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A história de “Beggars Banquet”, a primeira obra-prima dos Rolling Stones

Banda se recuperou de fase psicodélica frustrada abraçando blues, country e Mikhail Bulgákov

Os Rolling Stones estavam numa encruzilhada. O ano era 1967, psicodelia reinava solta e a tentativa da banda de pegar esse bonde deu muito errado.

O arquiteto dessa mudança sonora, Brian Jones, estava se afundando cada vez mais em drogas e paranoia. A presença do guitarrista no estúdio, antes vista como o ingrediente secreto para o sucesso sonoro do grupo, virou um empecilho. Isso quando ele estava funcional.

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O vocalista Mick Jagger e o guitarrista Keith Richards estavam efetivamente olhando para o abismo. Enquanto todas as principais bandas britânicas lançaram seus melhores trabalhos, os Rolling Stones deram um passo em falso com “Their Satanic Majesties Request”. Eles viram suas carreiras prestes a ir pelo brejo.

Algo na escuridão do abismo sorriu para eles — e é a marca da personalidade distinta dos Rolling Stones eles sorrirem de volta. Eles eram o lado sombrio do rock inglês. Enquanto o resto das bandas era paz, amor e surrealismo, eles mostrariam morte, guerra e a realidade.

Assim eles fizeram sua primeira obra-prima.

Era uma vez um líder

Brian Jones fundou os Rolling Stones. Foi ele o responsável por colocar um anúncio na Jazz Weekly em 1962 procurando integrantes para uma banda de rhythm & blues. Quando tentou fazer a mesma revista cobrir um show deles, um LP de Muddy Waters no chão do apartamento lhe deu a inspiração para o nome do grupo.

Ele era o líder indiscutível da banda, a pessoa com o maior conhecimento de blues e R&B entre os integrantes. Nos primórdios, Jones era quem normalmente negociava tudo pelos Stones, e invariavelmente arranjava para receber um pouco mais que o resto. 

Entretanto, sua posição começou a ruir. Os Stones arranjaram um empresário, Andrew Loog Oldham, que era um dos discípulos de Brian Epstein na NEMS. Jones não negociava mais em nome do grupo, mas ainda ganhava mais no contrato da Decca Records.

Aí em 1964 Oldham determinou que Mick Jagger e Keith Richards começassem a compor canções originais. Os dois começaram trabalhando em baladas melosas despachadas para cantores pop gravarem, mas uma vez que hits do calibre de “The Last Time”, “Get Off Of My Cloud” e “Satisfaction” começaram a sair, eles se tornaram a força motriz do grupo e, principalmente, os integrantes mais ricos.

Isso afetou profundamente a dinâmica interna, com o fato agravante de Brian ser incapaz de compor. Ele tinha um ódio especial por “Satisfaction”, primeiro número 1 da banda nos EUA. Em shows do grupo, ele tinha o costume de tocar a melodia do tema de “Popeye” durante a música como galhofa.

Em sua autobiografia, “Vida”, Keith Richards escreveu sobre a situação e a reação de Brian Jones:

“O que provavelmente ficou atravessado na garganta de Brian foi quando Mick e eu começamos a compor as músicas. Ele perdeu seu status e então perdeu interesse. Ter que vir ao estúdio aprender a tocar uma música que Mick e eu tínhamos criado o deprimia. Era a ferida aberta de Brian. A única solução de Brian era se unir a Mick ou a mim, o que criava um triângulo. Ele queria Andrew Oldham, Mick e eu, e pensava que havia uma conspiração para se livrar dele. O que não era absolutamente verdade, mas alguém precisa escrever as canções. ‘Você é bem-vindo’. ‘Vou-me sentar aqui e escrever uma canção com você’. ‘O que você pensou?’ Mas nenhuma fagulha se acendia quando eu estava com Brian. E então era: ‘Não gosto mais de guitarra. Quero tocar marimba’.”

O guitarrista se dedicou então a forjar uma imagem para si de multi-instrumentista. Jones era conhecido na cena blues de Londres por ser capaz de tocar gaita e guitarra slide. Agora ele tentava incorporar cítara, piano, órgão, xilofone, saltério, koto, além de percussão e instrumentos africanos.

Seus floreios instrumentais se provaram decisivos em alguns momentos da discografia dos Stones: a cítara em “Paint It Black”, marimba em “Under My Thumb”, flauta doce alto em “Ruby Tuesday”. Até kazoo o cara tocou, em “Cool, Calm & Collected”. Mas ele não compunha, e isso só aumentou o abismo entre ele e os outros integrantes.

Brian combateu esse crescimento de perfil da dupla Jagger-Richards adotando a persona que conhecemos hoje: um intelectual, artista conectado desde à aristocracia até os artistas mais underground. Na realidade, era hedonismo puro. Ele só queria saber de mulheres e drogas, frequentemente faltando a datas no estúdio.

Por mais que os Stones tenham uma fama insalubre com relação à farra, na metade dos anos 1960 eles ainda mantinham certo grau de profissionalismo no estúdio. Brian não. E estava torrando a paciência de seus companheiros.

Em “The Rolling Stones – A Biografia Definitiva”, de Christopher Sandford, Ian Stewart – pianista e membro não-oficial do grupo – resumiu a razão para a insatisfação do resto da banda:

“O erro de Brian foi agir de forma tão estúpida. Ele não precisava agir o tempo todo como se não desse importância a nada. Fazia isso porque achava que era assim que astros do rock ’n’ roll deviam se comportar.”

Onde estava Andrew Loog Oldham, empresário do grupo, em meio a tudo isso? Chapadaço.

Ratos fazem a festa

Antes da cocaína e da heroína, as drogas de escolha dos roqueiros eram anfetaminas e barbitúricos. Uma pra subir, outra pra descer; como sempre. No caso de Andrew Loog Oldham, o homem vivia na estratosfera na metade da década de 1960, a ponto de preocupar os Rolling Stones. 

Em 1965, ele largou as drogas e começou a se afastar do dia-a-dia de administrar o grupo. Para cumprir essa função, recrutou Allen Klein, que havia trabalhado com Sam Cooke e tornado o cantor muito rico antes de seu assassinato trágico no ano anterior. Andrew permaneceria como produtor dos Stones.

Uma das primeiras coisas que o novo empresário fez foi renegociar o contrato da banda com a gravadora. Klein mandou todos os integrantes se vestirem de preto, colocarem óculos escuros e o acompanharem ao escritório de Sir Edward Lewis, presidente e fundador da Decca Records. O selo havia sido fundado em 1929 para distribuir música religiosa e, ironicamente, agora fazia uma fortuna vendendo a música do demo.

A estratégia era que Klein falaria e os Stones ficariam atrás dele calados e com cara de poucos amigos. O empresário abriu a reunião já apelando pra baixaria, mas antes que Lewis pudesse dar uma resposta, o tom mudou para gentileza e deu-se início a negociações civilizadas. O grupo saiu da sala um milhão de libras mais rico, armados de garantias e uma cota de royalties superior à dos Beatles

Essa cota, contudo, foi toda para o empresário, que se colocou como o dono e administrador da empresa responsável por gerenciar o catálogo dos Rolling Stones. Traduzindo: Allen Klein tinha propriedade das canções.

Nessa época, Brian Jones estava tão contrariado quanto a Mick e Keith que quase foi demitido. Felizmente, seu humor melhorou quando conheceu Anita Pallenberg e os dois começaram uma relação.

Anita era uma modelo ítalo-germânica com o pedigree artístico que Brian sempre quis para si. Ela transitava facilmente pelo mundo de haute couture, a Factory de Andy Warhol e a aristocracia europeia. Não demorou muito para a face cruel do guitarrista surgir: os dois saíam no tapa frequentemente.

No meio de tudo isso, o uso de drogas dos Stones começou a se expandir além das anfetaminas e barbitúricos. Maconha rolava solta, LSD se tornou figura cativa e outros entorpecentes mais recreacionais também começaram a ser usados.

Em “The Rolling Stones – A Biografia Definitiva”, de Christopher Sandford, um assistente de turnê chamado Mike Gruber descreveu a rotina logística:

“Íamos para um hotel e eu ligava para a farmácia… Pedia pasta de dentes, creme de barbear, desodorante e cem caixas de amil-nitrato. Eu perguntava quantos havia em estoque, já que era legal e cada caixa só custava 10 dólares. Comprávamos todas.”

As turnês americanas se tornavam cada vez mais transgressoras, com os Stones virando símbolos políticos de uma geração mesmo mantendo uma postura apolítica. O mero ato de contrariar as convenções vigentes da época, ser jovem e extravasar suas insatisfações com a sociedade se tornou um grito de guerra para militantes antiguerra ou anti-imperialismo.

Eles não precisavam seguir nenhuma onda pois estavam surfando sua própria. Então por que diabos resolveram fazer um disco psicodélico?

Passo em falso

A imprensa inglesa estava numa cruzada contra roqueiros drogados e cometer crimes de invasão à privacidade desses não impediria tabloides como o News of The World. O jornal já havia publicado uma série de reportagens apontando o uso de LSD – ilegal no Reino Unido desde 1965 – e anfetaminas entre músicos. Apontado como usuário de ácido, Mick Jagger prontamente processou a publicação por calúnia.

Infelizmente para o jornal, Jagger nunca havia usado a droga até aquele ponto – e tinha um álibi para a data citada. O tabloide sabia que se o caso fosse ao tribunal, iria perder. Então, eles armaram com a polícia inglesa uma solução.

Na manhã de 12 de fevereiro de 1967, houve uma batida policial na casa de Keith Richards em Sussex. A residência foi local de uma festa na noite anterior, envolvendo o guitarrista, o merchan de arte Robert Fraser, o vendedor de antiguidades Christopher Gibbs, o fotógrafo Michael Cooper, Jagger e sua namorada, Marianne Faithfull.

Quando a polícia chegou, todos os presentes estavam saindo de uma viagem de ácido, como Richards descreveu em sua autobiografia, “Vida”:

“Batem na porta. Olho pela janela e vejo um monte de anões lá fora, mas estão todos com a mesma roupa! São policiais, mas não percebo. Pareciam pessoas muito baixinhas, vestindo roupas azul-escuras com alguns pontos brilhantes e capacetes. “Roupas maravilhosas! Estava esperando vocês? De qualquer maneira, entrem, está um pouco frio aí fora.” Eles tentaram ler uma ordem judicial para mim. “Oh, isto é muito legal, mas está frio aí fora, entrem e leiam isso para mim perto da lareira.” Eu nunca fora o alvo de uma batida policial antes e ainda estava sob os efeitos do ácido. Oh, faça amigos. Amor. Eu nunca diria para eles ficarem lá fora enquanto telefonava para meu advogado. Continuava a convidá-los a entrar. E eles, grosseiramente, me desrespeitavam. 

Enquanto calmamente íamos saindo dos efeitos do ácido, eles se espalharam pelo lugar, fazendo o que tinham vindo fazer. Nenhum de nós estava prestando muita atenção neles. Obviamente, havia alguns fragmentos das drogas normais, mas não parecia haver muita coisa que pudéssemos fazer naquele momento, e assim os deixamos andar de um lado para o outro e examinar os cinzeiros. Incrivelmente, tudo que encontraram foi alguns tocos de cigarros de maconha e o que Mick e Robert Fraser tinham nos bolsos, uma quantidade diminuta de anfetamina comprada legalmente por Mick na Itália e um pouquinho de heroína com Robert. Fora isso, não havia mais nada.”

Ninguém foi preso no local, mas os repórteres e fotógrafos do News of the World estavam a postos para o furo. O jornal pintou a cena como se tivessem interrompido uma orgia, com Faithfull, então uma cantora de sucesso, sofrendo a pior das alegações. Ela havia acabado de tomar banho e estava apenas enrolada numa toalha, mas nas palavras do tabloide, era estrela de um ato sexual envolvendo uma barra de chocolate.

Sua carreira no Reino Unido nunca foi a mesma.

Brian Jones não compareceu por estar ocupado trabalhando na trilha de “Mord und Totschlag”, filme estrelado por Anita Pallenberg, que por sua vez gravava na Alemanha. Andrew Oldham nem havia sido convidado, mas fugiu da Inglaterra para os Estados Unidos imediatamente. Essa foi a gota d’água. Os Stones cortaram laços com ele logo depois.

As gravações de “Their Satanic Majesties Request” começaram logo depois e se arrastaram por meses em meio aos problemas legais enfrentados por Mick e Keith devido à batida. As autoridades inglesas passaram metade de 1967 tentando justificar a operação, com o argumento dos dois serem ameaças à sociedade. Não deu certo.

Keith e Brian decidiram deixar a Inglaterra logo após a batida, para evitar o assédio da imprensa. Os dois foram de carro para Tânger, no Marrocos, acompanhados de Anita, Deborah Dixon e Tom Keylock, segurança do grupo. 

Bem, dizer que os dois foram de carro para Tânger é forte. Jones foi internado com pneumonia na França logo no começo da viagem e o resto do comboio continuou sem ele. No meio do caminho, Keith e Anita se apaixonaram. Quando retornaram ao Reino Unido, ela deixou Brian e se mudou para o apartamento de Richards.

Como os Stones trabalhariam sem um produtor e com seus dois guitarristas em pé de guerra por causa de mulher? Mal. “Their Satanic Majesties Request” teve sua reavaliação crítica com o passar do tempo, porém é até hoje o filho mal amado da banda.

A realidade é que, apesar de entender nada de música ou produção, Andrew Loog Oldham tinha uma visão para os Rolling Stones. Sem ele, divididos por conflitos internos e completamente exaustos de tantas turnês, a banda se contentou com seguir a moda mesmo nunca tendo feito nada daquele jeito.

No livro “The Rolling Stones – The Complete Guide”, Mick Jagger é citado falando do disco:

“Tem muita porcaria em ‘Satanic Majesties’. Muito tempo livre, muitas drogas, nenhum produtor pra nos falar: ‘Já deu, obrigado, agora podemos fazer a música?’. Qualquer um solto no estúdio daquele jeito produziria algo assim. Tinha muita gente não fazendo nada. É acreditar que tudo feito por você é ótimo e não ter alguém pra editar.”

Eles precisavam de várias coisas, e um produtor era uma delas.

Rolling Stones se aprofundam

Jimmy Miller se estabeleceu como um produtor de sucesso quando, a pedido de Chris Blackwell, transformou o Spencer Davis Group em estrelas. Seu trabalho nos singles “Gimme Some Lovin’” e “I’m A Man” ajudou a estourar a banda nos Estados Unidos. Quando os Rolling Stones precisaram de um substituto para Andrew Loog Oldham, ele acabou o escolhido.

Em “Vida”, Keith Richards escreveu sobre o primeiro encontro da banda com o produtor:

“Lembro nosso primeiro encontro com Jimmy. Mick foi muito importante para que ele se envolvesse. Jimmy tinha nascido no Brooklyn, mas crescera no Oeste — o pai dele era diretor de entretenimento de hotéis-cassinos de Vegas, o Sahara, o Dunes, o Flamingo. Fomos para o Olympic Studios e dissemos ‘Vamos tocar um pouco e ver o que sai’. Nós nos limitamos a tocar — qualquer coisa. Não queríamos fazer pontos naquele dia. Estávamos sentindo o lugar, sentindo Jimmy e Jimmy estava nos sentindo. Gostaria de voltar lá agora, para ver tudo, como uma mosca na parede. Lembro de estarmos nos sentindo bem, muito bem, quando deixamos a sessão, umas doze horas depois. Fui à sala de controle, aquilo de sempre, e ouvi no playback o que acontecera no estúdio. Às vezes, o que você toca no estúdio é completamente diferente do que ouve na sala de controle. Mas Jimmy estava ouvindo no estúdio, sentindo a banda. Assim, nossa aproximação com ele foi muito forte desde aquele primeiro dia.”

A contratação de um produtor americano capaz de capturar a qualidade dos discos produzidos do outro lado do Atlântico foi especialmente fortuita. Richards usou o período entre batalhas legais de 1967 se aprofundando na sua coleção de discos e compactos.

O guitarrista já havia passado por uma experiência semelhante nos primórdios do grupo. Passava horas e horas esquadrinhando todos os detalhes musicais em compactos de Muddy Waters e Jimmy Reed, aplicando-os ao seu estilo.

Agora, ele estava mergulhando novamente de cabeça nesses estudos pela primeira vez em quase cinco anos. Os companheiros dos Stones o visitavam para ensaiar, assim como Jack Nitschke e Ry Cooder. Esse último era um prodígio da guitarra vindo da América, em reputação forjada acompanhando o bluesman Taj Mahal, Captain Beefheart e nos estúdios de Los Angeles. Richards aprendeu com Cooder a tocar em afinação aberta e depois adaptou o estilo para servir às suas necessidades tocando guitarra base. 

Os primeiros frutos dessa experimentação toda foram sísmicos. Jimmy Miller tinha conhecimento suficiente das práticas de produção da Chess Records e outros selos de blues para aplicar conceitos antes desconhecidos ao rock inglês. 

Keith gravou a si mesmo tocando um riff num toca fitas com o volume de entrada no máximo, gerando distorção. O resultado era tocado através de uma caixa microfonada e registrado para o disco junto com um kit de bateria portátil no qual não só tudo cabia numa mala, como o bumbo era a própria mala. Uma cítara cortesia de Brian Jones, cada vez mais ausente do estúdio, engrossava o arranjo.

Coloca uma letra irônica sobre como um jovem não tem nada a fazer na vida além de tocar numa banda ou brigar nas ruas. Pronto, você tem “Street Fighting Man”.

Logo após “Street Fighting Man”, eles soltaram outro clássico. “Jumpin’ Jack Flash” nasceu a partir de uma brincadeira do baixista Bill Wyman no piano durante um ensaio. Keith Richards pegou o lick e trabalhou em torno de um aceno ao passado: o riff de “Satisfaction”, aquele que deu aos Stones o mundo, foi virado do avesso e sincopado. O que antes era um símbolo de insatisfação agora era um canto de orgulho.

“Jumpin’ Jack Flash” imediatamente chegou ao primeiro lugar nos EUA e no Reino Unido. Os Stones haviam sobrevivido ao ano mais difícil de sua carreira, estavam de volta e queriam esfregar a hipocrisia da sociedade em sua cara.

“After all, it was you and me…”

O romance “O Mestre e a Margarida” foi escrito por Mikhail Bulgákov entre 1928 e 1940. Só após sua morte o livro teve um lançamento, ainda que censurado, pela revista Moscou. O manuscrito original eventualmente chegou a uma editora em Paris, que publicou sem cortes em 1967.

Sua trama conta de uma visita do diabo à União Soviética acompanhado de seu cortejo infernal. Ao longo da história, eles desafiam a ordem vigente no regime, especificamente a corrupção de burocratas e diretores de médio escalão, abusando dos ideais revolucionários para manter uma vida confortável não tão diferente da burguesia.

Marianne Faithfull tinha um exemplar de “O Mestre e a Margarida” jogado no apartamento que dividia com Mick Jagger em Chelsea. Um belo dia, o vocalista dos Rolling Stones se pôs a devorar o livro. A experiência lhe marcou o suficiente para escrever uma balada estilo Bob Dylan adaptando os temas para a sociedade atual.

Uma vez apresentada ao resto do grupo, começaram as alterações. O violão estilo Bob Dylan foi pra escanteio em favor de guitarras combinando samba com Bo Diddley. Charlie Watts tornou o arranjo ainda mais fora do comum tocando sua bateria com pedaços de metal, dando uma sonoridade semelhante a tambores africanos. A banda recrutou Keylock, seu segurança, para lhes ajudar a fazer backing vocals agudos.

O que era uma canção de protesto inspirada por literatura russa moderna se tornou uma condenação da sociedade ocidental dos últimos 400 anos.  A música soa quase como os espíritos daqueles mais oprimidos pelo colonialismo e o tráfico de escravos lembrando os pecados cometidos por aqueles se dizendo “civilizados”.

Os Rolling Stones abraçaram de vez sua posição de malditos do rock com “Sympathy for the Devil”.

Esse período de extrema criatividade – que rendeu não só “Beggars Banquet” como também boa parte do material a ser lançado um ano depois em “Let It Bleed” – felizmente teve um registro visual. O cineasta francês Jean-Luc Godard, um dos pais da Nouvelle Vague, filmou a banda no Olympic Studios em Londres para seu filme “1 + 1”, uma colagem experimental sobre contracultura. Desde então, o longa foi rebatizado “Sympathy for the Devil”.

O resto das gravações do que veio a ser “Beggars Banquet” também marcou as últimas contribuições de Brian Jones ao grupo. Ele mal aparecia no estúdio, como Jimmy Miller contou a Anthony DeCurtis na Rolling Stone em 1997:

“Brian estava meio que com um pé dentro e outro fora da banda. Ele aparecia de vez em quando, dependendo se estava com vontade de tocar, e ele nunca era confiável… Quando aparecia numa sessão – digamos que ele tinha acabado de comprar uma cítara naquele dia, ele tava afim de tocar ela, então ele olhava o calendário pra ver se os Stones estavam marcados. Ele podia ter faltado às quatro sessões anteriores. A gente podia estar fazendo algo mais blues. Ele entrava com uma cítara, que era completamente irrelevante ao que a gente estava fazendo, e querendo tocar ela na música. Eu tentava acomodar ele. Eu isolava ele, colocava ele numa cabine e não gravava em nenhuma faixa que a gente precisasse. E os outros, particularmente Mick e Keith, falavam pra mim direto: ‘só fala pra ele ir se f#der e ir embora’.”

Início do auge

Enquanto Brian Jones desaparecia em meio a drogas e seu ego, Keith Richards acrescentava uma tonalidade nova à paleta dos Rolling Stones. Além do blues e do R&B, o guitarrista havia descoberto o country, graças à formação dos Byrds liderada por Gram Parsons. Os dois se tornaram amigos quase que imediatamente e um aprendizado da tradição musical sulista americana logo começou.

Os Stones se mostraram especialmente adeptos em incorporar country no próprio som graças ao fato de Richards ser tão habilidoso no violão quanto na guitarra. “No Expectations” é o marco zero das grandes baladas da banda. “Dear Doctor” é um pastiche bem humorado do estilo. “Prodigal Son” é uma cover de Robert Wilkins com uma infusão de bluegrass e blues do delta. “Factory Girl” se apoia ainda mais no folk dos Apalaches, com direito à rabeca de Ric Grech.

“Beggars Banquet” era para ter saído no meio de 1968, mas aquela amiga de fé dos Stones – a polêmica – causou um atraso de seis meses no lançamento. A razão para controvérsia foi a capa. O disco era ilustrado por uma foto de Barry Feinstein tirada num banheiro caindo aos pedaços de uma concessionária da Porsche em Los Angeles. A parede acima do vaso sanitário foi coberta de desenhos e frases pelos próprios Jagger e Richards.

A Decca recusou imediatamente a capa, alegando que era indecente. Mick Jagger é citado pelo Ultimate Classic Rock falando sobre a história em 1968:

“Tentamos mesmo manter o álbum dentro dos limites do bom gosto. Digo, não mostramos a privada inteira. Isso teria sido nojeira. Só mostramosa parte de cima. Duas pessoas na gravadora nos falaram que a capa é bem ofensiva… Vamos fazer esse disco ser distribuído de algum jeito, mesmo que eu precise ir até Greek Street e Carlisle Street às duas da manhã num domingo para vender eu mesmo.”

Após uma mudança de capa – a nova agora imitava um convite formal de evento – “Beggars Banquet” saiu no dia 6 de dezembro de 1968 no Reino Unido, onde chegou à 3ª posição nas paradas. Quando foi lançado nos Estados Unidos, atingiu o 5º lugar na Billboard.

Planos de promover o disco através de um especial de TV chamado “The Rolling Stones Rock and Roll Circus” caíram por terra por uma série de motivos. Problemas nas gravações fizeram com que apenas uma quantidade pequena de material filmado fosse utilizável. Além disso, o grupo teve seu próprio programa roubado pelo The Who graças a uma performance explosiva de “A Quick One, While He’s Away”.

De qualquer jeito, os Stones haviam dado a volta por cima após o passo em falso que foi “Their Satanic Majesties Request”. Seu disco novo foi um sucesso e eles estavam prestes a embarcar num dos períodos criativos mais férteis da história do rock.

Rolling Stones — “Beggars Banquet”

  • Lançado em 6 de dezembro de 1968 pela Decca
  • Produzido por Jimmy Miller

Faixas:

  1. Sympathy for the Devil
  2. No Expectations
  3. Dear Doctor
  4. Parachute Woman
  5. Jigsaw Puzzle
  6. Street Fighting Man
  7. Prodigal Son
  8. Stray Cat Blues
  9. Factory Girl
  10. Salt of the Earth

Músicos:

  • Mick Jagger (vocal; gaita na faixa 4; maracas nas faixas 6 e 8)
  • Keith Richards (guitarra; violão; slide guitar nas faixas 5 e 10; baixo nas faixas 1, 6 e 8)
  • Brian Jones (slide guitar na faixa 2; violão nas faixas 1 e 4; gaita nas faixas 3, 4 e 7; Mellotron nas faixas 5 e 8; cítara na faixa 6; tambura na faixa 6; maracas na faixa 1)
  • Bill Wyman (baixo em todas as faixas menos 9; contrabaixo na faixa 3; shekere e maracas na faixa 1)
  • Charlie Watts (bateria, claves na faixa 2, pandeiro na faixa 3; tabla na faixa 9)

Músicos adicionais:

  • Nicky Hopkins (piano nas faixas 1, 2, 3, 5, 6, 8 e 10; Mellotron, órgão Farfisa na faixa 2)
  • Rocky Dzidzornu (congas nas faixas 1, 8 e 9)
  • Ric Grech (violino na faixa 9)
  • Dave Mason (shehnai na faixa 6)
  • Michael Cooper, Marianne Faithfull, Anita Pallenberg (backing vocals na faixa 1)
  • Watts Street Gospel Choir (backing vocals na faixa 10)

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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