Uma resenha publicada na revista Sounds quando “Rocka Rolla” chegou às lojas, no dia 6 de setembro de 1974, recomendava aos integrantes do Judas Priest: “Não larguem seus empregos regulares”. Pudera.
Gravado de madrugada e finalizado às pressas, o álbum de estreia da banda, sofreu em razão de sérias restrições orçamentárias. Apesar de Rob Halford (vocais), Glenn Tipton (guitarra), Ian Hill (baixo), K.K. Downing (guitarra) e John Hinch (bateria) terem ficado satisfeitos com o resultado das músicas no estúdio, a decepção veio quando receberam, pelo correio, uma cópia finalizada do vinil para ouvir pela primeira vez. Halford relembra na autobiografia “Confesso” (Belas Letras, 2021):
“Quando o ouvimos [o álbum], parecia fraco e diluído, nada parecido com o disco que achávamos que tínhamos feito. No estúdio, fomos com tudo, eu gritando a todo volume e o K.K. e o Glenn disparando riffs como se fossem balas de metralhadoras duplas. No entanto, a produção do Rodger [Bain] subtraiu essa força e deixou o som morno.”
Downing compartilha da mesma frustração, conforme relato em seu livro “Heavy Duty” (Estética Torta, 2021):
“O que mais nos irritou foi que o som do disco não se parecia em nada com o que pensávamos ter feito em estúdio. Em vez de deixar claras as nossas intenções, ‘Rocka Rolla’ infelizmente não tinha nenhuma força, nada de especial. Simplesmente não soava enérgico ou revigorante. Com isso, aprendemos uma lição crucial da indústria fonográfica: você pode estragar um bom disco se não masterizá-lo corretamente.”
Nas décadas seguintes, uma infinidade de relançamentos de “Rocka Rolla” e coletâneas dos primeiros anos do Judas Priest chegaram ao mercado, sem qualquer envolvimento da banda. Mas quando ninguém mais achava possível que isso mudaria…
Resgatando o passado
Durante a turnê “50 Heavy Metal Years”, em 2022, a gravadora que originalmente contratou o Judas Priest em 1974, Gull Records, e seu proprietário David Howells, decidiram vender as fitas máster e os direitos de publicação dos dois álbuns que possuíam: “Rocka Rolla” e o sucessor “Sad Wings of Destiny” (1975).
Após discussões e alinhamento com a empresária do grupo, Jayne Andrews, a Reach Music fez uma oferta à Gull. Os termos foram aceitos, o contrato de aquisição foi elaborado e, quase 50 anos após o lançamento, “Rocka Rolla” e “Sad Wings of Destiny” tornaram-se propriedade do Judas Priest.
Para celebrar a aquisição e garantir que esses álbuns históricos alcancem uma nova geração de fãs, o selo Exciter Records foi criado para relançar esses clássicos.
A primeira missão da Exciter Records, entretanto, foi recuperar as fitas máster originais de gravação multicanal de “Rocka Rolla”, armazenadas ao longo de décadas — e que, milagrosamente, ainda existiam e estavam em condições utilizáveis, graças aos cuidados do antigo proprietário. A partir dessas fitas, começou o processo de ressurreição do álbum, pelas mãos de Tom Allom, produtor de clássicos da banda como “British Steel” (1980) e “Screaming for Vengeance” (1982), entre outros, que explica:
“O que fizemos com as multitracks é algo bastante incomum: remixar completamente um álbum daquela época, do zero. Só para esclarecer, não estamos adicionando nada musicalmente. Não estamos regravando nenhuma parte… Estamos remixando, reequilibrando o som usando a tecnologia e as ferramentas modernas que temos hoje, para aprimorar o resultado sonoro e deixá-lo mais poderoso.”
O resultado dessa nova versão remixada já está disponível em todos os formatos, incluindo uma edição especial em vinil azul 180g exclusiva para o mercado europeu e uma edição em CD lançada no Brasil pela Hellion Records.

Mas, afinal, o que mudou no álbum que deu início a tudo para o Judas Priest?
Análise faixa a faixa
Antes de mais nada, a tracklist permanece inalterada: as mesmas 10 músicas do álbum original. Contudo, “Winter”, “Deep Freeze”, “Winter Retreat” e “Cheater” deixaram de ser uma coisa só. Notavelmente, Tom Allom optou por separar essas faixas, antes apresentadas em formato de suíte, deixando-as como músicas individuais — o que beneficia especialmente “Winter Retreat”, agora apta a reivindicar um lugar próprio no cânone baladístico setentista do Judas Priest junto a “Last Rose of Summer” e “Before the Dawn”.

Sonicamente, “Rocka Rolla” ganhou mais corpo e densidade. A mixagem nova traz uma “gordura” perceptível, com os preenchimentos de guitarra e a técnica de duplicação de oitavas, marca registrada de Downing e Tipton, mais claras e apreciáveis. Destaque também para a gaita de Halford e para os teclados de ambiência, que ganharam projeção.
“One for the Road” abre o disco celebrando o poder da música — ao cantar “Where would you be without music? You would be nowhere at all” (“Onde você estaria sem música? Você não estaria em lugar nenhum”), Halford ressalta o papel vital da arte na vida. A faixa, que prenuncia o apelo radiofônico que o Judas Priest desenvolveria em trabalhos posteriores, teve o ruído de fundo (“hiss”) antes perceptível na parte do solo de guitarra tratado com cuidado na nova edição. Além disso, tanto ela quanto a faixa-título ultrapassam o antigo fade-out, ganhando alguns segundos extras, ainda que o término em ambos os casos seja um tanto abrupto.
Interpretada por um Judas Priest ainda “chapéu-e-bigode” na TV britânica em 1974, “Rocka Rolla” foi um cartão de visitas clandestino — sua pegada blueseira e algo psicodélica nunca teve paralelo nos álbuns futuros da banda. As guitarras gêmeas de Tipton e Downing estão presentes, mas com um fraseado simplório se comparado à maestria posterior.
Usando o inverno como metáfora para solidão e angústia, “Winter” evoca isolamento, frieza interna e até fragilidade emocional. A produção original de Rodger Bain acentua esse clima quase Black Sabbath de tão sufocante, mas o novo tratamento de Tom Allom “oxigena” a faixa, deixando a densidade mais a cargo da letra, repleta de questionamentos existenciais.

Originalmente apenas um longo solo de guitarra despropositado de Downing, “Deep Freeze” surge na nova mixagem como um esforço coletivo da banda, em que Halford insere vocalizações (gemidos?) no meio da música e Tipton acrescenta improvisações de teclado ao final — elementos que antecipam a receita do sucessor “Sad Wings of Destiny”, especialmente em faixas como “Epitaph” e na instrumental “Prelude”.
Se “Winter Retreat” pode ser apontada como o momento mais terno e delicado da carreira do Judas Priest, “Cheater” reafirma as raízes blueseiras do quinteto — tanto na música quanto na letra, que narra a descoberta da traição da esposa, um confronto armado e a raiva do narrador evidenciada no refrão. O alicerce se dá num riff simples, porém marcante. A gaita de Halford soa nítida. O baixo elementar de Ian Hill ganha projeção, enquanto Glenn e K.K. entregam o tal riff por minutos a fio com a urgência de quem não vê a hora de o relógio parar.
Um passo em direção ao rock progressivo é dado com “Run of the Mill”, faixa de quase 8 minutos e 30 segundos, marcada por forte improvisação sobre uma base quase minimalista de Hill e Hinch. Surpreende a profundidade da letra, que fala de arrependimentos, especialmente considerando que foi escrita por Halford ainda na casa dos vinte anos. Destaca-se também a qualidade do canto na reta final, pós solo estendido de guitarra, agora apoiado por um teclado muito mais audível e atmosférico que na edição original.
“Dying to Meet You” também mergulha em territórios progressivos, especialmente em sua segunda parte — “Hero, Hero” — que dá nome a várias compilações de material inicial da banda e representa o que de mais heavy metal há em “Rocka Rolla”. A faixa também se beneficiou da remoção de ruídos na nova mixagem, trazendo mais clareza e força.

Uma versão “completa” de “Caviar and Meths” pode ser ouvida no álbum “Victim of Changes” (1998) de Al Atkins, vocalista original do Judas Priest e coautor de várias faixas de “Rocka Rolla”. Havia a esperança de que a edição comemorativa de 50 anos trouxesse à tona o que por décadas foi tratado como o Santo Graal do grupo — uma versão da faixa com letra —, mas isso não aconteceu. O encerramento de “Rocka Rolla” continua sendo um número instrumental, embora agora abdique do antigo fade-out em troca de alguns segundos extras.
Por fim, a ausência da versão original de “Diamonds and Rust” — bastante diferente da regravação de “Sin After Sin” (1977) e presente apenas em algumas edições — talvez seja a única falha notável desta edição comemorativa; ainda assim, prato cheio para os fãs.
O que dizem os músicos?
Em ocasião do lançamento da edição de 50 anos de “Rocka Rolla”, quatro dos cinco músicos envolvidos emitiram opiniões tão elogiosas que se tornam um argumento de venda mais contundente do que qualquer resenha publicada pela imprensa especializada.
Começando por Rob Halford, que define o disco como “Um pequeno passo para o metal, um grande salto para todo um gênero”:
“Uma jornada vitalícia pelo metal começou com essas músicas. É ótimo olhar para trás e ver nosso futuro se desdobrar — de pequenas sementes metálicas crescem enormes carvalhos do metal. Este álbum acendeu a chama eterna do metal — tão real e fresca quanto há cinco décadas.”
Glenn Tipton ressalta: “Foi aqui que tudo começou para nós e, 50 anos depois, temos uma excelente versão remixada e remasterizada do original… e a banda continua firme e forte!”
Ian Hill afirma: “Agora remixado por Tom Allom e remasterizado, ‘Rocka Rolla’ finalmente recebeu a produção que merecia!”
K.K. Downing completa: “Finalmente! O primeiro álbum do Judas Priest pode ser ouvido e apreciado da forma como sempre foi pensado!”
Obviamente, John Hinch não pôde dar sua opinião. O baterista, que se tornou persona non grata no círculo do Judas Priest após entrevista gravada e lançada pela gravadora Gull no CD “The Best of Judas Priest: Insight Series”, faleceu em 2021.
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