A música “Hurt” acabou se tornando um grande sucesso associado ao lendário Johnny Cash após ser lançada por ele em 2002. Chega a ponto de muita gente nem saber que a faixa é originalmente do Nine Inch Nails, banda do multi-instrumentista Trent Reznor.
Como uma música feita por um artista tão diferente e de uma época tão distinta (Reznor a compôs em 1994) foi tão bem “adotada” pelo veterano do outlaw country?
Curiosamente, a história precisa voltar justamente à década de 90. Na época, a chegada do grunge mudou a dinâmica da indústria musical para muitos artistas – até mesmo para astros da velha guarda do country, que pouco ou nada têm a ver com rock. Cash foi um deles, pois acabou perdendo contrato com a gravadora Mercury Records, com quem trabalhou entre 1987 e 1991.
Um álbum natalino chegou a ser lançado por ele, através da Decca Records, logo em seguida. Contudo, algumas participações especiais começariam a soprar vida nova em sua carreira.
Um exemplo disso foi a presença dele em um episódio de Os Simpsons. Outro caso, mais ligado à música, foi a colaboração com o U2 na música “The Wanderer”, encerramento do álbum “Zooropa” (1993). A faixa foi composta por Bono especialmente para o veterano.
Johnny Cash e Rick Rubin
A colaboração com o U2 rendeu frutos: Johnny Cash assinou contrato com o selo American Recordings, de Rick Rubin. O produtor parecia estar em busca de novos desafios, após ter se consagrado tanto no hip hop (ao trabalhar com Public Enemy, Run-D.M.C e outros) quanto no rock e heavy metal (ao gravar Slayer, Danzig, Red Hot Chili Peppers e mais).
Na sequência, nasceu o projeto que recebeu apenas o título de “American Recordings” (1994), o 81º álbum de Cash. Enorme sucesso à época, o trabalho mesclava faixas originais do cantor junto a covers de Leonard Cohen, Tom Waits e outros.
A iniciativa foi tão bem-recebida que gerou uma série de discos baseados em versões, sempre alternando com faixas próprias. O segundo, “American II: Unchained” (1996), traz o Homem de Preto dando voz a composições de Jeff Beck, Tom Petty e Soundgarden. Em “American III: Solitary Man” (2000), há releituras para músicas de Nick Cave e U2.
Dá para notar que um padrão adotado nessa sequência é a escolha por músicas de artistas mais contemporâneos para as releituras. Quase sempre, o repertório trazia bandas bem mais jovens que o veterano do country.
A série chegaria então a “American IV: The Man Comes Around” (2002), onde Cash cantaria de Beatles a Depeche Mode, passando por Sting, Simon & Garfunkel. Em meio a tantos nomes consagrados, havia uma intimista versão para “Hurt”, do Nine Inch Nails, que deu muito certo.
“Hurt”: a sugestão de Rubin
A releitura de “Hurt” foi feita por indicação de Rick Rubin. Porém, ao ouvir a gravação original do Nine Inch Nails, o veterano cantor, de saúde já debilitada, não conseguia entendê-la. A culpa era dos efeitos sonoros, típicos do metal industrial.
Em entrevista à Rolling Stone, Rubin revelou como conseguiu convencer Cash a gravá-la.
“Acho que era difícil para ele ouvir. Então, mandei para ele a letra. Eu disse: ‘só leia a letra; se você gostar, então acharemos um jeito de fazê-la que vai combinar com você’.”
Dessa forma, o Homem de Preto foi convencido a trabalhar na regravação. A roupagem adotada foi bem diferente: basicamente só com um violão e um piano acompanhando, em uma pegada pra lá de minimalista.
A opinião de Trent Reznor
Com o sucesso da versão de Johnny Cash pra “Hurt”, Trent Reznor, o autor da música, foi perguntado em vários momentos sobre o que achava da faixa.
Inicialmente, a reação do frontman do Nine Inch Nails não foi das mais positivas, como ele comentaria com a Associated Press em 2004.
“Fiquei lisonjeado, mas francamente, a ideia me parecia um pouco enigmática de início. Soava… estranho para mim. Parecia muito estranho para mim ouvir a voz altamente identificável de Johnny Cash cantando-a. Não fiquei envergonhado nem nada, mas parecia que estava vendo minha namorada f**er com outra pessoa.”
Reznor contou ainda que só mudou de opinião depois de ver o clipe da música, dirigido por Mark Romanek. Nele, Johnny Cash canta em meio a um museu dedicado à sua vida e obra. Quase uma retrospectiva de uma gloriosa carreira, além de uma mensagem de despedida.
Dessa forma, a letra do Nine Inch Nails ganhou um novo significado, que o compositor rapidamente percebeu.
“Eu toquei o vídeo e uau… lágrimas escorrendo, silêncio, arrepios… uau. Eu perdi minha namorada, porque aquela música não é mais minha. Isso realmente me fez pensar sobre como a música é poderosa como um meio e como forma de arte.
‘Hurt’ nasceu quando escrevi algumas palavras e uma música no meu quarto como uma forma de manter são, sobre uma sensação desoladora e desesperadora que eu tinha – totalmente isolado e sozinho. De alguma forma, isso surge reinterpretado por uma lenda da música de um período/gênero bem diferente e ainda retém sinceridade e significado – diferente, mas tão puro quanto.”
O adeus a Johnny Cash
O sucesso de “Hurt” serviu como uma despedida de Johnny Cash. O músico faleceu no dia 12 de setembro de 2003, aos 71 anos, menos de um ano após o lançamento de “American IV: The Man Comes Around”, álbum que continha essa faixa.
Tanto o disco como a música foram um sucesso enorme, o maior de Cash em muitos anos. O clipe foi premiado com um Grammy e um MTV Video Music Awards, entre outras honrarias. O álbum, por sua vez, recebeu certificação de platina nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Alemanha, ultrapassando a marca de 1,5 milhão de cópias vendidas globalmente.
Hoje, certamente, é mais fácil ter contato com a versão de Johnny Cash do que com a do Nine Inch Nails – e Trent Reznor provavelmente se orgulha muito disso.
* Texto por André Luiz Fernandes, com pauta e edição de Igor Miranda.