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Político e autobiográfico, Roger Waters encanta Brasília na abertura da turnê

Novo espetáculo “This is Not a Drill” opera entre discurso combativo e sensibilidade do ex-Pink Floyd ao falar de família, carreira e Syd Barrett — de David Gilmour, jamais

This is Not a Drill”, novo espetáculo de Roger Waters, é a síntese amplificada de seu próprio criador. É político e autobiográfico. Todos os detalhes e pormenores do show, seja no aspecto imagético ou musical, transbordam o discurso combativo que sempre acompanhou a obra do artista britânico, no Pink Floyd e em carreira solo. Some-se a isso uma sensibilidade aguçada para contar a história de vida de… si mesmo.

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Aos 80 anos, Waters desembarcou em Brasília com antecedência, ainda no fim de semana, e teve tempo para descansar, ser flagrado malhando no hotel e se deixar flagrar ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele não perderia essa oportunidade. É como contar vitória (de virada!) cinco anos após a passagem turbulenta pelo Brasil em 2018, quando se deparou com iminente triunfo do inimigo.

Na noite de terça-feira (24), o músico e ativista estava na ponta dos cascos para uma grande apresentação — e, por que não, sua “vingança” — no retorno ao país e à capital federal. Foi o primeiro de sete shows que ele fará em solo brasileiro. Rio de Janeiro (28/10), Porto Alegre (01/11), Curitiba (04/11), Belo Horizonte (08/11) e São Paulo (11/11 e 12/11) completam a turnê (mais informações aqui e aqui).

Foto: Lucas Alvarenga

O estádio Mané Garrincha não ficou vazio, mas também passou longe de encher. Em todos os setores, a sensação era de que estava confortável para circular e aproveitar a ocasião. Preenchido com quatro grandes telões e um aparato de áudio robusto, com som quadrifônico, o palco imponente era um convite à imersão do espetáculo.

Foto: Guilherme Gonçalves

A contagem regressiva de 15, 10 e 5 minutos para o início do show só aumentou as expectativas. Antes, porém, Waters bateu o papo reto para não deixar qualquer dúvida, em inglês, espanhol e bom português (todas as mensagens eram exibidas nos telões nas três línguas), a possíveis detratores de seu amálgama de música e política:

“Se você é um daqueles que diz ‘eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, você pode muito bem se retirar para o bar agora.

Obrigado.”

O vídeo acima é do Tenho Mais Discos Que Amigos

O espetáculo

O setlist de “This is Not a Drill” conta com 24 músicas e já é conhecido desde julho de 2022, quando a turnê teve início nos Estados Unidos. Desde então foram realizados mais de 80 shows e não há quaisquer surpresas no repertório dentre eles. Até para preservar a liturgia do roteiro, seguido à risca todas as noites. Também não houve indumentária nazista nem elogios ao Hamas, caso perguntem.

No entanto, para além das novidades no aspecto teatral, lúdico e dos efeitos de palco, há mudanças sutis na estrutura de algumas canções. A abertura com “Comfortably Numb”, por exemplo, não conta com a execução do tradicional solo de David Gilmour e termina de forma estendida com arranjos ligeiramente diferentes. Mesmo assim, funciona como um ótimo pontapé inicial para o turbilhão de emoções.

Foto: Lucas Alvarenga

Já a fusão fidedigna que vem na sequência com “The Happiest Days of Our Lives” e as partes 2 e 3 de “Another Brick in the Wall” gera aquele medley que todo mundo sabe de cor e salteado. Seria um crime promover qualquer alteração.

A essa altura, os amantes de Pink Floyd já estão nas mãos de Roger Waters, que se dá ao direito de contemplar também sua carreira solo. “The Powers That Be” e “The Bravery of Being Out of Range” não são recebidas com igual entusiasmo, mas cativam pelas imagens de inocentes mortos brutalmente ao redor do mundo pelos “crimes” de: serem negros ou praticarem algum tipo de protesto, quase sempre pacífico.

Em seguida, ele arremata com o que considera “crimes de guerra” dos presidentes norte-americanos Ronald Reagan, George W. Bush, Bill Clinton, Obama e Joe Biden.

Foto: Guilherme Gonçalves
Foto: Guilherme Gonçalves

“The Bar” traz Waters ao piano e, a reboque, um longo discurso sobre o conceito da canção e do que ele considera ideal para a resolução de conflitos: se sentar com amigos (ou não) em um bar, tomando um negocinho (no caso dele, a bebida mexicana mezcal) e conversar uns com os outros em busca de consenso. Empolgado com o papo, ele se esqueceu de virar a folha com letra e partitura da música e precisou recomeçá-la do início. “Não importa, temos a noite inteira”, se defendeu. E todos entenderam.

Emoção e exclusão

A parte final do primeiro ato é, provavalmente, o momento mais emocionante do espetáculo. O ex-Pink Floyd emenda três hinos do álbum “Wish You Were Here” (1975) com projeções que trazem fotos de seus velhos companheiros, em especial Syd Barrett.

Durante a faixa-título, um texto no telão detalha a história dos dois, desde quando se conheceram até a ruptura, passando pela alegria de “viver o sonho” de montar e ter uma banda. Até que tudo se acaba. É quando tomamos conhecimento do verdadeiro conceito por trás de “This is Not a Drill” (“isso não é um treinamento”).

Outra curiosidade: dentre as fotos projetadas, nenhuma traz David Gilmour ou faz qualquer menção a ele. Fica claro que há um processo em curso de tentativa de apagamento do guitarrista. Syd é exaltado, enquanto Gilmour sequer é citado.

Foto: Guilherme Gonçalves
Foto: Guilherme Gonçalves

O segundo ato

A virada de um ato para o outro conta com animais infláveis (a ovelha, em “Sheep”, e o porco, em “In the Flesh”) e um intervalo de aproximadamente 20 minutos entre eles.

Roger Waters visita então seu disco solo mais recente, “Is This the Life We Really Want?” (2017), antes de mergulhar em “The Dark Side of the Moon” (1973), obra-prima de sua carreira – e a qual ele regravou recentemente. Para alegria de muitos, as versões tocadas não são as novas, do polêmico “Redux”, mas as originais.

Foto: Lucas Alvarenga

O guitarrista Jonathan Wilson brilha ao assumir os vocais em “Money”, e o saxofone de Seamus Blake sobressai em “Us and Them”. Já em “Brain Damage” e “Eclipse” é o público que rouba a cena, cantando praticamente todos os versos a plenos pulmões.

Foto: Guilherme Gonçalves

Grata novidade no repertório desta turnê, “Two Suns in the Sunset”, do contestado “The Final Cut” (1983), se mostrou belíssima ao vivo e, com um vídeo lisérgico ao fundo, certamente agradou até mesmo quem não morre de amores pelo álbum.

E no fim, após revelar que roubou versos de “Sad Eyed Lady of the Lowlands”, de Bob Dylan, Roger Waters prova que é mesmo um rebelde irremediável. Na contramão de toda abundância em termos de palco, luzes e som, o dono do “bar” finaliza como uma espécie de bardo numa taverna, lamentando a perda de familiares (o pai, logo na infância, e o irmão mais velho, ano passado) e apresentando um por um de seus companheiros de banda na singela e quase folk “Outside the Wall”.

Um encerramento intimista e até subversivo para um espetáculo tão grandioso. Ou a síntese, desta vez simplificada, de seu próprio criador.

Foto: Guilherme Gonçalves

Roger Waters – ao vivo em Brasília

  • Local: Estádio Mané Garrincha
  • Data: 24 de outubro de 2023
  • Turnê: This is Not a Drill

Repertório:

  1. Comfortably Numb
  2. The Happiest Days of Our Lives
  3. Another Brick in the Wall, Parte 2
  4. Another Brick in the Wall, Parte 3
  5. The Powers That Be
  6. The Bravery of Being Out of Range
  7. The Bar
  8. Have a Cigar
  9. Wish You Were Here
  10. Shino On You Crazy Diamong (Partes 6 a 9)
  11. Sheep
  12. In the Flesh
  13. Run Like Hell
  14. Déjà Vu
  15. Déjà Vu (reprise)
  16. Is This The Life We Really Want?
  17. Money
  18. Us and Them
  19. Any Colour You Like
  20. Brain Damage
  21. Eclipse
  22. Two Suns in the Sunset
  23. The Bar (reprise)
  24. Outside the Wall

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Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É repórter do Globo Esporte e atua no jornalismo esportivo desde 2008. Colecionador de discos e melômano, também escreve sobre música e já colaborou para veículos como Collectors Room e Rock Brigade. Atualmente revisa livros da editora Estética Torta e é editor do Morbus Zine, dedicado ao death metal e grindcore.

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