A crítica negativa do New York Times a “Sgt. Pepper’s”, dos Beatles, em 1967

“A Day in the Life” é o momento que se salva do disco para quem escreveu a crítica; o tempo provou que essa pessoa estava errada

Não é algo tão incomum algum álbum clássico ter recebido uma crítica negativa à época do seu lançamento, especialmente por conta do fato de alguns jornalistas musicais tentarem adotar uma postura “diferencial” enquanto ao público generalista. Também há o aspecto de uma obra ser tão fora dos padrões que acaba causando um estranhamento inicial.

É possível que “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” tenha causado o segundo efeito em 1967. O trabalho icônico dos Beatles revolucionou a indústria e é uma das maiores referências em qualquer segmento artístico hoje, mais de meio século após ter chegado ao mercado.

- Advertisement -

O The New York Times, impresso que virou sinônimo de jornal em todo o planeta, republicou a resenha original do play. Diz ela:

“Ainda precisamos dos Beatles, mas…

Os Beatles gastaram quatro meses sem precedentes e US$ 100.000 em seu novo álbum, ‘Sergeant Pepper’s Lonely Heart’s Club Band’ (Capitol SMAS 2653, mono e estéreo). Como futuros pais, eles acompanharam de perto cada estágio de sua gestação. Pois eles não são mais apenas superestrelas. Aclamados como progenitores de uma vanguarda pop, eles foram idolatrados como os membros mais criativos de sua geração. A pressão para criar um álbum complexo, profundo e inovador deve ter sido impressionante. Então eles se retiraram para a santidade elétrica de seu estúdio de gravação, dispensando seu público adorador e a inspiração estridente que ele pode fornecer.

O produto acabado alcançou as prateleiras de discos na semana passada; os Beatles supervisionaram até a capa do álbum – uma colagem alucinante de pessoas famosas e obscuras, plantas e artefatos. As 12 novas composições são tão elaboradas quanto a imagem. O som é um pastiche de dissonância e exuberância. O clima é suave, até mesmo nostálgico. Mas, como a capa, o efeito geral é movimentado, moderno e confuso.

Como uma criança superestimada, o ‘sargento Pepper’ é mimado. Cheira a trompas e harpas, quartetos de gaitas, sons variados de animais e uma orquestra de 91 peças. Em pelo menos um corte, os Beatles não são ouvidos instrumentalmente. Às vezes, esse elaborado suporte musical consegue projetar o humor. O tema ‘Sergeant Pepper’ é atrevido e vaudevilliano. ‘She’s Leaving Home’, uma saga doméstica melodramática, flui em uma nuvem de cordas celestiais. E no que está se tornando uma tradição, George Harrison revela sua última excursão ao curry e ao karma, com o acompanhamento picante de três tambouras, um dilruba, uma tabla, uma cítara, uma harpa de mesa, três violoncelos e oito violinos.

A música de Harrison, ‘Within You and Without You’, é um bom lugar para começar a dissecar ‘Sgt. Pepper’. Embora esteja entre os momentos mais fortes, suas falhas são dolorosamente típicas do álbum como um todo. Comparada com ‘Love You To’ (contribuição de Harrison para ‘Revolver’), esta melodia mostra uma consciência expandida dos ragas indianos. A voz de Harrison, pairando a meio caminho entre a canção e o canto de oração, escorre sobre a melodia como queijo derretido. Na cítara e no tamboura, consegue uma notável síntese pop. Como seus motivos raga não são meros enfeites, mas estão embutidos na própria estrutura da música, ‘Within You and Without You’ parece perfeita. Estica, mas cabe.

Que pena, então, que as letras de Harrison sejam sombrias e monótonas. ‘Love You To’ explodiu com uma qualidade de sutra apaixonada, mas ‘Within You and Without You’ ressuscita os próprios clichês que os Beatles ajudaram a enterrar: ‘Com nosso amor/Poderíamos salvar o mundo/Se eles soubessem’. Todas as escalas menores do Oriente não a tornariam profunda.

A obsessão pela produção, aliada a uma surpreendente mesquinhez na composição, permeia todo o álbum. Não há nada bonito em ‘Sgt Pepper’. Nada é real e não há nada para se preocupar. A obscenidade de Lennon tornou-se mero capricho em ‘Being for the Benefit of Mr. Kite’. Os crescentes magnificats pop de Paul McCartney tornaram-se apenas educadamente profundos. ‘She’s Leaving Home’ preserva toda a grandeza orquestrada de ‘Eleanor Rigby’, mas sua estrutura é emaciada. Este conto de uma moça provinciana que abandona uma vida doméstica reprimida, deixando os pais soluçando em seu rastro, simplesmente não é páreo para aquelas cordas imponentes e rodopiantes. Onde ‘Eleanor Rigby’ comprimiu a tragédia em detalhes pungentes, ‘She’s Leaving Home’ é uma narrativa sem inspiração e nada mais. Na terceira audiência deprimente, começa a soar como uma imensa encenação.

Certamente há elementos burlescos em uma composição como ‘When I’m 64’, que coloca a questão crucial: ‘Você ainda precisará de mim/Você ainda me alimentará/quando eu tiver 64 anos?’ Mas o tom dominante não é de zombaria; esta é uma aposentadoria de fantasia, repleta de netos, jardinagem e uma modesta casa de campo na Ilha de Wight. Os Beatles cantam ‘Vamos economizar e economizar’ com total reverência. É um conto de fadas estranho, estranhamente triste porque está longe da realidade dos compositores. Mas mesmo aqui, uma visão honesta é arruinada pelo pano de fundo que procura aprimorá-la.

‘Lucy in the Sky With Diamonds’ é uma curiosidade envolvente, nada mais. Está encharcada de reverb, eco e outras distorções de estúdio. O tom supera o significado e nos perdemos em meandros eletrônicos. As melhores melodias dos Beatles são simples, embora com progressões originais acompanhadas de letras pungentes. Mesmo suas composições mais radicais mantêm um senso de unidade.

Mas, pela primeira vez, os Beatles nos deram um álbum de efeitos especiais, deslumbrante, mas fraudulento. E pela primeira vez, não é a exploração que sentimos, mas a consolidação. Há um toque do Jefferson Airplane, um pouco das vibrações dos Beach Boys e um toque generoso de ginástica do The Who.

O único toque evidente de originalidade aparece na própria estrutura do álbum. Os Beatles encurtaram o intervalo entre os cortes para que uma música pareça correr para a próxima. Isso produz a possibilidade de uma sinfonia pop ou oratório, com movimentos distintos, mas relacionados. Infelizmente, não há desenvolvimento temático aparente na colocação dos cortes, exceto pelas justaposições efetivas de estilos musicais opostos. Na melhor das hipóteses, as músicas são apenas vagamente relacionadas.

Com uma exceção importante, ‘Sgt Pepper’ é precioso, mas desprovido de pedras preciosas. ‘A Day in the Life’ é um afastamento tão radical do espírito do álbum que quase merece sua posição peninsular (seguindo a reprise do tema ‘Sgt Pepper’, vem quase como uma reflexão tardia). Não tem nada a ver com postura ou fingimento. É uma excursão mortalmente séria em música emotiva com uma letra arrepiante. Sua orquestração é dissonante, mas esparsa, e seu clima não é de nostalgia caprichosa, mas de ironia.

Leia também:  David Gilmour revela quando percebeu que “menos é mais”

Com ele, os Beatles produziram um vislumbre da vida urbana moderna que é aterrorizante. É uma das composições mais importantes de Lennon-McCartney e é um evento pop histórico.

‘A Day in the Life’ começa com uma descrição do suicídio. Com a mesma concisão exibida em ‘Eleanor Rigby’, o protagonista começa: ‘Eu li as notícias hoje, oh boy’. Essa leve interjeição é o primeiro indício de sua desilusão; comparado com o que se segue, é extremamente irônico. ‘Eu vi a fotografia’, continua ele, na voz de um melancólico menino de coral:

‘Ele explodiu sua mente em um carro

Ele não percebeu que as luzes tinham mudado

Uma multidão de pessoas ficou olhando fixamente

Eles tinham visto seu rosto antes

Ninguém tinha certeza se ele era da Câmara dos Lordes.’

‘A Day in the Life’ nunca poderia chegar ao Top 40, embora possa influenciar muitas canções que o fazem. Sua letra certamente trará uma onda repentina de tragédia pop. A multidão sem rumo, semelhante a T. S. Eliot, sempre enfrentando a dor e se afastando, pode muito bem se tornar um símbolo comum. E seu narrador, subjugado pela totalidade de seu desespero, pode reaparecer em inúmeras composições como o herói silencioso e retraído.

Musicalmente, já há indícios de que a atonalidade intensa de ‘A Day in the Life’ é a chave para o som de 1967. O rock eletrônico, com o objetivo de surpreender o público, chega em meia dúzia de lançamentos importantes. Nenhuma dessas canções tem a intensidade controlada de ‘A Day in the Life’, mas a vontade de muitos músicos contidos de ‘deixar ir’ significa que um pop aleatório sério pode estar a caminho.

Em última análise, no entanto, é o alvoroço sobre a suposta influência de drogas nos Beatles que pode impedir que ‘A Day in the Life’ alcance o grande público. O refrão da música irritou os disc jockeys supersensíveis à ‘subversão oculta’ do rock ‘n’ roll. Na verdade, dentro da própria estrutura de ‘A Day in the Life’ pode-se defender a crença de que os Beatles – como tantos compositores pop – estão cientes dos altos e baixos da consciência.

A música é construída sobre uma série de passagens tensas e melancólicas, seguidas de lançamentos crescentes. Na estrofe de abertura, por exemplo, a voz de John quase falha de desespero. Mas depois do convite, ‘Eu gostaria de ligá-lo’, os Beatles inseriram um extraordinário impulso atonal que é chocante, até mesmo doloroso, para os ouvidos. Mas envolve a música de maneira brilhante e, se o refrão que a precede sugere uma excitação, o crescendo é paralelo a uma ‘pressa’ induzida por drogas.

A ponte começa em um fogo cruzado staccato. Sentimos o narrador se levantando, se vestindo e se deslocando rotineiramente. A música é nervosa com a dissonância do jazz de cabaré. Um tambor percussivo derrete em um som ofegante de ferrovia. Então:

‘Encontrei meu caminho lá em cima e fumei

Alguém falou e eu entrei em um sonho’

As palavras se transformam em um canto de acordes livres e espaçosos, como o ‘zumbido’ inicial da maconha. Mas o tom se torna misterioso e sinistro. As cordas profundas nos levam a uma descida wagneriana e voltamos ao tema original do blues e à declaração original: ‘Eu li as notícias hoje, oh boy’.

Na verdade, é difícil entender por que a BBC proibiu ‘A Day in the Life’, porque sua mensagem é, claramente, a fuga da banalidade. Descreve uma realidade profunda, mas certamente não a glorifica. E sua conclusão, embora magnífica, parece representar uma negação de si mesmo. A música termina com uma nota baixa e ressonante que é sustentada por 40 segundos. Tendo alcançado a paz absoluta da anulação, o narrador está além da melancolia. Mas há algo taciturno e irrevogável em sua calma. Parece destruição.

Que pena que ‘A Day in the Life’ é apenas uma coda para uma coleção de trabalhos de outra forma indistinta. Precisamos dos Beatles, não como compositores enclausurados, mas como companheiros. E eles precisam de nós. Ao substituir o conservatório do estúdio por uma audiência, eles deixaram de ser artistas folk, e a mudança é o que torna seu novo álbum um monólogo.”

Beatles e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”

Lançado em 26 de maio de 1967, o oitavo trabalho de inéditas do quarteto de Liverpool representou uma quebra de vários paradigmas no mundo pop, inovando em aspectos de produção, arte e promoção.

É considerado o momento em que os álbuns passaram a ter um sentido mais amplo, indo além de uma simples compilação de músicas sem linearidade, estabelecendo os padrões do que viriam a ser os futuros trabalhos conceituais.

A banda que dá nome ao play é uma ideia de Paul McCartney, visando estabelecer um alter ego que permitiu ao Fab Four experimentar com outros estilos fora do contexto do rock.

“Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” vendeu mais de 32 milhões de cópias, chegando ao topo das principais paradas do planeta. No Brasil, ganhou disco de ouro. Foi o primeiro representante do rock a ganhar o Grammy na categoria Álbum do Ano – além de ter faturado outras três estatuetas.

Clique para seguir IgorMiranda.com.br no: Instagram | Twitter | Facebook | YouTube.

ESCOLHAS DO EDITOR
InícioCuriosidadesA crítica negativa do New York Times a “Sgt. Pepper’s”, dos Beatles,...
João Renato Alves
João Renato Alveshttps://twitter.com/vandohalen
João Renato Alves é jornalista, 40 anos, graduado pela Universidade de Cruz Alta (RS) e pós-graduado em Comunicação e Mídias Digitais. Colabora com o Whiplash desde 2002 e administra as páginas da Van do Halen desde 2009. Começou a ouvir Rock na primeira metade dos anos 1990 e nunca mais parou.

DEIXE UMA RESPOSTA (comentários ofensivos não serão aprovados)

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui


Últimas notícias

Curiosidades