Por que “O Senhor dos Anéis” virou referência para a direita na Itália

Tendência de associar obra de J.R.R. Tolkien adaptada ao cinema a movimento político começou ainda nos anos 1970

J.R.R Tolkien, o renomado autor de “O Senhor dos Anéis”, ganhou uma exposição em sua homenagem na Itália. No entanto, a mostra se tornou motivo de polêmica no país por conta da associação dos livros do escritor — que inspiraram filmes de sucesso — com a direita política italiana.

Conforme observado pela BBC, em novembro passado, a Galeria Nacional de Arte Moderna e Contemporânea, que fica em Roma, colocou em cartaz a exposição “Tolkien: Homem, Professor e Autor”. A iniciativa é dedicada à vida e trabalhos do escritor britânico.

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Até aí, nada demais. No entanto, a mostra se tornou motivo de polêmica após muitos descobrirem que ela é mantida pelo governo do país – hoje comandado pela primeira-ministra Giorgia Meloni, que pertence ao Fratelli d’Italia, partido classificado como sendo de extrema direita.

A própria Giorgia Meloni é uma grande admiradora dos trabalhos de Tolkien, autor falecido em 1973, e chegou a declarar que considera “O Senhor dos Anéis” um “livro sagrado”. Além disso, revelou em sua autobiografia que ela e colegas do chamado Movimento Social Italiano – fundado e comporto por veteranos fascistas – gostavam de se vestir como os personagens da saga.

Como consequência, a exposição gerou controvérsia no país. Afinal, seus críticos acreditam que, por ser mantida pelo governo, há motivações políticas.

Tendência antiga

Não é de hoje que a direita italiana endossa “O Senhor dos Anéis”: acredita-se que tudo começou já nos anos 1970, graças a influência de alguns filósofos do país. Um deles, chamado Elémire Zolla, sugeria a leitura da obra como uma espécie de luta do progresso contra a tradição.

Para se ter ideia disso, em 2002, o político Basilio Catanoso – hoje deputado pelo mesmo partido da primeira-ministra – disse que a direita deveria instrumentalizar o sucesso feito pelo primeiro filme baseado na obra. A justificativa era:

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“Existe um profundo significado nesta obra. ‘O Senhor dos Anéis’ é a batalha entre o indivíduo e a comunidade.”

Claro, o movimento também voltou a ganhar força no país justamente após Georgia Meloni ser eleita a primeira-ministra da Itália.

Apropriação

À BBC, o antropólogo brasileiro David Nemer, da Universidade da Virgínia, nos EUA, afirmou que esse movimento da Itália reflete algo que a direita mais radical vem fazendo em diversos cantos do mundo: se apropriando de obras conhecidas e distorcendo seus significados. Ele disse:

“Fazem isso porque buscam uma literatura para endossar e teorizar sua própria existência. E nada mais convincente, para fazer isso, do que pegar autores e obras já amplamente lidos e, de certa forma, aceitos na sociedade. Vemos eles se apropriando de clássicos de Roma e Grécia antiga até os mais atuais, livros como ‘1984’ de George Orwell, e ‘O Senhor dos Anéis’, de Tolkien.”

Nemer ainda explicou como “O Senhor dos Anéis” se encaixa dentro dessa esfera da extrema direita.

“Frodo (protagonista da história) é pequeno, frágil, totalmente oprimido pelo sistema. Na lógica deles, nós somos os hobbits lutando contra esse sistema globalista. E vamos lutar contra todas as forças do sistema para vencer o mal. Eles usam muito isso, veem esse homem comum branco como sendo o oprimido nessa nova ordem mundial, que é o globalismo.”

O jornalista americano John Last, que reside na Itália e passou os últimos anos estudando essa ligação entre a obra e a direita italiana, corroborou essa ideia em entrevista à rádio americana CBC.

“Esse grupo não vê ‘O Senhor dos Anéis’ como uma simples história folclórica, uma luta do bem contra o mal, mas veem nessa mesma história muito temas de progresso, modernidade, batalha pela identidade do passado e um um futuro que nós, na América do Norte, realmente não pensamos quando lemos esses textos.”

Já o jornalista Reinaldo José Lopes, da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador das obras de Tolkien e fundador de um site especializado em “O Senhor dos Anéis”, acredita que a obra é vista pela direita italiana como um desejo de conter a imigração no país. Esta foi, inclusive, uma das bandeiras defendidas por Georgia Meloni durante sua campanha.

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“(‘O Senhor dos Anéis’) gira em torno de uma guerra de civilizações, de povos e até espécies inteligentes diferentes, na qual há sociedades bem estabelecidas na região ocidental da Terra Média que são atacadas e assediadas por um inimigo imperial, o Sauron. O principal elemento que leva a isso (uso do livro pela direita) é justamente o fato de enxergar a situação atual como um conflito entre o Ocidente e o resto. E esse resto estaria sob o domínio de um poder maligno.”

E como Tolkien fica nesta conversa?

Reinaldo José Lopes reforça que dentro da obra de J.R.R. Tolkin, também não existe qualquer afirmação de que todos esse povos da Terra-Média são necessariamente ruins.

Já John Last lembra que durante sua vida, Tolkien, por mais que até fosse mais conservador, estava longe de simpatizar com os ideais da extrema direita.

“Muitos dos críticos iniciais de Tolkien falavam como existia distinção de classes entre orcs, hobbits e humanos. Mas se Tolkien visse o que os neofacistas da Itália pensam do seu livro hoje, ele ficaria, no mínimo, desapontado. Ele nunca gostou muito de Hilter e dos nazistas. E, diferente de muitos conservadores da sua época, ele realmente não olhava o projeto fascista e o associava com sua ideologia.”

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Augusto Ikeda
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Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Atua no mercado desde 2013 e já realizou trabalhos como assessor de imprensa, redator, repórter web e analista de marketing. É fã de esportes, tecnologia, música e cultura pop, mas sempre aberto a adquirir qualquer tipo de conhecimento.

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