legião Urbana), encerram o set deixando no Allianz Parque vários novos fãs em potencial. Gary Clark Jr é um dos gigantes do blues contemporâneo — a ponto de transcender o gênero — e, como seu trabalho musical é formidável, provavelmente conseguiria ainda mais público se ao menos tentasse ser um pouquinho mais “frontman”, interagindo mais com a plateia. Mas talvez ele nem queira isso.

Gary Clark Jr — repertório:

  1. Maktub
  2. Don’t Owe You A Thang
  3. When My Train Pulls In
  4. This is Who We Are
  5. What About the Children
  6. Bright Lights
  7. Habits

O show que Eric Clapton quis nos dar

No alto de seus 79 anos, Eric Clapton sabe, a essa altura do campeonato, que nunca foi um grande compositor. À Guitar World, em 1998, admitiu que, até então, não criava mais do que duas ou três músicas para seus álbuns porque não queria “se revelar”.

Pudera. O guitarrista/cantor teve uma vida repleta de dilemas. Aquele que mais formou sua personalidade e trajetória está relacionado à sua criação: cresceu pensando que sua mãe era sua irmã e os avós eram seus pais. Jamais conheceu o pai, que foi enviado para a Segunda Guerra Mundial antes de seu nascimento e após isso retornou para o Canadá, seu país natal. Alguém com história tão conturbada certamente terá dificuldade para revelar um pouco de si. Se isso afeta seu processo de composição, aí é outra história.

Ciente de suas limitações como criador — e de sua capacidade como intérprete —, Eric tem montado setlists cada vez mais apoiados em canções geradas por outros. Das 17 tocadas no último domingo (29) para uma plateia sold-out, nove são releituras, ainda que algumas tenham ficado mais populares em suas versões. Outras duas, do Cream, são parcerias e parecem trazer mais de seus colegas.

Diante disso, quem esperava ouvir “Layla”, “Wonderful Tonight” ou o também cover de “I Shot the Sheriff” (Bob Marley and the Wailers) pode ter se decepcionado. Tais canções não são tocadas ao vivo desde o ano passado e, sinceramente, fizeram pouca falta. Em contrapartida, rolaram alguns resgates para o setlist atual. A saber:

  • “I’m Your Hoochie Coochie Man”, cover de Willie Dixon, está presente na turnê 2023-2024 após uma ausência de duas décadas;
  • “Change the World”, originalmente interpretada por Wynonna Judd e incluída na trilha sonora do filme “Fenômeno” (1996), foi acertadamente retomada para a tour sul-americana após 20 anos fora dos setlists;
  • “Old Love” voltou ao repertório do continente encerrando um hiato iniciado em 2011, curiosamente a última visita de Clapton até então — ele veio também em 1990 e 2001.
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Pode ainda ter gerado controvérsia entre alguns fãs o tamanho do set acústico, já tradicional nos shows de Clapton. Normalmente composto por quatro ou cinco canções, o momento teve sete músicas em ambas as noites em São Paulo (que contaram com o mesmo repertório) e oito — quase 50% do concerto — em Buenos Aires.

Mas este foi o show que Eric quis nos dar. E para os atuais objetivos de soar mais blueseiro (sem abdicar dos momentos pop) e priorizar ainda mais as improvisações, deu certo.

Eletroacústicolétrico

Diante de uma cenografia extremamente simples e inspirada na margem sul do rio Tâmisa, importante centro cultural de Londres — onde ocorreu a performance que inspirou, por exemplo, “Sultans of Swing” do Dire Straits — Eric Clapton subiu ao palco com surpreendentes quatro minutos (!) de atraso. Não houve qualquer suspense: quase camuflado por um boné, cachecol e algumas roupas de frio por baixo, o inglês chegou tocando ao lado de Doyle Bramhall II (guitarra), Nathan East (baixo e voz), Chris Stainton (piano e teclados), Tim Carmon (órgão e teclados), Sonny Emory (bateria) e Sharon White e Katie Kissoon (vocais de apoio).

Uma breve introdução antecede “Sunshine of Your Love”, clássico do Cream agora tocado de forma menos pesada. O blues canastrão “Key to the Highway”, original de Charles Segar e regravada pelo Derek and the Dominos, e a tradicionalíssima “I’m Your Hoochie Coochie Man” (Willie Dixon), ganharam solos não apenas de Clapton, como também de Stainton, Carmon e Bramhall II. Os responsáveis pelas teclas foram muito aclamados. “Badge”, outra do Cream composta ao lado de George Harrison, foi uma das melhores do set e pareceu surpreender muitos que não a conheciam — e pensavam que havia acabado em suas pausas.

O momento acústico se dá de forma corajosa com “Kind Hearted Woman”, de Robert Johnson. Pouquíssimos artistas teriam coragem de tocar sozinho no violão, diante de um estádio abarrotado de gente, uma canção composta em 1936. Eric não só o fez, como abriu o set desplugado desta forma. Do blues raiz, o guitarrista seguiu para fase mais easy-listening com “Running on Faith”, trazendo solo de Doyle Bramhall II que soa como lap steel, mas é guitarra com slide mesmo, e o já mencionado acerto no resgate da açucarada “Change the World”.

Tocada em outras praças, a inédita “The Call” não marcou presença em São Paulo. “Nobody Knows You When You’re Down and Out”, cover de Jimmy Cox e também regravada pelo Derek and the Dominos, antecedeu a participação do brasileiro Daniel Santiago, violonista de história entrelaçada com a de Eric em anos recentes, para outra nova sequência inclinada ao pop: “Lonely Stranger”, “Believe in Life” e “Tears in Heaven”, canção de história trágica responsável pelas reações mais calorosas da noite. Não seria absurdo pensar em Santiago como membro efetivo da banda de Clapton, visto que seu violão de náilon acrescentou tempero diferente às canções.

A etapa final do set elétrico, ocupando quase uma hora ao todo, reserva alguns dos momentos mais inspirados do protagonista e de sua banda. A funky “Got to Get Better in a Little While”, outra dos tempos de Derek and the Dominos, tem solo de bateria de Sonny Emory como destaque. Já a melancólica “Old Love”, inspirada por Pattie Boyd já após o fim do casamento com Clapton, arrancou do guitarrista seus momentos mais inspirados. O homem solou tão bem que saiu do palco e retornou do nada com luvas.

“Cross Road Blues”, de Robert Johnson e parte do repertório do protagonista da noite desde o Cream, é tocada aqui em versão mais lenta e com solos também dos dois tecladistas e de Doyle Bramhall II. A dinâmica se repete em “Little Queen of Spades”, canção do mesmo autor, e novamente os responsáveis pelas teclas arrancam as reações mais entusiasmadas.

“Cocaine”, criação do saudoso J.J. Cale — cuja entrada ao Rock and Roll Hall of Fame é defendida por Clapton — encerra o set regular com mais improvisações para o breve bis com “Before You Accuse Me” (Bo Diddley) encerrar a noite. Neste número derradeiro, não há a participação de Gary Clark Jr como nas outras apresentações, mas tem-se Daniel Santiago de volta ao palco e a agora tradicional guitarra com pintura da bandeira da Palestina, região com apoio declarado de Eric em meio ao conflito com o Estado de Israel. Esta, aliás, pode ser a última imagem do inglês no Brasil caso ele não retorne mais aos palcos nacionais — apesar de um fã na pista premium ter tentado chamar atenção com uma bandeira de Israel justo no momento em questão.

Mesmo com o curioso episódio acima relatado, fica a impressão de que toda crítica a Clapton enquanto pessoa e qualquer eventual reclamação sobre repertório se perderam em meio aos primeiros solos de guitarra ou de teclados da noite. É o poder da boa música. Isso ajuda a explicar por que Eric segue se apresentando.

Sua continuidade nos palcos não apenas serve a um propósito, como também propaga mensagens distintas. Mostra que há vida após a recuperação do vício. Estabelece que altruísmo nunca é demais com tanto espaço dado a praticamente todos os seus músicos de apoio — e ainda a um convidado brasileiro. Enfatiza, por meio das canções, como reflexões e experiências de vida dele e dos artistas homenageados podem servir para os outros. Evidencia como a psique humana pode ser complexa, dos acertos aos erros. E mostra como não existe idade para se deixar de trabalhar com algo que gosta e ainda faz tão bem.

Não deixe de conferir:

Eric Clapton — ao vivo em São Paulo

  • Local: Allianz Parque
  • Data: 29 de setembro de 2024
  • Turnê: The Americas Tour
  • Produção: Move Concerts

Parte 1 — Elétrico

  1. Sunshine of Your Love (Cream)
  2. Key to the Highway (Charles Segar)
  3. I’m Your Hoochie Coochie Man (Willie Dixon)
  4. Badge (Cream)

Parte 2 — Acústico

  1. Kind Hearted Woman Blues (Robert Johnson)
  2. Running on Faith
  3. Change the World (Wynonna Judd)
  4. Nobody Knows You When You’re Down and Out (Jimmy Cox)
  5. Lonely Stranger (com Daniel Santiago)
  6. Believe in Life (com Daniel Santiago)
  7. Tears in Heaven (com Daniel Santiago)

Parte 3 — Elétrico

  1. Got to Get Better in a Little While (Derek and the Dominos)
  2. Old Love
  3. Cross Road Blues (Robert Johnson)
  4. Little Queen of Spades (Robert Johnson)
  5. Cocaine (J.J. Cale)

Bis

  1. Before You Accuse Me (Bo Diddley)

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Igor Miranda
Igor Miranda
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

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