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Como o Jane’s Addiction preparou terreno para o boom alternativo em “Nothing’s Shocking”

Estreia da banda de LA pegou intransigência do punk, escuridão do gótico e ambição do rock clássico para criar fórmula de sucesso da década seguinte

Em 1991, o rock foi virado de ponta-cabeça. O alternativo se tornou mainstream. Artistas vistos como anticomerciais receberam atenção total não só da indústria, mas também do público.

Isso teve muito a ver com o sucesso do Nirvana e “Nevermind”, mas foi resultado de um processo lento e árduo. Bandas alternativas passaram a maior parte dos anos 1980 criando um ambiente antes inexistente onde podiam existir sem a interferência da indústria.

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Entretanto, ainda faltava uma banda capaz de ocupar o vácuo entre o underground e o mainstream. Alguém que combinasse a intransigência do punk, o espírito artístico onívoro dos hippies e a ambição de artistas como Led Zeppelin.

O mundo precisava do Jane’s Addiction

Ambição (e ego) de sobra

A história do Jane’s Addiction começa com Perry Farrell. Filho de um joalheiro nova-iorquino, ele passou sua adolescência na Flórida antes de se mudar para a Califórnia na virada dos anos 1980. Por lá, viveu essencialmente como um rato de praia, morando em seu carro e fazendo bicos que não o impediam de surfar.

O primeiro trabalho regular de Farrell como cantor foi como sósia de David Bowie e Mick Jagger, cantando numa boate. Isso lhe deu um gosto por se apresentar. Após ser descoberto por um agente, ele foi levado para Los Angeles com o objetivo de lançar uma carreira de ator e modelo.

Contudo, seus interesses se mostram mais alternativos, explorando a cena underground da cidade. Ele queria fazer algo musical – e logo encontrou sua oportunidade para fazer parte de uma banda quando o grupo pós-punk Psi Com colocou um anúncio procurando um baterista.

Perry chegou no teste e não só disse na lata ser incapaz de tocar bateria, como também ofereceu seus serviços como vocalista. O plano foi audaz, mas deu certo: ele se tornou o frontman da banda.

A entrada de Farrell para o Psi Com também o fez ser apresentado à música de uma das principais influências do grupo: o Joy Division. O pós-punk e o gótico saídos da Inglaterra tinham um público na Califórnia oriundo do fato que a KROQ, uma das principais estações de rádio em Los Angeles, adotou uma programação focada em bandas novas underground na virada dos anos 1980, introduzindo a uma geração artistas gélidos do outro lado do mundo.

No livro “Whores: An Oral Biography of Perry Farrell and Jane’s Addiction”, escrito por Brendan Mullen, o vocalista descreveu o efeito do grupo inglês nele, particularmente a canção “Love Will Tear Us Apart”:

“A música do Joy Division bateu forte. Esse cara estava tão entristecido por amor. Eu pensei, ‘Isso é como um coração partido soa’. Eu não conseguia parar de tocar aquela música.”

Os aspectos mais sombrios do gótico além das facetas BDSM da cena LGBTQIA+ atraíram, apesar de Perry ser heterossexual. O vocalista era um hippie no sentido mais hedonista do termo, atraído para todos os excessos possíveis como ferramenta de transcendência.

Ele também explorava outras culturas na forma de fazer dreadlocks no cabelo e escarificação, a prática africana de modificação corporal através de cicatrizes. Perry estava aberto a tudo, menos trabalhar em um escritório. Seu objetivo final era usar sua plataforma musical para expandir a consciência coletiva da humanidade através de arte e diálogo.

Enquanto isso, em 1985, o Psi Com o estava meio que implodindo. Em uma tentativa de salvar a banda, Farrell queria um novo baixista. O destino lhe trouxe Eric Avery, um filho de ator de Hollywood com quem compartilhava uma paixão pelo Joy Division e o Velvet Underground.

Em entrevista à Billboard, Farrell falou sobre esse período:

“A banda começou a dissolver, especificamente porque eles estavam interessados no Bhagavad Gita, e todo mundo estava estudando o Bhagavad Gita. Eu até estudei um pouco dele, mas eu estava estudando tudo. Eu estava estudando Aleister Crowley. Eu estava estudando o Livro de Mormon. Eu basicamente estava fazendo um estudo comparativo de religiões. Mas os caras estavam levando hinduísmo muito à sério, o que não há problema, mas eles estavam deixando de gostar de mulheres e da esbórnia. Antes do Psi Com acabar, eu conheci Eric e falei: ‘cara, faça um teste pro Psi Com’. Eu trouxe o Eric pra dentro e estava me divertindo fazendo shows com ele.”

O Psi Com morreu, mas algo novo e maior estava no horizonte.

Colegas de escola e Jane’s Addiction

O nome Jane’s Addiction surgiu a partir de uma das inúmeras musas de Perry Farrell, Jane Bainter, uma das pessoas que dividiam uma casa com ele em Los Angeles. Em entrevista à Classic Rock, o vocalista descreveu o ambiente da casa e como ela se encaixava ali:

“Ela era uma viciada pesada. Todo mundo naquela casa era. A gente tinha 16 pessoas morando ali – a maioria sendo músicos e suas namoradas.”

Todo e qualquer dinheiro que Farrell ganhava era gasto com drogas, específicamente cocaína e heroína, como ele descreveu na mesma entrevista:

“Nós éramos viciados em speedball. Eu carregava agulhas no bolso. Eu achava um banheiro não importava onde estivesse e injetava – sempre tinha comigo. E aí voltava pra casa, onde tinha um saco cheio. Eu era tão selvagem quanto um jovem podia ser.”

Apesar disso, a inspiração para o nome da banda veio das experiências de Bainter, como ele contou à Classic Rock em 2001: 

“Minha namorada [Casey Niccoli] e eu estávamos sentados no carro e a gente começou a pensar sobre nomes de banda. Ela sugeriu Jane’s Heroin Experience. Eu não achei que era vago o suficiente. Se você quer convidar pessoas pra dentro, não dá pra colocar heroína na porta de entrada.”

No começo, o Jane’s Addiction não tinha forma. Farrell e Eric Avery faziam shows sem pé nem cabeça, mas com muita energia e um elenco rotativo de bateristas e guitarristas. Procurando alguém mais interessado na proposta para ao menos segurar as baquetas, o baixista contatou o namorado de sua irmã mais nova, Stephen Perkins.

O músico aceitou a proposta com um pé atrás, considerando que ele até então era fã de heavy metal e parte de uma banda com outro colega de colégio, Dave Navarro. Os dois eram apaixonados pela cena glam da Sunset Strip e influenciados por todo tipo de coisa no gênero.

Eventualmente, o baterista trouxe Navarro também para o grupo. À Billboard, o guitarrista caracterizou sua entrada da seguinte maneira:

“A gente acabou junto por conveniência, de ter as mesmas conexões e nos darmos bem, então fomos para frente. O que eu trouxe foi uma direção musical que a banda não tinha, mais baseada em rock progressivo, heavy metal – um estilo de guitarra mais lead ao invés de algo atmosférico. Eu acho que trouxe esse elemento para a banda, mas acho que a banda me influenciou a me tornar mais atmosférico.”

A conexão entre Farrell e Navarro se deu quando ambos se conheceram e perceberam que usavam um equipamento para fins semelhantes. O Ibanez DM1000 era um rack delay famoso no mundo do metal, mas ambos estavam experimentando uma sonoridade mais doida possibilitada por ele.

“Doido” era uma palavra apropriada para descrever não só o som, mas o ambiente em torno do grupo. Além de Farrell, Navarro e Avery também eram viciados, afundando-se nas drogas após eventos traumáticos.

O baixista descobriu durante o ensino médio que quem ele achava ser seu pai não o era. Porém, o guitarrista estava lidando com um fardo pesado demais para qualquer um.

Quando ele tinha 15 anos, sua mãe e tia foram assassinadas pelo padrasto, John Riccardi. O criminoso só foi preso em 1991 após uma denúncia feita por um telespectador após o caso aparecer no programa “America’s Most Wanted”.

Em entrevista de 2004 ao mesmo programa, Navarro revelou que ele quase estava com sua mãe naquela noite. Escapou da morte por uma decisão impulsiva de ir dormir na casa do pai. A mistura de trauma, luto e culpa por ter sobrevivido o empurrou para dentro de um abismo de drogas.

Nesse ambiente, Farrell, seis anos mais velho do que Avery, Perkins e Navarro, se estabelecia não só como um frontman carismático, mas também uma figura controladora. Sua então namorada, estilista e parceira criativa, Casey Niccoli, foi citada pelo Pitchfork dizendo:

“Ele achava que conseguiria moldá-los e eles sempre fariam o que ele queria. Eventualmente, eles iriam crescer, mas ele já teria conseguido o que precisava deles.”

A estética da esbórnia não era suficiente

Apesar de ser desde o início uma das bandas mais hedonistas de Los Angeles (uma cidade infame na época pelos excessos da cena glam metal), o Jane’s Addiction tinha planos maiores, nascidos da cabeça de Perry Farrell. À Classic Rock, ele disse:

“Rock’n’roll já existia havia 30 anos. Era quase impossível criar um som novo, um jeito novo. Mas eu precisava ter isso. A gente precisava disso. E o que aconteceu foi: eu sabia o que não gostava.”

O que ele não curtia, especificamente, era hair metal, como falou na mesma entrevista:

“Você podia ser um bom músico, mas se estivesse compondo sobre besteira, tipo estar do lado do diabo, e se você tivesse o visual de uma prostituta na Hollywood Boulevard, eu não podia ligar menos. Com hair metal, não havia engenhosidade.”

O Jane’s bebia da fonte de Led Zeppelin, Black Sabbath, Rolling Stones e Velvet Underground para suas influências clássicas. A partir daí, eram incorporados elementos mais contemporâneos de pós-punk e avant-garde.

Ao longo de seus primeiros três anos de existência, o Jane’s foi se tornando uma das bandas mais importantes da cena underground de LA. Construíram em torno de seus shows na boate Scream um ambiente artístico com várias demonstrações contraculturais.

Isso foi suficiente para atraírem atenção da Warner, que lhes ofereceu um adiantamento entre 250 mil e 300 mil dólares em 1987 para o disco de estreia. Entretanto, ao invés de um álbum de estúdio, o Jane’s decidiu fazer sua introdução ao mundo na forma de um registro ao vivo, homônimo, lançado em maio de 1987 pela Triple X Records.

À Billboard, Farrell comentou sobre o disco ao vivo “Jane’s Addiction”:

“Era quase como eu fazendo uma estátua para comemorar como a gente soava, mas não como uma gravação de estúdio. Eu sabia que nunca soaríamos daquele jeito novamente. Éramos completamente livres e selvagens, e não tínhamos elos com nenhuma corporação. Eu falava de gravadoras tipo: ‘todos os caras barrigudos lá, que acham que vão conseguir o Jane’s Addiction, eles podem ir à m#rda’. Mas eu sabia que a gente iria para a Warner Brothers.”

Durante as negociações do contrato com a Warner, Farrell usou o controle que tinha sobre os outros integrantes para conseguir uma parcela enorme dos direitos autorais.

Metade da renda proveniente das canções iria para Farrell por ter escrito as letras. Além disso, o vocalista ainda teria direito a mais 12,5%, ou seja, um quarto da outra metade, por sua contribuição musical. A banda chegou a terminar por causa disso, mas após sessões de apaziguamento entre as partes, os quatro integrantes decidiram continuar em frente – mesmo com essa divisão desigual.

Isso foi o suficiente para estabelecer um clima de tensão enorme na banda entrando no estúdio.

Transgressão demais

Antes mesmo de entrarem no estúdio com o produtor Dave Jerden para o que viria a ser “Nothing’s Shocking”, o Jane’s Addiction já tinha 18 músicas compostas. O produtor contou à Music Radar sobre seu processo de selecionar o repertório do disco:

“Eu tinha uma fita demo com 18 canções e escutei o verão inteiro. Escolhi nove músicas da fita e as coloquei em ordem. Aí eu falei para a banda: ‘vamos fazer essas nove faixas, vocês ensaiem elas nessa ordem e a gente grava nessa ordem’. E foi o que a gente fez.”

A única modificação sonora que Jerden fez foi no arranjo da música mais famosa do disco, “Jane Says”. O produtor pediu para Stephen Perkins gravá-la com tambor de aço, dando um ar calypso ao arranjo.

A canção é uma homenagem novamente a Jane Bainter. Aqui, Perry Farrell pinta um retrato cotidiano da vida de uma viciada em drogas naquela época, suas brigas com namorados abusivos, traficantes, esperanças e inseguranças. 

Entretanto, um aspecto da canção foi desmentido pela própria em uma entrevista para o Los Angeles Times em 2001: ela nunca se prostituiu. A sugestão na letra criou muitos problemas em sua vida.

Do outro lado do espectro, “Mountain Song” continha a colisão mais bem-sucedida das sensibilidades dos integrantes do Jane’s Addiction: seja os riffs e bateria colossais de Dave Navarro e Stephen Perkins, o misticismo lírico de Perry Farrell ou as linhas de baixo góticas de Eric Avery.

“Nothing’s Shocking” saiu em 23 de agosto de 1988, mas teve vendas atrapalhadas por aspectos relacionados ao espírito transgressor de Farrell. A capa do disco, criada pelo vocalista com Casey Niccoli, traz uma escultura de duas gêmeas siamesas nuas com cabeças em chamas. 

Por causa disso, as principais varejistas dos Estados Unidos se recusaram a carregar o álbum a menos que cobrisse a imagem. Isso poderia ser mitigado se tivessem exposição na MTV.

Porém, o clipe de “Mountain Song” continha uma cena de nudez frontal – e essa foi a razão dada pelo canal para não incluir o vídeo em sua programação. Farrell então reeditou a peça na forma de um curta-metragem e a banda lançou como o VHS “Soul Kiss”.

O álbum vendeu entre 200 e 250 mil cópias em seu primeiro ano, muito abaixo do esperado. No entanot, as turnês constantes para promover “Nothing’s Shocking” contribuíram para um aumento de perfil do Jane’s nos EUA, assegurando que o próximo lançamento da banda fosse bem maior.

O problema era que nesse período havia se formado uma divisão ainda maior na banda devido ao fato de Eric Avery ter abandonado as drogas e, segundo Farrell, tentado dar em cima de Casey Niccoli.

“Ritual de lo Habitual”, disco seguinte do Jane’s, foi lançado em 1990 e fez muito sucesso. A banda resolveu que a turnê desse disco seria a última. Procurariam replicar o ambiente artístico dos shows do grupo em Los Angeles ao criar um festival itinerante com atrações indo além da música e abrangendo até questões políticas.

Nascia o Lollapalooza.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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Estreia da banda de LA pegou intransigência do punk, escuridão do gótico e ambição do rock clássico para criar fórmula de sucesso da década seguinte

Em 1991, o rock foi virado de ponta-cabeça. O alternativo se tornou mainstream. Artistas vistos como anticomerciais receberam atenção total não só da indústria, mas também do público.

Isso teve muito a ver com o sucesso do Nirvana e “Nevermind”, mas foi resultado de um processo lento e árduo. Bandas alternativas passaram a maior parte dos anos 1980 criando um ambiente antes inexistente onde podiam existir sem a interferência da indústria.

- Advertisement -

Entretanto, ainda faltava uma banda capaz de ocupar o vácuo entre o underground e o mainstream. Alguém que combinasse a intransigência do punk, o espírito artístico onívoro dos hippies e a ambição de artistas como Led Zeppelin.

O mundo precisava do Jane’s Addiction

Ambição (e ego) de sobra

A história do Jane’s Addiction começa com Perry Farrell. Filho de um joalheiro nova-iorquino, ele passou sua adolescência na Flórida antes de se mudar para a Califórnia na virada dos anos 1980. Por lá, viveu essencialmente como um rato de praia, morando em seu carro e fazendo bicos que não o impediam de surfar.

O primeiro trabalho regular de Farrell como cantor foi como sósia de David Bowie e Mick Jagger, cantando numa boate. Isso lhe deu um gosto por se apresentar. Após ser descoberto por um agente, ele foi levado para Los Angeles com o objetivo de lançar uma carreira de ator e modelo.

Contudo, seus interesses se mostram mais alternativos, explorando a cena underground da cidade. Ele queria fazer algo musical – e logo encontrou sua oportunidade para fazer parte de uma banda quando o grupo pós-punk Psi Com colocou um anúncio procurando um baterista.

Perry chegou no teste e não só disse na lata ser incapaz de tocar bateria, como também ofereceu seus serviços como vocalista. O plano foi audaz, mas deu certo: ele se tornou o frontman da banda.

A entrada de Farrell para o Psi Com também o fez ser apresentado à música de uma das principais influências do grupo: o Joy Division. O pós-punk e o gótico saídos da Inglaterra tinham um público na Califórnia oriundo do fato que a KROQ, uma das principais estações de rádio em Los Angeles, adotou uma programação focada em bandas novas underground na virada dos anos 1980, introduzindo a uma geração artistas gélidos do outro lado do mundo.

No livro “Whores: An Oral Biography of Perry Farrell and Jane’s Addiction”, escrito por Brendan Mullen, o vocalista descreveu o efeito do grupo inglês nele, particularmente a canção “Love Will Tear Us Apart”:

“A música do Joy Division bateu forte. Esse cara estava tão entristecido por amor. Eu pensei, ‘Isso é como um coração partido soa’. Eu não conseguia parar de tocar aquela música.”

Os aspectos mais sombrios do gótico além das facetas BDSM da cena LGBTQIA+ atraíram, apesar de Perry ser heterossexual. O vocalista era um hippie no sentido mais hedonista do termo, atraído para todos os excessos possíveis como ferramenta de transcendência.

Ele também explorava outras culturas na forma de fazer dreadlocks no cabelo e escarificação, a prática africana de modificação corporal através de cicatrizes. Perry estava aberto a tudo, menos trabalhar em um escritório. Seu objetivo final era usar sua plataforma musical para expandir a consciência coletiva da humanidade através de arte e diálogo.

Enquanto isso, em 1985, o Psi Com o estava meio que implodindo. Em uma tentativa de salvar a banda, Farrell queria um novo baixista. O destino lhe trouxe Eric Avery, um filho de ator de Hollywood com quem compartilhava uma paixão pelo Joy Division e o Velvet Underground.

Em entrevista à Billboard, Farrell falou sobre esse período:

“A banda começou a dissolver, especificamente porque eles estavam interessados no Bhagavad Gita, e todo mundo estava estudando o Bhagavad Gita. Eu até estudei um pouco dele, mas eu estava estudando tudo. Eu estava estudando Aleister Crowley. Eu estava estudando o Livro de Mormon. Eu basicamente estava fazendo um estudo comparativo de religiões. Mas os caras estavam levando hinduísmo muito à sério, o que não há problema, mas eles estavam deixando de gostar de mulheres e da esbórnia. Antes do Psi Com acabar, eu conheci Eric e falei: ‘cara, faça um teste pro Psi Com’. Eu trouxe o Eric pra dentro e estava me divertindo fazendo shows com ele.”

O Psi Com morreu, mas algo novo e maior estava no horizonte.

Colegas de escola e Jane’s Addiction

O nome Jane’s Addiction surgiu a partir de uma das inúmeras musas de Perry Farrell, Jane Bainter, uma das pessoas que dividiam uma casa com ele em Los Angeles. Em entrevista à Classic Rock, o vocalista descreveu o ambiente da casa e como ela se encaixava ali:

“Ela era uma viciada pesada. Todo mundo naquela casa era. A gente tinha 16 pessoas morando ali – a maioria sendo músicos e suas namoradas.”

Todo e qualquer dinheiro que Farrell ganhava era gasto com drogas, específicamente cocaína e heroína, como ele descreveu na mesma entrevista:

“Nós éramos viciados em speedball. Eu carregava agulhas no bolso. Eu achava um banheiro não importava onde estivesse e injetava – sempre tinha comigo. E aí voltava pra casa, onde tinha um saco cheio. Eu era tão selvagem quanto um jovem podia ser.”

Apesar disso, a inspiração para o nome da banda veio das experiências de Bainter, como ele contou à Classic Rock em 2001: 

“Minha namorada [Casey Niccoli] e eu estávamos sentados no carro e a gente começou a pensar sobre nomes de banda. Ela sugeriu Jane’s Heroin Experience. Eu não achei que era vago o suficiente. Se você quer convidar pessoas pra dentro, não dá pra colocar heroína na porta de entrada.”

No começo, o Jane’s Addiction não tinha forma. Farrell e Eric Avery faziam shows sem pé nem cabeça, mas com muita energia e um elenco rotativo de bateristas e guitarristas. Procurando alguém mais interessado na proposta para ao menos segurar as baquetas, o baixista contatou o namorado de sua irmã mais nova, Stephen Perkins.

O músico aceitou a proposta com um pé atrás, considerando que ele até então era fã de heavy metal e parte de uma banda com outro colega de colégio, Dave Navarro. Os dois eram apaixonados pela cena glam da Sunset Strip e influenciados por todo tipo de coisa no gênero.

Eventualmente, o baterista trouxe Navarro também para o grupo. À Billboard, o guitarrista caracterizou sua entrada da seguinte maneira:

“A gente acabou junto por conveniência, de ter as mesmas conexões e nos darmos bem, então fomos para frente. O que eu trouxe foi uma direção musical que a banda não tinha, mais baseada em rock progressivo, heavy metal – um estilo de guitarra mais lead ao invés de algo atmosférico. Eu acho que trouxe esse elemento para a banda, mas acho que a banda me influenciou a me tornar mais atmosférico.”

A conexão entre Farrell e Navarro se deu quando ambos se conheceram e perceberam que usavam um equipamento para fins semelhantes. O Ibanez DM1000 era um rack delay famoso no mundo do metal, mas ambos estavam experimentando uma sonoridade mais doida possibilitada por ele.

“Doido” era uma palavra apropriada para descrever não só o som, mas o ambiente em torno do grupo. Além de Farrell, Navarro e Avery também eram viciados, afundando-se nas drogas após eventos traumáticos.

O baixista descobriu durante o ensino médio que quem ele achava ser seu pai não o era. Porém, o guitarrista estava lidando com um fardo pesado demais para qualquer um.

Quando ele tinha 15 anos, sua mãe e tia foram assassinadas pelo padrasto, John Riccardi. O criminoso só foi preso em 1991 após uma denúncia feita por um telespectador após o caso aparecer no programa “America’s Most Wanted”.

Em entrevista de 2004 ao mesmo programa, Navarro revelou que ele quase estava com sua mãe naquela noite. Escapou da morte por uma decisão impulsiva de ir dormir na casa do pai. A mistura de trauma, luto e culpa por ter sobrevivido o empurrou para dentro de um abismo de drogas.

Nesse ambiente, Farrell, seis anos mais velho do que Avery, Perkins e Navarro, se estabelecia não só como um frontman carismático, mas também uma figura controladora. Sua então namorada, estilista e parceira criativa, Casey Niccoli, foi citada pelo Pitchfork dizendo:

“Ele achava que conseguiria moldá-los e eles sempre fariam o que ele queria. Eventualmente, eles iriam crescer, mas ele já teria conseguido o que precisava deles.”

A estética da esbórnia não era suficiente

Apesar de ser desde o início uma das bandas mais hedonistas de Los Angeles (uma cidade infame na época pelos excessos da cena glam metal), o Jane’s Addiction tinha planos maiores, nascidos da cabeça de Perry Farrell. À Classic Rock, ele disse:

“Rock’n’roll já existia havia 30 anos. Era quase impossível criar um som novo, um jeito novo. Mas eu precisava ter isso. A gente precisava disso. E o que aconteceu foi: eu sabia o que não gostava.”

O que ele não curtia, especificamente, era hair metal, como falou na mesma entrevista:

“Você podia ser um bom músico, mas se estivesse compondo sobre besteira, tipo estar do lado do diabo, e se você tivesse o visual de uma prostituta na Hollywood Boulevard, eu não podia ligar menos. Com hair metal, não havia engenhosidade.”

O Jane’s bebia da fonte de Led Zeppelin, Black Sabbath, Rolling Stones e Velvet Underground para suas influências clássicas. A partir daí, eram incorporados elementos mais contemporâneos de pós-punk e avant-garde.

Ao longo de seus primeiros três anos de existência, o Jane’s foi se tornando uma das bandas mais importantes da cena underground de LA. Construíram em torno de seus shows na boate Scream um ambiente artístico com várias demonstrações contraculturais.

Isso foi suficiente para atraírem atenção da Warner, que lhes ofereceu um adiantamento entre 250 mil e 300 mil dólares em 1987 para o disco de estreia. Entretanto, ao invés de um álbum de estúdio, o Jane’s decidiu fazer sua introdução ao mundo na forma de um registro ao vivo, homônimo, lançado em maio de 1987 pela Triple X Records.

À Billboard, Farrell comentou sobre o disco ao vivo “Jane’s Addiction”:

“Era quase como eu fazendo uma estátua para comemorar como a gente soava, mas não como uma gravação de estúdio. Eu sabia que nunca soaríamos daquele jeito novamente. Éramos completamente livres e selvagens, e não tínhamos elos com nenhuma corporação. Eu falava de gravadoras tipo: ‘todos os caras barrigudos lá, que acham que vão conseguir o Jane’s Addiction, eles podem ir à m#rda’. Mas eu sabia que a gente iria para a Warner Brothers.”

Durante as negociações do contrato com a Warner, Farrell usou o controle que tinha sobre os outros integrantes para conseguir uma parcela enorme dos direitos autorais.

Metade da renda proveniente das canções iria para Farrell por ter escrito as letras. Além disso, o vocalista ainda teria direito a mais 12,5%, ou seja, um quarto da outra metade, por sua contribuição musical. A banda chegou a terminar por causa disso, mas após sessões de apaziguamento entre as partes, os quatro integrantes decidiram continuar em frente – mesmo com essa divisão desigual.

Isso foi o suficiente para estabelecer um clima de tensão enorme na banda entrando no estúdio.

Transgressão demais

Antes mesmo de entrarem no estúdio com o produtor Dave Jerden para o que viria a ser “Nothing’s Shocking”, o Jane’s Addiction já tinha 18 músicas compostas. O produtor contou à Music Radar sobre seu processo de selecionar o repertório do disco:

“Eu tinha uma fita demo com 18 canções e escutei o verão inteiro. Escolhi nove músicas da fita e as coloquei em ordem. Aí eu falei para a banda: ‘vamos fazer essas nove faixas, vocês ensaiem elas nessa ordem e a gente grava nessa ordem’. E foi o que a gente fez.”

A única modificação sonora que Jerden fez foi no arranjo da música mais famosa do disco, “Jane Says”. O produtor pediu para Stephen Perkins gravá-la com tambor de aço, dando um ar calypso ao arranjo.

A canção é uma homenagem novamente a Jane Bainter. Aqui, Perry Farrell pinta um retrato cotidiano da vida de uma viciada em drogas naquela época, suas brigas com namorados abusivos, traficantes, esperanças e inseguranças. 

Entretanto, um aspecto da canção foi desmentido pela própria em uma entrevista para o Los Angeles Times em 2001: ela nunca se prostituiu. A sugestão na letra criou muitos problemas em sua vida.

Do outro lado do espectro, “Mountain Song” continha a colisão mais bem-sucedida das sensibilidades dos integrantes do Jane’s Addiction: seja os riffs e bateria colossais de Dave Navarro e Stephen Perkins, o misticismo lírico de Perry Farrell ou as linhas de baixo góticas de Eric Avery.

“Nothing’s Shocking” saiu em 23 de agosto de 1988, mas teve vendas atrapalhadas por aspectos relacionados ao espírito transgressor de Farrell. A capa do disco, criada pelo vocalista com Casey Niccoli, traz uma escultura de duas gêmeas siamesas nuas com cabeças em chamas. 

Por causa disso, as principais varejistas dos Estados Unidos se recusaram a carregar o álbum a menos que cobrisse a imagem. Isso poderia ser mitigado se tivessem exposição na MTV.

Porém, o clipe de “Mountain Song” continha uma cena de nudez frontal – e essa foi a razão dada pelo canal para não incluir o vídeo em sua programação. Farrell então reeditou a peça na forma de um curta-metragem e a banda lançou como o VHS “Soul Kiss”.

O álbum vendeu entre 200 e 250 mil cópias em seu primeiro ano, muito abaixo do esperado. No entanot, as turnês constantes para promover “Nothing’s Shocking” contribuíram para um aumento de perfil do Jane’s nos EUA, assegurando que o próximo lançamento da banda fosse bem maior.

O problema era que nesse período havia se formado uma divisão ainda maior na banda devido ao fato de Eric Avery ter abandonado as drogas e, segundo Farrell, tentado dar em cima de Casey Niccoli.

“Ritual de lo Habitual”, disco seguinte do Jane’s, foi lançado em 1990 e fez muito sucesso. A banda resolveu que a turnê desse disco seria a última. Procurariam replicar o ambiente artístico dos shows do grupo em Los Angeles ao criar um festival itinerante com atrações indo além da música e abrangendo até questões políticas.

Nascia o Lollapalooza.

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Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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