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Como o Angra iniciou uma era no metal brasileiro com “Angels Cry”

Lançado há três décadas, álbum de estreia do grupo tem legado duradouro no cenário metálico nacional e internacional

Em uma época em que o metal brasileiro mal se fazia notar em âmbito internacional — exceção feita ao Sepultura —, o Angra emergiu com uma abordagem inovadora. Trouxe à tona não apenas um som pesado, mas também uma complexidade musical e técnica inéditas.

A fusão de elementos do power metal com nuances da música erudita e sotaques regionais brasileiros não só solidificou o grupo como uma potência a ser reconhecida. Foi além: influenciou toda uma geração de artistas, tanto locais quanto internacionais, consolidando assim seu impacto duradouro na cena global do metal.

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Mesmo após três décadas desde seu lançamento, “Angels Cry”, o disco de estreia da banda, continua a impressionar com suas progressões, seus solos de guitarra virtuosos e a marcante performance vocal de Andre Matos, já conhecido à época por sua participação no seminal Viper no final dos anos 1980.

Conheça a história por trás desse marco.

Uma situação chata com o Viper

A saída do vocalista Andre Matos do Viper em 1990 gerou inúmeras controvérsias, com versões conflitantes que perduram até hoje. Em entrevista de 2013 à Slammin’, o guitarrista Felipe Machado não hesitou em expressar sua perspectiva não diplomática:

“A verdade é que ele [Andre Matos] não gostava mais de heavy metal. Ele foi estudar música [clássica] e quando recebemos o convite para fazermos nossa primeira tour no exterior, ele quis voltar para a banda. Lógico que não aceitamos.”

Andre, por sua vez, respondeu em uma edição subsequente da revista:

“Quando eu saí da banda, eu realmente queria estudar música clássica e me aprimorar cada vez mais. Isso é verdade. Fora isso, quando gravávamos o ‘Theatre of Fate’, senti que havia algumas resistências às minhas ideias, como incorporar elementos de música clássica ao nosso som etc. Cheguei à conclusão de que, ficando no Viper, não poderia mais evoluir musicalmente. (…) Agora, quanto a tentar voltar para a banda, esta história não é bem assim. (…) A gravadora japonesa, mesmo um ano após a minha saída da banda, ainda não sabia que isso tinha ocorrido. Eles [o Viper] esconderam isso dos japoneses para poderem continuar vendendo o disco e fechar a turnê. Com medo de que a gravadora cancelasse tudo o que estava previsto, eles me chamaram para fazer esses shows. Eu até não me opus muito à ideia, mas não chegamos a um acordo mais por vaidade e orgulho deles.”

Já que o Viper não queria colocar seu antigo vocalista de volta, com respaldo dos mesmos empresários que cuidavam de sua carreira — Antonio D. Pirani, no Brasil, e Limb Schnoor, na Europa —, uma nova banda chamada Angra foi montada com Andre, que prosseguiu:

“Eles [o Viper] fizeram, então, a turnê sozinhos e, na volta, me convidaram oficialmente para voltar, definitivamente. Mas aí já era tarde demais e o Angra já existia. É claro que eu recusei [o convite] e o assunto foi encerrado.”

De acordo com Machado, conforme relatado no livro “Andre Matos: O Maestro do Heavy Metal” (Estética Torta, 2021), a formação do Angra provocou uma disputa considerável entre as partes:

“O Angra foi montado justamente porque o Toninho e o Limb queriam uma banda no estilo do ‘Theatre of Fate’ para lançar no Japão (…) Eles montaram meio que nas nossas costas. A gente não sabia. Usaram a mesma gravadora. Iam disputar o mercado com a gente. Criou uma situação chata.”

Queensrÿche, música erudita e ritmos brasileiros

A trajetória do Angra teve origem em conversas que remontam ao primeiro semestre de 1991. Na época, Andre Matos e Rafael Bittencourt frequentavam a mesma faculdade e compartilhavam algumas disciplinas, desenvolvendo uma amizade gradualmente. A descoberta de afinidades musicais mútuas — incluindo o apreço pelo Queensrÿche — solidificou ainda mais sua conexão, acentuada após assistirem juntos à apresentação da banda no Rock in Rio 2 naquele mesmo ano.

Com a ideia de formar um grupo que fundisse os elementos progressivos do Queensrÿche, música erudita e ritmos brasileiros, Rafael jamais imaginou que Andre, que havia deixado para trás uma banda já consolidada em prol de uma carreira como pianista clássico, concordaria em se juntar à aventura. Enquanto isso, Pirani havia feito sua parte nos bastidores, assegurando antecipadamente o lançamento da nova banda de Andre por meio de suas conexões no exterior. André Bastos (guitarra) — rapidamente substituído por André Zaza —, Marco Antunes (bateria) e Luis Mariutti (baixo) completaram a formação original do Angra, cujo nome em tupi-guarani significa “deusa do fogo”.

Com o claro objetivo de capitalizar o sucesso do power metal que estava em ascensão global graças a bandas como Helloween e Gamma Ray, os cinco começaram a ensaiar diariamente, muitas vezes durante todo o dia. Nessas sessões, foram criadas músicas como “Time”, “Angels Cry”, “Evil Warning” e o hino “Carry On”.

Quando Zaza — cujo entusiasmo pelo heavy metal era limitado — deixou a banda, Kiko Loureiro, que já havia tocado com Antunes na boy band Dominó, preencheu a vaga.

Exilados na Alemanha

Em julho de 1992, o Angra gravou sua primeira demo, intitulada “Reaching Horizons”, no mesmo estúdio onde o Viper havia gravado seu álbum de estreia, “Soldiers of Sunrise”, cinco anos antes. Na tentativa de assegurar um contrato de gravação, algumas K7 foram enviadas a Limb e cerca quinhentas cópias destinadas à venda no Brasil, com o objetivo de recuperar o dinheiro investido.

Após assinar com a japonesa JVC e alemã Rising Sun, em junho de 1993, a banda embarcou para os estúdios de Kai Hansen, do Gamma Ray, na Alemanha, onde passou três meses gravando seu primeiro álbum.

Apesar de viajarem de classe executiva com todas as despesas pagas pela gravadora, assim que chegaram ao continente europeu, os cinco foram confrontados com uma realidade chocante. Em entrevista ao Metal Meltdown, Andre Matos lembrou:

“A gravação do ‘Angels Cry’ foi que nem um exílio. Ficamos em Hamburgo durante meses até o álbum tomar uma forma final. E foi meio assustador, também. O estúdio do Kai Hansen ficava dentro de um bunker todo pichado da Segunda Guerra Mundial. Não havia janelas, ar-condicionado nem luz. Era uma atmosfera muito estranha.”

Tão desafiador quanto o ambiente foi o trabalho com o produtor Charlie Bauerfeind, que, segundo Rafael Bittencourt, não demonstrou complacência alguma:

“O produtor foi muito exigente (…) O clima era de tensão o tempo todo (…) Eu procurava gravar as coisas, saía do tempo e ele pegava no pé: ‘Você não treinou isso com um metrônomo?’, e eu respondia: ‘Não, sou muito burro!’. Eu flutuava no tempo, era um desastre.”

Quando Marco Antunes deu indícios de que estava enfrentando dificuldades, Bauerfeind apresentou duas opções à banda: contratar um músico de estúdio ou utilizar uma bateria eletrônica. Embora todos estivessem cientes das limitações técnicas de Antunes, a esperança de um desfecho milagroso persistiu até o ultimato do produtor. “Não havia o que fazer”, reconheceu Andre.

“[Charlie] era um produtor profissional, um dos melhores que havia na época (…) Todos nós sofremos bastante com isso. Foi uma das primeiras lições feias e tristes que tivemos de aprender logo no começo.”

As gravações da bateria acabaram sendo realizadas por Alex Holzwarth, da banda Sieges Even e futuramente do Rhapsody of Fire. Durante os preparativos para o lançamento do álbum, o Angra tratou de buscar um novo baterista. A escolha recaiu sobre Ricardo Confessori, ex-integrante do Korzus.

Andre Matos e Rafael Bittencourt: uma relação difícil

Das dez canções de “Angels Cry”, Andre Matos contribuiu com a composição de sete, estabelecendo-se como o principal letrista no projeto. Entre as seis faixas coescritas com Rafael Bittencourt, destacam-se o metal-baião “Never Understand” e a faixa-título, que aborda a realidade dos menores de rua no Brasil. Em uma entrevista à Rock Brigade, Andre esclareceu:

“Essa música, em especial, fala da nossa realidade. O choro dos anjos pode muito bem ser o choro de uma criança que passa fome no Brasil. Eu poderia dizer que é a única letra do Angra que tem um certo engajamento.”

Uma versão de “Wuthering Heights”, sucesso de Kate Bush, foi incluída na tracklist. Na época, Matos revelou ser um admirador de longa data da cantora. Em uma entrevista a Sérgio Martins publicada na revista Bizz, o vocalista expressou: “Gosto muito dessa mistura que ela faz de música clássica com o rock”.

Apesar de terem coescrito diversas músicas juntos, já durante as gravações de “Angels Cry”, Andre e Rafael mal trocavam palavras. Em uma recente entrevista ao Canal do Mantena, o guitarrista foi questionado sobre como a relação com Andre se deteriorou ao longo do tempo, respondendo de forma um tanto evasiva:

“Primeiro foi uma relação muito intensa, muito legal, de muita afinidade pessoal e musical. Criamos o Angra praticamente juntos, porque eu comecei o Angra um pouco antes do Andre entrar, mas o Angra se consolidou mesmo com a vinda do Andre e de todos os parceiros que ele trouxe também. E foi muito intenso e um aprendizado muito grande, porque eu era já fã do Andre, eu acompanhava o Viper e de repente eu era parceiro agora de banda dele, fazendo músicas juntos, então foi uma alegria e uma euforia muito grande para mim. Sim, aos poucos foi esfriando… o Andre era um cara assim, de viver o fogo, ele gostava de viver o fogo e quando parava de arder esse fogo ele perdia a graça e partia para outras coisas.”

Embora a relação tenha azedado ao ponto de tornar inviável qualquer interação que não a exclusivamente profissional, Rafael expressa sua gratidão a Andre, atribuindo-lhe alguns méritos no episódio 108 de seu podcast, Amplifica:

“Foi um privilégio na minha vida ter encontrado o Andre Matos. Primeiro, porque talvez eu nem estivesse aqui. Ele já tinha dois discos com o Viper, conhecia o pessoal da gravadora no Japão. Eu cortei caminho graças ao Andre. Comecei com 19 anos inexperiente já com um sistema. Segundo, agradeço o privilégio de ter trabalhado com um dos maiores músicos que já existiu. Colo ele no mesmo patamar do que o Freddie Mercury. Claro que o Freddie é mais conhecido, mas em termos de capacidade e talento eles são iguais.”

A esperança dos que semeiam

A estátua de um anjo localizada no Cemitério da Consolação, em São Paulo, serviu de inspiração para a capa do álbum, que foi assinada por Alberto Torquato, o mesmo artista responsável pelas capas de “Soldiers of Sunrise” e “Theatre of Fate” do Viper. A concepção partiu de Rafael Bittencourt, que em uma entrevista para “Andre Matos: O Maestro do Heavy Metal”, explicou o conceito “para causar impacto”:

“Propus que o conceito do disco fosse uma estátua de um anjo ao invés de botar um demônio e raios como o ‘The Number of the Beast’ (1982), do Iron Maiden, que era um disco que eu amava. Queríamos fazer algo diferente, chamar atenção. Então, ao invés de ser um monstro em movimento, tivemos um anjo estático — o oposto do que era tradicional nas capas de metal da época.”

No mesmo livro, Torquato complementa, detalhando o processo:

“O Andre não queria um conceito cadavérico como é comum nas capas de metal, então trouxe algumas fotos de anjos que havia feito num cemitério de São Paulo e falou pra eu usar a ideia pra compor a ilustração. Conversamos um pouco sobre o tema, escolhemos uma foto, fiz alguns rascunhos sugerindo o campo de trigo como segundo plano, uma grande perspectiva, montanhas ao fundo e um céu avermelhado bem carregado. Apresentamos para os demais integrantes, fiz os ajustes conforme eles haviam sugerido, daí fui para a ilustração final.”

O artista também oferece sua própria interpretação da capa:

“O anjo estático — morte, miséria, descaso — simbolizando os desencarnados, o ramo de rosas vivo simbolizando a esperança dos que semeiam. O campo de trigo significando a produção de alimentos. O céu avermelhado dos que morrem de fome.”

A pedra fundamental da realidade

“Angels Cry” foi lançado em 3 de novembro de 1993 e rapidamente alcançou o sucesso esperado no Japão, onde a banda ficou em terceiro lugar nas paradas — atrás apenas da cantora Mariah Carey e do grupo pop Boyz II Men — e vendeu mais de 200 mil cópias. No Brasil, as 3 mil cópias da primeira tiragem, lançada pela Eldorado, esgotaram em apenas uma semana. Até setembro de 1995, “Angels Cry” já havia ultrapassado a marca de 40 mil cópias vendidas no país, tornando-se o lançamento mais bem-sucedido da finada gravadora.

O álbum rendeu vários títulos importantes para o Angra: Prêmio de Banda Revelação de 1994 pela revista Bizz; Melhor Disco, Melhor Capa, Melhor Vocalista, Melhor Tecladista e Melhor Música com “Carry On” pela revista Rock Brigade; e Banda do Ano pelo jornal Fatos. Além disso, o álbum recebeu resenhas entusiasmadas da mídia internacional, com críticas próximas da nota máxima em publicações como Rock Hard e Metal Hammer.

Para promover o disco, o Angra embarcou em uma turnê que passou por várias cidades brasileiras, incluindo apresentações em festivais renomados, como o Monsters of Rock em 27 de agosto de 1994. A turnê se estendeu até junho de 1995, incluindo também shows na Itália, Holanda, França e Alemanha, com destaque para o show no Wacken Open Air daquele ano.

Em 2020, em um post no Facebook, Rafael Bittencourt refletiu sobre o duradouro legado de “Angels Cry”:

“Desde muito novo sou aficionado por música e, quando decidi ser músico, minha vontade maior era ser compositor. Eu já sentia que essa era a minha forma de me comunicar com o mundo. Com 17 anos as composições começaram a amadurecer e, algumas delas, acabaram fazendo parte da primeira demo-tape do Angra. Tenho um imenso carinho pela minha versão mais nova que sonhou alto e que, com essas composições, garantiu ao Angra um contrato com a gravadora japonesa JVC e mais para frente um disco de ouro no Japão com o álbum ‘Angels Cry’. Esse foi o início do meu legado e uma parte importante da minha trajetória.”

No mesmo ano, em uma postagem na mesma rede social, Kiko Loureiro adotou um tom mais motivacional:

“Às vezes eu mesmo nem acredito o quanto tempo eu me dediquei e me empenhei para fazer o que gosto. Vale a pena! E como já disse o Walt Disney, ‘todos nossos sonhos podem se tornar realidade se tivermos a coragem de buscá-los’.”

Por fim, a palavra final deste texto é de Andre Matos, que definiu “Angels Cry” em uma entrevista ao Blog Olhar Alternativo, reproduzida no Whiplash!, em 2013:

“Foi um marco na minha carreira. Foi onde eu me profissionalizei. O Viper foi um período de preparação para chegar até ali. Aprendi muito nos dois primeiros discos do Viper. Depois deixei a banda e fui estudar música. Formei o Angra na própria faculdade de música, mas o ‘Angels Cry’ foi a realidade da carreira musical, a pedra fundamental da realidade. Fomos gravar fora do país, ficamos praticamente exilados durante meses, éramos jovens, tínhamos 21, 22 anos. Foi um período difícil, tivemos que superar vários obstáculos e muitas incertezas na cabeça. O disco alavancou uma carreira que foi longe. Eu o vejo como um momento crucial na minha carreira. Por isso, ele merece ser rememorado e comemorado.”

Angra — “Angels Cry”

  • Lançado em 3 de novembro de 1993 pela Eldorado, Victor e Polydor
  • Produzido por Charlie Bauerfeind e Sascha Paeth

Faixas:

  1. Unfinished Allegro
  2. Carry On
  3. Time
  4. Angels Cry
  5. Stand Away
  6. Never Understand
  7. Wuthering Heights (cover de Kate Bush)
  8. Streets of Tomorrow
  9. Evil Warning
  10. Lasting Child
    I. The Parting Words
    II. Renaissance

Músicos:

  • Andre Matos (voz, teclados, piano)
  • Kiko Loureiro (guitarra)
  • Rafael Bittencourt (guitarra)
  • Luís Mariutti (baixo)

Músicos adicionais:

  • Alex Holzwarth (bateria em todas as faixas, exceto 7)
  • Dirk Schlächter (guitarra solo na faixa 6)
  • Kai Hansen (guitarra solo na faixa 6)
  • Sascha Paeth (violão e guitarra solo na faixa 6)
  • Thomas Nack (bateria na faixa 7)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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