Em 1979, o Kiss vivia os últimos dias com sua formação original. Um ano antes, todos os membros da banda haviam lançado álbuns solo, medida adotada justamente para conter a crise, mas que não deu muito certo — a ponto de acentuar ainda mais os egos. Por fora, tudo parecia bem, mas bastou uma entrevista na TV exibida na noite de Halloween para o público visualizar as rachaduras.
Naquele momento, a popularidade dos mascarados estava em alta, muito por conta do single “I Was Made For Lovin’ You”, faixa totalmente calcada na disco music da época, presente no álbum mais recente, “Dynasty” (1979). Visualmente, os shows eram mais grandiosos do que nunca, inclusive nos trajes utilizados, que realmente ajudavam a vender a ideia de que era uma banda de super-heróis — com revista em quadrinhos e tudo o mais.
Internamente, enquanto Paul Stanley (vocal e guitarra) e Gene Simmons (vocal e baixo) tentavam direcionar o Kiss para o caminho que achavam ser o mais correto — e de certo modo trabalhavam exaustivamente sem tirar férias —, Peter Criss (bateria e vocal) e Ace Frehley (guitarra e vocal) abusavam dos excessos da fama e comprometiam muitas vezes o trabalho. Naquele dia 31 de outubro de 1979, as duas “facções” estavam evidentes.
The Tomorrow Show with Tom Snyder
Naquele dia, o Kiss foi a atração do “The Tomorrow Show”, programa de entrevistas exibido pela emissora americana NBC. Apresentada pelo veterano Tom Snyder, a produção rendeu ao longo de sua existência momentos icônicos em conversas com nomes como John Lennon, a escritora e filósofa Ayn Rand e o comediante “Weird Al” Yankovic, que fez sua estreia lá.
A expectativa era grande não só pela audiência, mas também pela oportunidade de aparecer em uma mídia mais “formal”. O Kiss, nem sempre levado a sério pelas maquiagens e visual, poderia se mostrar como uma banda profissional.
Era o que Simmons e Stanley tinham em mente, segundo John Harrison, biógrafo da banda, em entrevista ao Booked on Rock (via Ultimate Guitar):
“’The Tomorrow Show’ era um tipo de programa de TV noturno muito sério. Tom Snyder costumava levar políticos e grandes figuras políticas, intelectuais. Então para Gene especialmente, e Paul, eu acho que eles pensaram que o ‘The Tomorrow Show’ era a chance deles para realmente mostrar o lado sério do Kiss, para tentar mostrar o quanto eles eram inteligentes e espertos.”
Ace Frehley rouba a cena
O problema é que nem todos no grupo estavam com a mesma mentalidade. Ace Frehley chegou visivelmente bêbado para a entrevista, algo que confessa em sua biografia, “No Regrets”. O guitarrista confirmou que “queimou a largada” já no caminho e ainda foi recebido no estúdio pelo empresário do Kiss, Bill Aucoin, com uma garrafa de champagne. O músico contou:
“Eu estava nervoso pra caramba sobre aparecer na TV – ao vivo! – na frente de milhares de pessoas. Então comecei a beber uma Stoli (Stolichnaya, marca de vodka russa) na parte de trás de minha limusine assim que passei dos portões de casa a caminho da cidade. Quando sentamos em nossos lugares na frente de Tom no set, com maquiagem e traje completos do Kiss, eu não sentia mais nada e estava pronto para qualquer coisa.”
As piadas começaram assim que Snyder introduziu a banda. O apresentador errou a pronúncia da palavra “baixo” em inglês (“bass”, que falada de outra forma pode significar um tipo de peixe) e Frehley não deixou passar, se anunciando como “tocador de truta”. O trocadilho, por mais incrível que pareça, foi um dos “menos ruins” da noite.
Ace fazia piada sobre qualquer assunto que surgia. Em dado momento, em referência ao personagem Spaceman de Frehley, Snyder pergunta: “Você deveria ser algum tipo de astronauta, certo?”. O guitarrista responde: “Não, na verdade eu sou um encanador”.
Frequentemente, ele cortava as falas de Simmons, Stanley e do próprio Snyder. O apresentador revelou que, na ficha que recebeu sobre os músicos, constava que Frehley era o mais difícil de fazer falar. Isso só rendeu ainda mais piadas e uma das muitas crises de riso que o guitarrista teve durante o programa.
Inicialmente, Gene e Paul riam e tentavam entrar na brincadeira, mas logo o semblante da dupla foi mudando conforme Ace exagerava nas risadas, tipicamente agudas. Mesmo por baixo da maquiagem era possível ver o descontentamento total, como John Harrison relata:
“Assim que Ace começou a abrir a boca, tudo foi por água abaixo. E eu acho que em vez de acompanhar e pelo menos entrar naquele espírito, Gene e Paul apenas decidiram se manter sérios. E você meio que pode ver que Gene está se sentindo realmente chateado e não quer falar sobre nada realmente animador.”
Apesar da situação claramente fora de controle, Tom Snyder se divertia e incentivava Ace a falar mais. Peter Criss, ainda que mais contido, também estava feliz com a situação, que incomodava apenas a Simmons e Stanley. Harrison relembra um dos raros momentos do baterista, que reconheceu o tamanho da encrenca:
“Há algumas cenas aqui, que talvez você não tenha visto quando viu ao vivo pela primeira vez, mas com o benefício do vídeo que você pode pausar, você realmente pode ver Gene e Paul olhando feio para Ace e Peter. E tem um momento ótimo também quando Ace faz uma de suas piadas às custas da banda, e todos estão rindo, até Gene e Paul estão meio que tentando rir junto, tentando mostrar um pouco de solidariedade. Mas você consegue ouvir Peter dizer em voz baixa: ‘essa foi engraçada, você vai pagar por isso no camarim mais tarde’. Como: ‘Gene e Paul vão te matar quando você voltar lá para trás.”
Opinião dos envolvidos
O episódio entrou para a galeria de grandes momentos do “The Tomorrow Show” e era frequentemente lembrado por Snyder, que faleceu em 2007. Frehley chegou a compor uma faixa chamada “Space Bear”, inspirada em uma das piadas da entrevista, em homenagem ao apresentador. A música aparece no disco “Anomaly” (2009).
Em sua biografia, Ace cita a participação com leveza, mas reconhece a irritação que causou especialmente em Gene Simmons. O guitarrista relembrou:
“Se você assistir ao vídeo, você pode me ver virando para Gene e levantando as mãos em um momento e dizendo tranquilamente: ‘o que?’ – como uma criança que está se comportando mal em uma reunião de família e quer que seu pai relaxe e participe da diversão. Como você pode se levar a sério quando você está sentado com uma fantasia de super-herói e maquiagem no rosto todo? Eu adoro aquele cara, mas ele nunca, nunca entendeu isso.”
Peter Criss, como esperado, apoiou o amigo em sua autobiografia, “Make Up to Break Up”. O baterista admite que a dupla, mas especialmente Ace, roubaram o show e puderam inverter a ordem de comando na banda, ainda que por alguns minutos:
“Pela primeira vez, Ace e eu sequestramos uma entrevista de Gene e Paul. E o resultado foi hilário.”
Paul Stanley, em entrevista de 2012 ao LA Weekly (via Brave Words), teve uma visão bem negativa do acontecido:
“Não foi tão divertido assim, porque você tem que respeitar a sua posição. Você tem que respeitar o seu trabalho. Você tem que respeitar as pessoas com quem você está tentando se comunicar. Pode parecer engraçado que alguém está bêbado… mas o fato é que a raiz disso, eu acredito, um desprezo e uma falta de respeito pelo público e pelos fãs. Então, é claro: você pode olhar para isso e dar risada? Sim. Eu também posso, mas vejo mais profundamente. E eu olho para aquilo e digo: que vergonha é pegar essa posição de destaque que alguém nos deu e cuspir nisso. Cuspir na cara disso. Aparecendo embriagado ou incapaz de conectar uma frase. Pode ser engraçado na superfície, mas o que está por baixo da superfície é uma falta de apreço por um presente que você recebeu.”
Gene Simmons, no livro “Por trás das máscaras”, pontua:
“A experiência do show do Tom Snyder foi horrível. O Ace estava bêbado e o Peter estava naquele humor de ‘sou italiano e adoro armas’. Eu estava tentando desesperadamente me controlar. Tom Snyder ficava falando com o Ace, o cara que estava rindo e se divertindo. Ace e Peter brincavam um com o outro. Assim que Peter viu que Ace estava se divertindo, foi quase como se tivesse permissão para dizer: ‘ah, é, eu gosto de armas e faço parte de gangues’. Não, você é rico e faz parte de uma banda de rock ‘n’ roll. Ele nunca fez parte de uma gangue. Os dois adoravam a ideia de serem bad boys. Eles não são bad boys. Se esses caras estivessem em gangues, teriam acabado virando comida de cachorro.”
Por fim, um relato mais integral de Peter Criss sobre o ocorrido, com direito a relatar mais algumas das piadas:
“Ace ficava intimidado com programas assim, então começou a beber champanhe horas antes. Nós dois começamos a beber copos d’água cheios de espumante. Esvaziamos uma garrafa e Ace abriu outra. Enquanto isso, estávamos nos maquiando. Paul estava em frente ao espelho, ajeitando o cabelo. Ele devia usar pelo menos cinco latas de Aqua Net, o spray de cabelo mais barato, antes de cada show. Estou convencido de que Paul sozinho é responsável pelo aquecimento global. Do outro lado da sala, Gene estava terminando a maquiagem e começando a fazer barulhos de monstro. Ele se olhava no espelho e Ace e eu nos olhávamos e dizíamos: ‘Gene está indo embora’. Era assim que chamávamos a transformação dele. No meio dessa loucura, Bill entrou com uma garrafa de vodca. Então Ace começou a beber vodca junto com o champanhe. Não se pode misturar vodca e champanhe. Quando entramos naquele set, estávamos tontos pra caramba.
Mas adorávamos Tom Snyder. Achávamos que aquilo era o máximo. Então, ele começou a nos fazer perguntas, e Ace, de repente, pegou o ursinho de pelúcia do Tom que ele guardava no set e começou a personalizá-lo com suas pulseiras. ‘O que vocês estão fazendo com esse ursinho?’, perguntou Tom. ‘Agora é um urso espacial (space bear)!’, proclamou Ace. Tom ficou surpreso com a animação do Ace: seu produtor havia lhe dito que ele teria sorte se conseguisse que o Ace abrisse a boca uma vez. Mas Ace estava bêbado pra caramba e era hilário, e Gene estava ficando cada vez mais irritado. Em certo momento, Tom nos perguntou quem era o nosso público, e Paul respondeu que certa vez olhou pela janela do hotel e viu pais com filhos, jovens de vinte anos e pessoas mais velhas, todos na fila para o nosso show. ‘E se vocês assistissem ao nosso show em Mumbai [cidade na Índia], também veriam vacas na fila’, brincou Ace.
Quanto mais Ace e eu nos destacávamos, mais Gene ficava furioso. Toda vez que Ace mencionava drogas, Gene rapidamente interrompia: ‘Ele está brincando’. Paul também parecia muito irritado. Quando Tom me perguntou quais eram meus hobbies, eu disse que tinha uma coleção de armas. ‘Armas de brinquedo’, interrompeu Gene. ‘Não, eu coleciono armas, mas eu atiro em um estande de tiro, nunca atiraria em um animal’, eu disse. Então eu disse que gângsteres me fascinavam e que, se eu pudesse voltar no tempo, adoraria ser Dillinger ou Baby Face Nelson. ‘Nos filmes’, interrompeu Gene. Ele estava tão preocupado que um de nós dissesse algo real, algo que ele não pudesse controlar.
Até Tom percebeu. Ele se virou para Gene: ‘Então você é o cara que mantém tudo em ordem?’. ‘Ele é a mãe’, eu disse. ‘Ele é a madre superiora’, acrescentou Ace, e todos nós caímos na gargalhada. Exceto Gene e Paul, que estavam furiosos. Gene teve que dar a última palavra: ‘Todo mundo tem uma fantasia e somos todos bons rapazes. Entende o que eu quero dizer?’. ‘Me conta o que você estava fazendo às quatro da manhã’, Tom perguntou de repente para Ace. ‘Não, eu não quero ser preso’, disse ele, e todos nós caímos na gargalhada. Exceto Gene e Paul, é claro.
Pela primeira vez, Ace e eu roubamos uma entrevista de Gene e Paul, e o resultado foi hilário. Quando o programa acabou, Tom voltou para o nosso camarim, mas Ace tinha desmaiado no sofá. ‘Ótimo programa, pessoal, todo mundo da equipe ainda está rindo’, disse ele. Ele apertou nossas mãos. ‘E digam ao Ace quando ele acordar que eu o amo. Ele foi ótimo’.”
O fim estava próximo
Menos de seis meses depois da entrevista, a formação original do Kiss seria desfeita com a saída de Peter Criss, substituído por Eric Carr. O baterista original já não havia tocado em praticamente nada de “Dynasty”, com exceção da música “Dirty Livin’”, cantada por ele. Em “Unmasked” (1980), Criss aparece na capa e na divulgação, mas quem assumiu as baquetas em estúdio foi Anton Fig, que já havia tocado com Ace Frehley em seu álbum solo — e substituído o Catman no disco de 1979.
O guitarrista, por sua vez, deixou o grupo em 1982, depois de gravar o polêmico “Music from ‘The Elder’” (1981). Ace aparece na capa de “Creatures of the Night” (1982), mas não tocou no álbum e nem na turnê, na qual foi substituída por Vinnie Vincent. A formação original do Kiss só voltaria a se reunir em 1996.
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