O samba diferente de “Acabou Chorare”, dos Novos Baianos

Álbum lançado em 1972 fez história ao criar um rock brasileiro, deixando de ser mera reprodução mecânica do gênero de origem americana

Escrever sobre uma obra clássica é sempre uma tarefa difícil. O espaço para novas contribuições é pequeno e o lugar para críticas parece inexistente – afinal, o que mais pode ser dito sobre uma estabelecida produção cultural 50 depois de seu lançamento? É esse o caso de “Acabou Chorare”, segundo trabalho da banda Novos Baianos, responsável pela consagração do grupo na história da música popular brasileira.

Originalmente uma banda de rock, os Novos Baianos abraçaram aqui, em definitivo, as sonoridades regionais e tornaram-se conhecidos como um dos mais criativos grupos da MPB.

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Toda essa transformação é acompanhada de diversos relatos e parece-me interessante pensar em “Acabou Chorare” como o resultado de um conjunto de relações, principalmente a incrível história do convívio que os músicos tiveram com João Gilberto, mais importante nome da bossa nova. É desse modo que os integrantes dos Novos Baianos contam sua própria história, então vamos segui-los.

Não se assuste pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa

O começo dos Novos Baianos remonta a amizade entre Moraes Moreira e Luiz Galvão, apresentados por Tom Zé na década de 1960, em Salvador. Paulinho Boca de Cantor, experiente vocalista da noite soteropolitana, e Baby Consuelo, cantora vinda de Niterói, entram no jogo pouco depois, dando origem à formação básica do projeto. Ao vivo, o grupo era reforçado por Pepeu Gomes na guitarra, Dadi no baixo, Jorginho Gomes na bateria, e Baixinho na percussão – banda que ficaria conhecida posteriormente como A Cor do Som.

A estreia do grupo ocorreu em 1969, no espetáculo “O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal”, que contou com a presença de uma equipe ainda maior. Misturando música e teatro, o show teve a direção de Luiz Galvão, na maioria das vezes apresentado também como mentor intelectual do conjunto.

No fim deste mesmo ano de 1969 é que surge o nome Novos Baianos, quando da participação do grupo no V Festival Internacional da Canção, realizado pela TV Record, em São Paulo. Marcos Rizzo, um dos diretores da emissora, batizou a banda dessa forma em referência à longa tradição de baianos na música brasileira, de Dorival Cayimmi e João Gilberto aos baianos tropicalistas.

O primeiro disco do conjunto é lançado em 1970 pelo selo RGE e tem o nome de “É Ferro na Boneca”. Produzido por João Araújo, em São Paulo, a sonoridade do álbum se aproxima bastante dos primeiros trabalhos de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes.

Vocais e violões ecoados, guitarras em primeiro plano, bateria, flauta e saxofone, claramente um trabalho de inspiração tropicalista. Pepeu e Dadi gravaram apenas algumas músicas de “É Ferro na Boneca” e não aparecem na capa.

Duas faixas fizeram relativo sucesso: “De Vera” e “Colégio de Aplicação”. Meu destaque pessoal é para a música “Baby Consuelo”.

O texto de apresentação do disco é assinado por Caetano Veloso:

“[…] vocês me pedem que eu os apresente. Mas eu estou indo embora e só aceito deixar um bilhete para vocês mesmo. Estive esse tempo pensando aqui e vi que vocês estão respondendo a nova Bahia com o mesmo humor terrível com que ela questiona. Mandem brasa, Brasil Varandá. Mais um. Mais dois. Enquanto nós cantarmos Ferro na Boneca, Ferro na Boneca. Mesmo que não dê em nada, eu quero seus lábios abertos numa sujeita geral.”

Segundo escreve Nelson Motta em um pequeno parágrafo no jornal O Globo, em 26 de março de 1974, “É Ferro na Boneca” não teve grande repercussão.

Baby do Brasil, em entrevista ao Correio Braziliense em 2017, comenta o trabalho da seguinte maneira:

“Foi um susto para muitos, escândalo para outros e grande alegria para tantos outros que estavam quase órfãos do tropicalismo, pois Caetano e Gil tinham saído para o exílio e todos estávamos tristes.”

As visitas de João Gilberto

Após o Festival da Canção, os Novos Baianos se mudaram para o Rio de Janeiro, onde passaram a dividir a cobertura de um apartamento no bairro de Botafogo. Cada casal tinha um quarto na residência e a vida acontecia de maneira coletiva.

Em uma noite, um sujeito de terno e gravata, segurando uma espécie de maleta, bateu na porta do apartamento. Dadi, baixista do grupo, inicialmente pensou que se tratava da polícia, mas era na realidade João Gilberto, ícone da bossa nova e amigo de Luiz Galvão.

As visitas de João Gilberto repetiram-se diversas vezes, sempre à noite, e duravam dias. Pepeu Gomes conta que um armário foi desfeito e transformado em palco para que João pudesse se apresentar. Ali, sentados em torno do conterrâneo de Galvão, os Novos Baianos foram introduzidos a um conjunto de antigas referências da música regional brasileira – algo semelhante a uma oficina musical ministrada por um competente professor.

Em entrevista ao programa O Som do Vinil, Moraes Moreira conta que, nessas ocasiões, ninguém encostava nos instrumentos. João apresentava as canções e pedia que cada novo baiano cantasse em um tom, com uma harmonia diferente. Pepeu e Jorginho foram encorajados a experimentar novos instrumentos e Moraes fala do “roubo de acordes” cometido por ele e por Pepeu. Em outra situação, o mesmo Moraes contou:

“Então ele [João Gilberto] disse: ‘vocês precisam olhar mais para dentro de si mesmos’. E começou a nos mostrar a música brasileira que a gente não conhecia, nomes como Assis Valente, Ary Barroso, Lupicínio Rodrigues. Isso foi bem na época de ‘Acabou Chorare’, que é repleto de influências do João Gilberto.”

(Novos Baianos na mídia; Amanda Aparecida Helena, Ana Lúcia Dias Batista, Jacqueline Guerra Calçado, sem data)

Pepeu Gomes sinaliza que aprendeu a tocar violão, cavaquinho e bandolin com João, além do que ele chama de “guitarra brasileira”. Em entrevista ao Guia da Semana, em 2011, ele relata que:

“Queríamos fazer música brasileira e internacional de raízes misturadas e foi o João quem nos mostrou o caminho. Sempre fomos fãs do seu trabalho e a convivência com ele foi a melhor coisa que aconteceu nos Novos Baianos. Ele me ensinou a ser um músico universal, tocar samba e qualquer ritmo na guitarra, bandolim, cavaquinho, e a dar importância a esses instrumentos na música brasileira, que naquele momento estava esquecida. Fizemos um regional brasileiro com os acordes de Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo, tentamos imitá-los em Noites Cariocas, Brasil Pandeiro e isso deu uma personalidade muito forte ao grupo e uma direção muito significativa. O João foi fundamental no posicionamento cultural dos Novos Baianos.”

Luiz Galvão, em blog pessoal, anota que:

“João Gilberto é para os Novos Baianos mais que mestre, porque, desde que ele começou a frequentar o nosso apê, os fantasmas e baixos astrais que invadiam nossa intimidade, incomodando-nos por demais, desapareceram como que por encanto. Foi exorcismo por cosmocracia. E, de quebra, rolaram sambas cinco estrelas que estavam guardados na memória nacional lá no coração João Gilberto. João é o canto vivo da nossa memória e existem músicas que nunca foram gravadas e só ele as sabe.”

No jornal O Globo, em 3 de fevereiro de 1974, Nelson Motta destaca a história em um texto sobre João Gilberto.

Deixando a cidade

Saindo da RGE após o primeiro disco, os Novos Baianos entram em um breve acordo com a Phillips, com quem gravam apenas um compacto duplo, em 1971. Acompanhando João Araújo, mudam novamente de gravadora e entram na recém fundada Som Livre. Na mesma época, transferem-se também para o sítio Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá. À Revista Trip, em 2010, Paulinho Boca de Cantor explica a ida para a zona rural do bairro carioca:

“Acabamos saindo do centro porque estávamos manjados, dando pinta. Todo mundo estava cabeludo, nego dando recado. Era melhor arranjar um lugar tranquilo, natural, que tivesse mato”.

Os Novos Baianos no sítio Cantinho do Vovô; foto da contracapa de “Acabou Chorare”

As músicas de “Acabou Chorare” foram majoritariamente compostas neste local, nos meses seguintes às visistas de João no apartamento em Botafogo. O disco foi gravado em 4 canais e inteiramente ao vivo.

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Segundo conta Dadi, a banda estava muito bem ensaiada e sabia o que tinha de fazer. Os Novos Baianos ao vivo nessa época podem ser conferidos no vídeo abaixo, parte do documentário “Novos Baianos Futebol Clube”, dirigido por Solano Ribeiro.

Faixa a faixa

“Brasil Pandeiro”, canção que abre “Acabou Chorare”, é significativa em muitos sentidos. Exaltação do Brasil à maneira do freguês, a faixa foi composta por Assis Valente em 1940 e, originalmente, endereçada a Carmen Miranda, que a recusou.

Após conhecerem a canção com João Gilberto, os Novos Baianos escolheram colocá-la como a música que primeiro apresenta a transformação do grupo. Não há guitarras, mas sim violão, cavaquinho e pandeiro do samba. Moraes Moreira puxa no violão e divide os vocais com Baby do Brasil. Pepeu Gomes toca viola, Jorginho assume o cavaquinho e Paulinho Boca de Cantor, o pandeiro.

A música seguinte, das mais conhecidas do disco, é “Preta Pretinha”. A composição de Galvão e Moraes é bastante contrastiva com a faixa anterior, pois é bem menos agitada.

De letra fácil, Moraes Moreira voltaria a compor canções semelhantes em sua carreira solo, como “Desabafo e desafio” e “Nesse mar, nessa ilha”.

“Tinindo Trincando”, terceira música do disco, é a primeira em que a guitarra de Pepeu Gomes aparece, juntamente com maior presença do baixo de Dadi.

Baby Consuelo é quem interpreta a canção, um rock com muito groove que acaba virando um rock com muito groove à brasileira, dada a entrada o triângulo e da percussão de Paulinho Boca de Cantor. Décadas depois, grupos como o Raimundos voltariam a usar triângulo em músicas de rock, uma grande novidade nos anos 1990.

“Swing de Campo Grande” é um samba violado. Como em outras músicas de “Acabou Chorare”, os instrumentos entram aos poucos e, no final, explodem todos de uma vez.

Além do início da canção ter o tradicional voz e violão de Moraes Moreira, Jorginho Gomes executa um belíssimo solo de cavaquinho na metade da canção.

A faixa-título “Acabou Chorare”, uma espécie de canção de ninar, tem sua história vinculada a Bebel Gilberto, filha de João Gilberto e Miucha, que verbalizou a expressão após se levantar de uma queda. João contou a história aos Novos Bainos, Galvão e Moraes surgiram com a letra e a música tornou-se uma das mais conhecidas da carreira do grupo.

“Mistério do Planeta”, outra canção de sucesso, apresenta, na opinião deste que escreve, a melhor melodia, arranjos, execução e letra do álbum. Documento vivo do desbunde brasileiro, a composição de Galvão e Moraes pode ser lida sem melodia, sem ritmo; é autossuficiente como “filosofia” pessoal, poesia.

Adicione-se a isso o contraste entre o violão de Moraes no começo da faixa e o solo hendrixiano de Pepeu do meio para o final da canção.

Por sua vez, “A Menina Dança” tornou-se a música símbolo de Baby nos Novos Baianos. Também composição de Galvão e Moraes, é mais uma das faixas do álbum em que o violão de Moraes aparece em primeiro plano para posteriormente dar espaço para a guitarra de Pepeu Gomes e a percussão de Paulinho Boca de Cantor.

“Besta é Tu”, espécie de samba baiano de Galvão, Pepeu e Moraes, foi enderaçada aos que possuiam uma compreensão um tanto restrita de política e viam os Novos Baianos como “desbundados”, hippies que supostamente não se importavam com a política nacional. Galvão, em sua obra de 1997, escreve que:

“Pessoal daquela juventude era só onda e já se começava a ouvir: ‘Futebol, não. Onze caras correndo atrás de uma bola. Que futilidade é futebol’. Os Novos Baianos vieram para dar um corte nessa pretensão.”

(Luiz Galvão, Anos 70: novos e baianos, 1997)

“Um bilhete pra Didi” é a última música de “Acabou Chorare” antes do repeteco de “Besta é Tu”. Forró instrumental, pouco a pouco a música vai do cavaquinho de Jorginho, o triângulo de Baby e o baixo de Dadi à guitarra distorcida de Pepeu. Esta segunda parte é uma aula de cromatismo!

Um bilhete para Didi

Mesmo não tendo sido bem sucedido em termos de crítica, “É Ferro na Boneca” recebeu alguma atenção dos jornais de São Paulo e Rio de Janeiro. “Acabou Chorare”, por sua vez, saiu-se bem desde o início, figurando nas listas de álbuns mais vendidos durante meses.

Folha de S. Paulo, 14 de novembro de 1972

As músicas de “Acabou Chorare” eram apresentadas ao vivo mesmo antes da gravação do disco. Em 22 de junho de 1972, o jornal Folha de S. Paulo destinou um bom espaço para falar dessas ainda novas canções, dando lugar para que alguns integrantes do grupo contassem sobre o trabalho.

Em 29 de outubro do mesmo ano, com o trabalho já lançado, o jornal O Globo, na seção dedicada aos discos, compara os Novos Baianos a baianos um pouco mais antigos.  

O Globo, 29 de outubro de 1972

No ano de 2007, a revista Rolling Stone Brasil divulgou uma lista contendo os 100 maiores discos da música brasileira na opinião de 60 “estudiosos, produtores e jornalistas” procurados pela revista. “Acabou Chorare” ficou em primeiro lugar, sendo destacado, em síntese, pelas transformações advindas das lições de João Gilberto.

Reuniões e homenagens

Após encerrarem sua trajetória como conjunto em 1979, os Novos Baianos já se reuniram duas vezes para turnês comemorativas. A primeira delas, em 1997, ocorreu em comemoração aos 25 anos de “Acabou Chorare”. A apresentação do conjunto no Heinekein Concerts pode ser conferida abaixo.

Mais recentemente, a partir de 2015, os músicos novamente se reuniram e realizaram dezenas de shows no Brasil e na Europa.

Em 2020, tristemente, Moraes Moreira sofreu um infarto e faleceu aos 72 anos. Desde então, ocorreram diversas homenagens ao artista, como o EP “Todos nós”, lançado por seu filho, Davi Morais, e as lives promovidas pelos Novos Baianos e por Armandinho.

Também em 2020, dez diferentes artistas fizeram uma releitura de Acabou Chorare” no Projeto Replay. As músicas foram gravadas ao vivo e as performances, registradas em vídeo e exibidas como episódios do Projeto, que promete produzir versões de outros clássicos da música nacional.

Andam dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato

No início da carreira, os membros dos Novos Baianos chamavam a atenção para a possibilidade de criar-se um rock brasileiro. A ideia era deixar de ser uma mera reprodução mecânica do gênero de origem americana, como se isso algum tivesse ocorrido.

Ao não abandonarem as guitarras e persistirem no estilo, ao mesmo tempo que atravessados pela maior transformação musical de suas vidas, os Novos Baianos acabaram por materializar uma das muitas possíbilidades de se fazer música brasileira. Cinco décadas depois, “Acabou Chorare” segue como um clássico de nosso som.

Os Novos Baianos – “Acabou Chorare”

Lançado em 1972 pela gravadora Som Livre.

  1. Brasil Pandeiro
  2. Preta Pretinha
  3. Tinindo Trincando
  4. Swing de Campo Grande
  5. Acabou Chorare
  6. Mistério do Planeta
  7. A Menina Dança
  8. Besta é Tu
  9. Um Bilhete Pra Didi
  10. Preta Pretinha (reprise)

Músicos:

  • Baby Consuelo – vocal, percussão (maracas, triângulo e afoxé)
  • Paulinho Boca de Cantor – vocal, percussão (pandeiro)
  • Pepeu Gomes – guitarra elétrica, violão solo, craviola, arranjos
  • Moraes Moreira – vocal, violão base, arranjos
  • Dadi Carvalho – baixo
  • Jorginho Gomes – bateria, cavaquinho, bongo

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Pedro Henrique Frasson Barbosa
Pedro Henrique Frasson Barbosa
Pedro Henrique Frasson Barbosa é graduado em Ciências Sociais (UFPR), mestre em Antropologia (UFPR) e doutorando em Antropologia (USP). Se aventura, de vez em nunca, no jornalismo musical, dando especial atenção às histórias, detalhes, mediações, bastidores e controvérsias.

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