A indústria do entretenimento britânica nos últimos dez anos precisou confrontar os inúmeros horrores de seu passado. Estrelas dos anos 1960, 70 e 80 foram expostas como pedófilos após décadas protegidos pela mídia e outras forças relacionadas ao governo. Entretanto, uma pessoa nunca teve essa proteção e foi exposta como monstro muito antes: Paul Francis Gadd, conhecido como Gary Glitter.
Pop cafajeste
Todo movimento musical popular tem seus aproveitadores. Aquelas figuras canastronas capazes de pegar tudo cativante de um estilo, reduzir ao mínimo denominador comum e tirar toda a graça de algo.
Para o glam, esse foi Gary Glitter. O cantor era quase uma paródia de David Bowie, com uma persona desprovida de qualquer motivação artística, apenas um interesse cínico em estrelato e dinheiro.
A razão para seu sucesso é que o primeiro single sob a alcunha, “Rock and Roll, Parts 1 and 2”, calhou de ser excelente. Composta em parceria com Mike Leander (famoso por ter feito o arranjo de “She’s Leaving Home”, dos Beatles), a faixa tem uma segunda parte que se tornou presença cativa em eventos esportivos nos EUA, além de ter sido sampleada em outras canções.
Glitter teve 11 singles consecutivos atingindo o top 10 britânico entre 1972 e 1975. O principal crítico musical do Daily Telegraph, Neil McCormick, descreveu a fama do cantor à BBC:
“No auge de sua fama Gary Glitter era um popstar muito, muito grande. Ele sempre foi uma figura meio cômica escrachada, e ele estava na TV batendo pé e tendo esses hits que crianças cantavam em playgrounds pra cima e pra baixo do país.”
Apesar de “Rock and Roll, Part 2” ter se tornado popular em eventos esportivos nos EUA – a canção chegou ao top 10 americano –, o músico nunca estourou no país de fato, sendo relegado à condição de one hit wonder.
O apelo nas paradas ao longo dos anos diminuiu. Ainda assim, ele continuou popular entre garotas adolescentes. Isso se tornou um problema.
Os crimes de Gary Glitter
Em novembro de 1997, Gary Glitter levou um notebook para ser consertado na cidade de Bristol. Durante os reparos, o técnico encontrou imagens pornográficas de crianças no disco rígido. A loja alertou as autoridades, que executaram um mandado de busca nas casas do cantor.
A reação midiática foi feroz. Uma participação do cantor no longa “Spice World”, estrelado pelas Spice Girls, chegou a ser cortada da versão final, mesmo com o girl group apresentando uma cover de seu single “I’m the Leader of the Gang (I Am)”.
Durante o julgamento desse caso, Glitter admitiu ter baixado mais de 4 mil arquivos de pornografia infantil. Foi sentenciado a 4 meses de prisão e teve seu nome colocado na lista oficial de criminosos sexuais do Reino Unido.
Porém, o cantor foi inocentado de ato libidinoso com menor no mesmo julgamento, referente a uma garota de 14 anos com quem ele teve uma relação nos anos 1970. Os sinais estavam lá.
Ao deixar a prisão, em 2000, Glitter decidiu sair do Reino Unido. Suas últimas palavras para a imprensa inglesa, segundo a BBC:
“Eu servi minha pena. Quero colocar tudo isso para trás e viver minha vida.”
Ele foi para a Espanha, onde morou por seis meses usando um nome falso. Quando sua identidade foi descoberta, deixou o país a bordo de seu iate, comprado com os royalties de um sample feito pelo Oasis da canção “Hello, Hello, I’m Back Again”.
Seu destino final, pelo menos por enquanto, foi o Camboja. Quando autoridades locais descobriram sua identidade e os crimes cometidos, ele foi expulso do país em 2002, sendo enviado à Tailândia. De lá ele decidiu morar no Vietnã.
Mais crimes, agora no Vietnã
Em março de 2005, autoridades vietnamitas foram alertadas sobre suas atividades devido a Gary Glitter ter sido expulso de uma boate após ter apalpado uma garçonete adolescente e supostamente ter sido visto por testemunhas levando duas garotas menores de idade para sua casa em Vũng Tàu.
Gary se tornou foragido em novembro daquele ano. Autoridades encontraram uma garota de 15 anos morando na casa. O músico foi preso no aeroporto internacional de Ho Chi Minh City, tentando fugir do país.
Uma das garotas vista indo para a casa de Glitter confirmou à polícia ter feito sexo com o cantor. Ela tinha apenas 12 anos de idade. Outra vítima encontrada tinha 11.
Glitter foi exonerado em dezembro de 2005 da acusação de estupro de menor após o cantor indenizar as famílias das garotas, que pediram clemência ao governo. Ele foi julgado e condenado a 3 anos de prisão por atos libidinosos com menores em 2006.
Numa declaração oficial, registrada pela Associated Press (via BBC), o juiz do caso, Hoàng Thanh Tùng disse:
“Ele abusou sexualmente e cometeu atos obscenos com crianças em uma maneira nojenta e doentia.”
O cantor cumpriu a pena e, ao ser libertado, foi deportado de volta ao Reino Unido. Glitter expressou, através de sua advogada, o desejo de continuar morando na Ásia – o que causou o governo britânico a ameaçar lançar uma ordem contra sua entrada em qualquer país.
Autoridades vietnamitas entregaram Glitter para a polícia britânica em Bangkok, onde o cantor tentou alegar problemas de saúde que o impediam de viajar. Após um médico o declarar saudável, ele tentou permanecer na Tailândia, até ter sua presença no país recusada pelo governo, como uma ameaça à moralidade do país.
Ele retornou à Inglaterra em 21 de agosto de 2008, onde foi recepcionado por autoridades.
Gary Glitter e Jimmy Savile
A conta de Gary Glitter finalmente chegou em outubro de 2012. Um documentário da ITV chamado “The Other Side of Jimmy Savile”, detalhando inúmeras acusações de abuso sexual cometidas pelo apresentador inglês, trazia também alegações de estupros cometidos pelo cantor no camarim particular de Savile.
Glitter foi detido em 28 de outubro para interrogatório relacionado à Operação Yewtree, que investigava crimes sexuais cometidos por figuras da indústria do entretenimento.
O músico foi formalmente acusado em junho de 2014 e condenado em fevereiro de 2015 a 16 anos de prisão por tentar estuprar uma garota com menos de 10 anos de idade, além de quatro crimes de agressão sexual e uma acusação de ato libidinoso com uma garota menor de 13 anos de idade.
Acabou solto em liberdade condicional em fevereiro de 2023, ao cumprir metade da pena. Foi preso novamente apenas um mês depois, após não cumprir os termos estabelecidos pela Justiça inglesa. Uma investigação concluiu que ele usou um smartphone, o que era proibido. Uma conversa gravada dava conta de que ele queria acessar a “Onion”, termo usado para se referir à Dark Web, rede frequentada por pedófilos onde o rastreamento é mais difícil.
A condenação de Gary Glitter, cuja história será explorada em um documentário da Netflix, veio em meio a outras sete relacionadas à Operação Yewtree. O resultado das investigações estremeceu o Reino Unido, forçando o país a reavaliar a posição de figuras populares na história recente do país. Infelizmente, o maior criminoso sexual revelado, Savile, escapou da justiça por ter falecido em 2011.
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