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A história de “Facelift”, quando o Alice in Chains antecipou o grunge

Antes do rótulo musical que definiria a década de 1990, quarteto de Seattle já deixava sua marca com dor, peso e identidade própria

Em 19 de maio de 1989, o jornal Seattle Times cravou: “O Alice in Chains pode ser a próxima banda de Seattle a assinar com uma grande gravadora. Representantes de várias delas devem comparecer ao show do quarteto — Layne Staley (vocal), Jerry Cantrell (guitarra), Mike Starr (baixo) e Sean Kinney (bateria) — nesta noite no VFW Hall, em Bellevue.”

A previsão se concretizou alguns meses depois. Após um período intenso de negociações, o AIC assinou contrato com a CBS Records (futura Epic) em 11 de setembro de 1989. Começava ali uma nova fase.

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Com o contrato em mãos, era hora de entrar em estúdio e deixar uma marca. Ou realizar uma cirurgia sonora, como Jerry apontou em entrevista ao Vice:

“Quando ‘Facelift’ foi lançado, ‘grunge’ nem era uma palavra ainda. Foi um período peculiar, já que o hair metal continuava em alta, com Poison, Warrant e Extreme emplacando seus discos de maior sucesso [‘Flesh & Blood’, ‘Cherry Pie’ e ‘Extreme II: Pornograffitti’, respectivamente].”

Mas era apenas questão de tempo…

Rejeições, descobertas e paisagens sonoras

Se o processo de assinar com uma gravadora foi demorado, encontrar um produtor também não foi tarefa fácil. O motivo? Pouco entusiasmo da indústria. Ao biógrafo David De Sola, autor do livro “Alice in Chains: A história não revelada” (Editora Ideal, 2016), o produtor Dave Jerden contou:

“Todo mundo recusou produzir a banda. Era a época do Guns N’ Roses, e todos estavam procurando alguém com uma voz aguda, algo mais próximo do Dio ou daquele padrão vocal mais tradicional do hard rock.”

Veterano da indústria, Jerden havia crescido nos anos 1960 e 1970, cultivando uma admiração por vozes mais graves, roucas e com influência do blues. Em 1988, ele ficou conhecido por seu trabalho em Nothing’s Shocking, do Jane’s Addiction — um álbum que redefiniu o rock alternativo da época. Assim que ouviu a demo do Alice in Chains, sua reação foi imediata: “Uau!”

Uma reunião entre Jerden e a banda foi marcada. O produtor e o Jerry Cantrell se entenderam logo de cara, mas ainda faltava repertório. A solução veio de duas demos anteriores, gravadas com o produtor Rick Parashar — que em breve ganharia fama por seu trabalho no álbum de estreia do Pearl Jam, Ten (1991). Dessas gravações preliminares saíram as faíscas que deram origem ao núcleo de “Facelift”. Jerden relembra:

‘We Die Young’ já estava lá, ‘Man in the Box’ também — e mais umas seis músicas que eram incríveis pra car#lho. Eles flertavam com vários estilos: punk, heavy metal, ainda estavam tentando encontrar sua identidade. A missão era eliminar tudo aquilo que eles definitivamente não eram.”

Ao Vice, Jerry recordou:

“Ele [Dave Jerden] curtiu demais. Disse: ‘Não tenho intenção de mexer em nada com vocês; só quero plugar os microfones, apertar o play e gravar’. E a gente pensou: ‘Perfeito, é você mesmo!’ [Risos.] Não queríamos que ninguém nos ‘manipulasse’ — nossa sonoridade é essa e pronto.”

Na época, Jerden finalizava a produção de “Ritual de lo Habitual”, o segundo disco do Jane’s Addiction. O álbum, ainda inédito, impressionou profundamente os integrantes do AIC. Segundo o engenheiro de som Ronnie Champagne, “eles só falavam daquilo”.

“Eles devoraram aquele disco. E enquanto gravávamos ‘Facelift’, a cabeça deles estava explodindo de novas referências. Eles estavam ouvindo um álbum que ninguém ainda conhecia, e ‘Ritual’ era uma obra cheia de paisagens sonoras grandiosas.”

Tirando o contratempo de Sean Kinney ter quebrado a mão cerca de um mês antes do início das gravações — segundo as notas do encarte do box “Music Bank” (1999), o incidente ocorreu “durante uma briga numa festa” —, o processo de “Facelift” transcorreu sem grandes percalços.

De acordo com Jerden, cada música era gravada entre cinco e dez vezes. Ele ouvia cada um dos takes e montava a versão final a partir dos melhores trechos. Como a banda não usava metrônomo — dispositivo que mantém o tempo exato da música para garantir uniformidade —, os andamentos variavam sutilmente. Ainda assim, o produtor escolhia o melhor take como base e, a partir dele, inseria partes de outros takes que estivessem no mesmo ritmo, compondo a faixa com precisão cirúrgica.

Além da edição detalhada, Jerden foi responsável por moldar um elemento essencial da identidade sonora da banda. Como explica o engenheiro de som Dave Hillis:

“Se você ouvir as demos, vai perceber que os andamentos eram sempre mais rápidos. O que o Dave fez foi desacelerar esses andamentos. Olhando em retrospecto, dá pra ver o quanto isso ajudou a definir a sonoridade do Alice — ficou mais pesado e mais sombrio.”

Censura, crueldade animal e um talk box que mudou tudo

Outra marca registrada que veio das mãos do produtor Dave Jerden foi o uso do talk box em “Man in the Box”, o principal single de “Facelift”. O efeito popularizado por Peter Frampton no clássico Frampton Comes Alive! (1976) já havia protagonizado sucessos como “Livin’ on a Prayer”, do Bon Jovi — número 1 nas paradas em 1986 e ainda onipresente nas rádios três anos depois, quando o Alice in Chains gravava “Facelift”. Jerden, aliás, ouviu a faixa no rádio enquanto dirigia rumo ao estúdio. Para ele, foi esse o ingrediente que fez toda a diferença para que a música se tornasse um sucesso.

Escrita a partir da perspectiva de um bezerro preso em uma caixa, à espera do abate, a letra de “Man in the Box” usa a crueldade animal como metáfora para falar de censura. Segundo relatos, a inspiração surgiu das impressões de Layne Staley sobre o controle de conteúdo na mídia, mas a composição tomou um novo rumo após um jantar com executivos da Columbia Records: alguns deles eram vegetarianos e mencionaram como os bezerros eram criados confinados em pequenas caixas para a produção de vitela. O impacto da conversa ampliou o conceito da música, que passou a explorar os paralelos entre repressão e sofrimento físico.

Ao contrário do que muitos executivos do mercado fonográfico afirmariam anos depois, “Man in the Box” quase ficou de fora do álbum. Ao jornalista Greg Prato, Jerry Cantrell contou:

“Já conversei com a gravadora sobre isso, e todo mundo convenientemente esquece que ninguém gostava dessa música. Achavam que era lenta e arrastada demais. Chegaram a sugerir que talvez nem entrasse no disco. A gente respondeu: ‘Vão se foder — essa música é matadora’.”

O clipe de “Man in the Box” foi dirigido por Paul Rachman. No final dos anos 1980 e início dos 1990, o mercado estava saturado de hair metal, estilo com o qual Rachman, conhecido por seu trabalho com bandas hardcore como Bad Brains e Suicidal Tendencies, não se identificava. Por isso, ele recebeu com entusiasmo a chegada do grunge e a chance de explorar novas atmosferas visuais.

As filmagens aconteceram em uma fazenda nos arredores de Los Angeles, nas montanhas de Santa Monica. Rachman e Staley conceberam juntos o conceito do clipe, que foi rodado em preto e branco e tratado na pós-produção com uma coloração sépia. O resultado foi um marco visual do grunge e uma referência estética para o gênero. Logo em seguida, Rachman dirigiria “Hunger Strike”, do supergrupo Temple of the Dog, trabalhando com dois pilares do movimento de Seattle: Chris Cornell e Eddie Vedder.

O clipe de “Man in the Box” também chamou a atenção de Sammy Hagar, que convidou o Alice in Chains para abrir shows do Van Halen. Foi a maior oportunidade da banda até então — e a realização de um sonho de infância de Staley. Infelizmente, acredita-se que foi justamente durante essa turnê que o vocalista teve seu primeiro contato com a heroína, iniciando um vício que, anos mais tarde, o levaria à morte.

Feridas abertas

Embora Layne Staley ainda não fosse viciado em heroína na época da gravação de “Facelift”, muitas das letras do álbum já abordavam o tema da dependência química de maneira intensa e premonitória.

Em “I Can’t Remember”, por exemplo, os versos sugerem os efeitos colaterais do uso de certas drogas, como perda de apetite, agitação, dores de cabeça e até desmaios em casos de abstinência prolongada. Já “It Ain’t Like That” aprofunda ainda mais a reflexão sobre o vício ao descrever tais sintomas.

Relações tóxicas também são tema recorrente em “Facelift”, especialmente em “Sea of Sorrow” e “Love, Hate, Love”. Esta última, a mais longa e sombria do álbum, apresenta a perspectiva de alguém com traços sociopáticos.

A ressonância e a catarse do conteúdo lírico do disco foram abordados por Layne, conforme depoimento de época reproduzido em “The Top 500 Heavy Metal Albums of All Time”, do jornalista canadense Martin Popoff:

“As pessoas nos chamavam de ‘a banda da desgraça e melancolia de Seattle’. Minha teoria é que quatro negativos fazem um positivo. [Risos.] Nós quatro expressamos coisas realmente sombrias e raivosas, cheias de turbulência, mas sei que não estou sozinho nisso. Acredito que a maioria dos nossos ouvintes compartilha desses sentimentos. Seja com a família, com abusos, com o Vietnã, com drogas; é por isso que deixamos as letras muito abertas à interpretação, evitando ser literais e diretos. Usamos bastante simbolismo para que todos possam se conectar ou se relacionar.”

Em meio a tantas abordagens densas, “Facelift” também reserva espaço para um tributo comovente. “Sunshine” foi escrita por Jerry Cantrell em homenagem à mãe, Gloria, falecida em 1987. A letra, narrada do ponto de vista de uma criança em um lar disfuncional, reflete a ausência do pai e o peso da dor familiar.

Apesar de não ter sido exatamente abandonado, Jerry sentiu profundamente a separação dos pais. A distância do pai foi agravada pelo fato de ele ter servido como soldado na Guerra do Vietnã — tema que o músico abordaria futuramente com profundidade em “Rooster”.

Em entrevista à revista Spin, Jerry relembrou:

“Quando eu era pequeno, sempre dizia pra minha mãe: ‘Vou ficar famoso, comprar uma casa pra você e você nunca mais vai precisar trabalhar. Vou cuidar de você como você cuidou de mim.’ Quando ela morreu, foi um período terrível. Eu não sabia como lidar com aquilo — e ainda não sei. Mas foi o que me deu o impulso pra fazer o que faço.”

Finalmente, na última faixa, “Real Thing”, Layne grita “Sexual chocolate, baby!”. Trata-se de uma alusão ao filme “Um Príncipe em Nova York” (1988), estrelado por Eddie Murphy, onde seu personagem lidera uma banda com esse nome. Os quatro integrantes do AIC, que moravam juntos na época, viam o longa com frequência, transformando a frase em uma piada interna que acabou incluída na canção.

Nascidos de um olho

A capa de “Facelift” foi criada pelo artista, fotógrafo e diretor de videoclipes Rocky Schenck. O primeiro encontro entre ele e o Alice in Chains aconteceu em 6 de abril daquele ano — e a sintonia foi imediata, conforme relato ao biógrafo David de Sola:

“Já vinha trilhando um caminho artístico sombrio havia alguns anos, e acho que a banda percebeu isso logo de cara, ao ver meu portfólio de fotografias e os vídeos que eu havia dirigido. Foi por isso que nos conectamos de forma tão natural e rápida (…) O que eu tinha a oferecer, visual e criativamente, parecia combinar com o que eles estavam fazendo musicalmente.”

Entre as várias ideias discutidas para a arte do disco, uma se destacou: os integrantes parecendo emergir de um globo ocular. Para dar vida a essa imagem surreal, Schenck recorreu à piscina do Oakwood Apartments, um conjunto residencial em Burbank, Califórnia.

O local foi coberto com uma fina película plástica, sob a qual os músicos mergulharam, emergindo em seguida como se estivessem “nascendo” daquele grande olho artificial. O efeito distorceu os rostos de maneira “grotesca e intrigante”. Uma dessas fotos foi usada na contracapa do disco. No mesmo dia, Schenck clicou Layne Staley envolto em plástico e sendo segurado pelos colegas — imagem que se tornaria a capa do single “We Die Young”.

Na sequência, já em seu estúdio em Hollywood, o fotógrafo deu continuidade às experimentações. Usando uma técnica de múltiplas exposições diretamente na câmera — recurso que vinha aperfeiçoando há anos —, Schenck capturou retratos coloridos dos integrantes com rostos distorcidos, quase espectrais. A proposta inicial era fundir os rostos de todos em uma única expressão perturbadora, ideia que só seria concretizada anos depois, no CD 1 do box “Music Bank”.

No fim, o retrato escolhido para estampar a capa de “Facelift” foi o do baixista Mike Starr.

Melancolia amplificada

Lançado em 21 de agosto de 1990, “Facelift” inicialmente não atraiu muita atenção. Nos primeiros seis meses, vendeu menos de 40 mil cópias.

A virada só veio quando a MTV começou a exibir com frequência o videoclipe de “Man in the Box” e as rádios passaram a tocar a música, que alcançou a 18ª posição na parada americana em 6 de julho de 1991 — mesma data em que o álbum atingiu o 42º lugar no Top 200.

Apesar do sucesso gradual, “Facelift” foi pioneiro: tornou-se o primeiro título do grunge a receber disco de ouro pela RIAA (Associação da Indústria Fonográfica dos EUA), em 11 de setembro de 1991 — meses antes do estouro de Nevermind, do Nirvana, que só recebeu o mesmo certificado em 27 de novembro daquele ano. Com a ascensão do movimento, o álbum foi conquistando novos fãs, mas sua trajetória foi de crescimento lento. O disco de platina (1 milhão de cópias vendidas nos EUA) só viria em 10 de agosto de 1993.

O reconhecimento não parou por aí. Em 1992, o Alice in Chains foi indicado ao Grammy de Melhor Performance de Hard Rock com Vocal por “Man in the Box”, perdendo para o Van Halen com o álbum “For Unlawful Carnal Knowledge” (1991). O videoclipe de “Man in the Box” também concorreu na categoria Melhor Clipe de Heavy Metal/Hard Rock no MTV Video Music Awards de 1991, mas foi derrotado por “The Other Side”, do Aerosmith.

Sem ainda haver bandas grunge capazes de encabeçar grandes turnês, o AIC abriu shows para grupos de diferentes estilos, como Van Halen, Anthrax, Poison, Extreme e até Iggy Pop por um mês na turnê de “Brick by Brick”.  Ainda em 1990, a banda lançou a coletânea em vídeo “Live Facelift”, registrada no Moore Theatre, em Seattle. O material vendeu mais de 50 mil cópias e recebeu disco de ouro pela RIAA.

Em 1991, a banda conquistou um espaço importante ao ser escalada para a turnê Clash of the Titans, ao lado de Megadeth, Slayer e Anthrax. Mas como observou Michael Christopher, do PopMatters:

“Com ‘Facelift’, em 1990 — antes de o Nirvana escancarar as portas do mainstream —, o Alice in Chains recebeu um empurrão do mercado do metal, sendo colocado para excursionar com bandas como Slayer e Megadeth, sendo frequentemente vaiado em um gênero ao qual não pertencia.”

Em avaliação retrospectiva, Jerry Cantrell aponta um diferencial importante que o Alice in Chains já apresentava desde o início de sua trajetória:

“Enquanto algumas bandas só conseguem ‘engrenar’ no segundo ou terceiro disco, nós já estávamos em sintonia desde o primeiro. Talvez ainda houvesse alguns resquícios das fases que estávamos superando, mas sentíamos que tínhamos encontrado nossa voz e que estávamos no caminho certo.”

Quanto ao legado de “Facelift”, o guitarrista reforça a sensação de que algo maior estava prestes a acontecer:

“O que rolava em nossa cidade — algo que já considerávamos especial e cuja energia já percebíamos — começou, de certa forma, a transbordar para o resto do país. Começamos a sentir um burburinho no ar, e a sensação era: ‘Caralho, acho que estamos no caminho certo; isso é muito maneiro.’ Aí as gravadoras vieram atrás, demonstraram interesse, e logo todos nós estávamos assinando contratos e lançando discos. Depois de ‘Facelift’, tudo aconteceu muito rápido.”

Alice in Chains – “Facelift”

  • Lançado em 21 de agosto de 1990 pela Columbia Records
  • Produzido por Dave Jerden

Faixas:

  1. We Die Young
  2. Man in the Box
  3. Sea of Sorrow
  4. Bleed the Freak
  5. I Can’t Remember
  6. Love, Hate, Love
  7. It Ain’t Like That
  8. Sunshine
  9. Put You Down
  10. Confusion
  11. I Know Somethin’ (‘Bout You)
  12. Real Thing

Músicos:

  • Layne Staley – vocais
  • Jerry Cantrell – guitarra e backing vocals
  • Mike Starr – baixo e backing vocals em “Confusion”
  • Sean Kinney – bateria e percussão

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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