Como Elis Regina gravou e apoderou-se de “Como Nossos Pais”, de Belchior

Compositor uniu espírito da época e relato pessoal em canção que ultrapassou gerações - e ganhou senso de urgência na voz da Pimentinha

Clássico de primeira grandeza da MPB, “Como Nossos Pais” é um dos maiores sucessos – se não o maior – de Elis Regina. A cantora apoderou-se da composição de Belchior tão claramente que é difícil imaginar a faixa sendo interpretada por outra voz.

Curiosamente, existe a versão do próprio Belchior, lançada no álbum “Alucinação”. Já a adaptação de Elis está presente no disco “Falso Brilhante”. Ambos os trabalhos foram divulgados ao público em 1976.

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Essa, aliás, não foi a primeira vez que os caminhos do compositor cearense e da intérprete gaúcha se cruzaram. Os dois se conheceram no início da década de 1970, na época do chamado “Pessoal do Ceará”.

Tempos difíceis para Belchior

Elis Regina já era celebrada dentro e fora do Brasil no início dos anos 70, mas Belchior ainda era relativamente anônimo. O cantor era parte de um grupo de artistas cearenses que começou a ganhar notoriedade naquela época, como Fagner, Ednardo, Amelinha, entre outros que hoje são celebrados.

Belchior chegou ao Rio de Janeiro em 1971 sem muitos recursos. Dormia em casas de amigos e parentes e até em obras. Após passar algum tempo tentando mostrar seu trabalho, ele conseguiu se encontrar com Elis Regina em São Paulo, enquanto ela participava de uma gravação com Toquinho e Vinícius de Moraes.

O compositor cearense relatou seu primeiro encontro com a cantora durante entrevista ao programa “Ensaio”, da TV Cultura, em 1992. Sem dinheiro e sem muita perspectiva, Belchior apelou à famosa “cara de pau” e foi bem-sucedido.

“Não posso mostrar minhas músicas para você porque não tenho gravador. Estou morando numa construção civil, não tenho violão. Portanto, se você não der todas as condições para que eu possa mostrar a minha música, nada feito. Se a senhora morar longe, a senhora me avisa logo o endereço hoje, pois eu tenho que sair exatamente agora. E se o convite for feito para uma hora especial, que seja a hora do almoço ou do jantar.” 

Foi assim que surgiu a parceria e a amizade dos dois. Não demorou muito até que Elis passasse a tecer elogios a Belchior na imprensa sempre que o nome do cearense era citado. Em matéria da revista Veja, em 1975, a cantora disse:

“Belchior não faz nada por fazer. Não vive de paetês e lantejoulas.”

Do primeiro encontro, Elis Regina acabou gravando “Mucuripe”, composição de Belchior e Fagner, em seu álbum homônimo de 1972.

Apenas três anos depois surgiria a música pela qual a parceria dos dois artistas seria marcada – e não foi exatamente em um disco, mas sim em um espetáculo que misturava música, circo e teatro.

Elis Regina e o Falso Brilhante

Em 1975, Elis Regina daria início a uma série de apresentações que iriam resumir sua vida e carreira até aquele momento. Com um clima circense e teatral, incluindo um importante trabalho de cenografia, surgia o espetáculo “Falso Brilhante”, onde ela interpretava duas músicas de Belchior: “Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais”.

A segunda canção, principalmente, se encaixava em um contexto de crítica à ditadura militar então vigente no Brasil. Elis era notória justamente por fazer críticas diretas ao regime, que a investigava frequentemente.

O sucesso foi tamanho que, em 1976, foi lançado um álbum também chamado “Falso Brilhante”. O trabalho reuniu algumas das canções interpretadas no espetáculo, incluindo as obras de Belchior.

Coincidentemente, no mesmo ano, o cearense lançou “Alucinação”, seu segundo disco de estúdio, contendo a versão dele para “Como Nossos Pais”.

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Nesse caso, a lendária voz de Elis Regina fez diferença e a versão mais lembrada é a dela, no entanto, a letra de Belchior se tornaria uma espécie de hino, ou mantra daquela geração – e também das próximas.

Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais…

“Como Nossos Pais” é uma música que o próprio Belchior definia como “ácida e amarga”. A composição aborda um conflito de gerações e uma certa frustração de sua época em relação à luta por mais liberdade.

Eram os “anos de chumbo”. A Tropicália já havia atingido seu auge no país e artistas de grande importância como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil chegaram a ser exilados. Na prática, porém, nada havia mudado.

Mais do que a crítica e o conflito geracional, Belchior transformou a letra em algo pessoal. A frustração expressada na música também era sua, como deixou claro em entrevista de 1996 ao programa “Nossa Língua”, da TV Cultura, apresentado pelo Professor Pasquale Cipro Neto.

“Como autor, estou comprometido com o personagem dela. Eu me identifico com o drama, com aquele conflito e também com o contraste que eventualmente o autor poderia elidir, mas que nesse caso não faz.”

A letra de “Como Nossos Pais” é uma prova da genialidade de Belchior como compositor, nem sempre compreendida pelo público, mas certamente vista por seus pares. Elis Regina, por exemplo, gravaria ainda mais uma composição dele e de Fagner, “Noves Fora”, que aparece no álbum “Elis Especial”, lançado em 1979.

Nem Elis, nem Belchior estão mais entre nós – ao menos em corpo. Ela faleceu ainda em 1982, aos 36 anos, em decorrência de uma overdose. Já ele nos deixou em 2017, aos 70, após passar alguns dos últimos anos de sua vida desaparecido da mídia e vivendo em diversos lugares do Brasil e Uruguai.

A letra de Como Nossos Pais

“Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida de qualquer pessoa

Por isso, cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens

Para abraçar meu irmão
E beijar minha menina na rua
É que se fez o meu lábio
O meu braço e a minha voz

Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantado como uma nova invenção
Vou ficar nesta cidade, não, não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação
E eu sinto tudo na ferida viva do meu coração

Já faz tempo, eu vi você na rua
Cabelo ao vento, gente jovem reunida
Na parede da memória
Esta lembrança é o quadro que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos, e vivemos
Ainda somos os mesmos, e vivemos
Como os nossos pais

Nossos ídolos ainda são os mesmos
E as aparências, as aparências não enganam, não
Você diz que depois deles, não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer que eu estou por fora
Ou então que eu estou inventando
Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo, o novo sempre vem

E hoje eu sei que quem me deu a ideia
De uma nova consciência e juventude
Está em casa, guardado por Deus
Contando vil metal

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos, e vivemos
Ainda somos os mesmos, e vivemos
Ainda somos os mesmos, e vivemos
Como os nossos pais”

* Texto por André Luiz Fernandes, com pauta e edição por Igor Miranda.

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André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes é jornalista formado pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Interessado em música desde a infância, teve um blog sobre discos de hard rock/metal antes da graduação e é considerado o melhor baixista do prédio onde mora. Tem passagens por Ei Nerd e Estadão.

6 COMENTÁRIOS

  1. O tom inicial da reportagem coloca Elis, quase como.uma vila, como quem se aproveitou de Belchior. Segundo ele proprio, Elis foi uma grande luz pra ele, revelando-o e dando moral ao artista e colocando-o no cenário nacional.
    Viva Elis!
    Viva Belchior!
    Presentes, sempre!!!

    • Acho que você interpretou mal. A apoderação citada no início é meramente artística. A voz dela simplesmente enlaçou a música de um jeito que fica difícil dissociar “Como Nossos Pais” de Elis. Ninguém se aproveitou de ninguém – e nada disso foi dito no texto.

  2. Na verdade tanto “Como Nossos Pais” como “Velha Roupa Colorida” questionam a Tropicália e a Contracultura, a primeira de forma mais sutil e a segunda de forma mais literal. Belchior, como representante de uma nova geração, opunha-se aos baianas Gil e Caetano, até porque a Tropicália já tinha dez anos e eles mesmos estavam mais palaþáveis para a indústcultural.

  3. Acho muito pesado falar que Elís morreu de over dose,isso nunca foi comprovado,não que eu não ache que ela eventualmente tivesse usado.
    A MPB é que teve uma over dose de Elís.

  4. Parabéns, até quê fim consegui lê algo interessante, muito melhor do que, esse politicarismo, que é o resto da política podre, isso é cultura, parabéns também para todos quê opinaram de forma cultural e inteligente.

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