No fim da década de 1990, o sucesso do Travis com o single “Why Does It Always Rain On Me” colocou gravadoras em processo de ir atrás de artistas similares — ou seja, que fizessem um pop rock britânico meio indie/folk. Surgiu dessa leva o Keane.
Mais de duas décadas depois, Travis e Keane tocam no mesmo bairro (Barra Funda) da mesma cidade (São Paulo) e na mesma semana. Todavia, o segundo se apresentou em um local (Espaço Unimed) com capacidade para mais que o dobro do público que o primeiro (Audio).
Surpreende, ainda, que a situação ocorra enquanto o Keane celebra em turnê seu primeiro álbum, “Hopes and Fears” (2004). Na época, o trabalho chegou a ser apontado pela imprensa especializada como uma tentativa de cópia do Travis.
Há tempos o Keane conquistou um público cativo no Brasil. Não precisa de tour comemorativa de disco de sucesso para conseguir boa repercussão. Exceção à estreia em 2007, quando tocou em dois dias no então Credicard Hall (hoje Vibra) para uma plateia que somada não encheria um, todas as outras tiveram ingressos esgotados (como na ocasião do último sábado, 9) ou quase. Até quando serviram de atração convidada do Maroon 5, em 2012, além do evento com lotação máxima, tiveram resposta do público como se fossem a atração principal.
Flashmob fora de ordem
A sexta vinda do Keane ao Brasil também passou por Curitiba e Rio de Janeiro antes do encerramento em São Paulo. Os ingressos para as três datas acabaram há meses.
Natural, portanto, a ansiedade do público paulistano ter explodido com gritos simultâneos não porque tivesse vindo qualquer sinal do palco, mas porque havia dado 22h, horário oficial divulgado pela produtora para o início do show.
O que não pareceu espontâneo foram as bexigas que surgiram na plateia próxima ao palco quando Tim Rice-Oxley (piano), Tom Chaplin (vocal), Jesse Quin (baixo) e Richard Hughes (bateria) começaram o show com “Can’t Stop Now”.
Enquanto o mistério que torna possível a combinação de shows de rock com balões continuou sem solução, soube-se que o Keane optou por apresentar o disco “Hopes and Fears” em ordem diferente da que tem o disco. “Can’t Stop Now” é a sétima faixa, não a primeira.
A resposta ensurdecedora — e que demorou a diminuir — deixou claro que o público estava feliz com a escolha. Levou um tempo maior do que o normal para que Tom Chaplin conseguisse cumprimentar o povo e anunciasse a segunda música, “Silenced by the Night”, do disco “Strangelands” (2012). A introdução, o ritmo e o assunto dela guardam uma semelhança substantiva com “I’m Throwing My Arms Around Paris” do Morrissey, lançada três anos antes.
Isso não serve para corroborar o argumento crítico de que o Keane não tenha personalidade. Muito pelo contrário. Há claras influências de Smiths e U2, entre outros. A forma com que Tim Rice-Oxley conduz o piano remete à abordagem que Johnny Marr e principalmente The Edge conduziam a guitarra, cada um a seu jeito. O timbre é um pouco mais distorcido e as melodias características atingiram um nível atemporal de excelência. Justamente por isso consegue-se fazer com que uma formação que parece destinada ao rock progressivo ou ao jazz, pela presença quase inexistente de guitarra ou violão, se transforme num forte nome do pop rock mundial, com um show de uma potência improvável.
O diferencial é selado por Tom Chaplim. Além de uma simpatia genuína, o vocalista sabe como conduzir a plateia como poucos e canta como raríssimos conseguem. Esses talentos souberam cativar a plateia no começo do show, como quando amarrou uma bandeira do Brasil ao pedestal do microfone em “Your Eyes Open”, de onde ela só sairia após o encerramento. A explosão de papéis picados na canção anterior, “Bend and Break”, parecia indicar uma noite vitoriosa.
Disco de parabéns, pero no mucho
Os mesmos talentos serviram para reconduzir o andamento do show aos trilhos. “Hopes and Fears” é um disco de sucesso, com muitos hits, mas não é um disco considerado clássico, dos que fazem sentido como um todo e conquistam a admiração de fãs de outros estilos.
Assim, o trecho da apresentação que vai de “Sunshine” até “Untitled” (confira o repertório ao fim do texto), sete músicas faixas total, deu uma arrefecida no ânimo geral que nem músicas mais animadas resolveram. “The Way I Feel”, um exemplo típico de canção pop perfeita por pegar o ouvinte do primeiro verso e trazer um refrão explosivo, grudento, passou batida a ponto de o próprio Tom perguntar “Por que vocês ficaram quietos?”.
Foi uma queda considerável de decibéis. Eles poderiam ter seguido o exemplo do grupo de samba Art Popular que comemorou os 30 anos do disco de estreia “O Canto da Razão” mas tocou apenas os singles, deixando as faixas não tão legais de fora do setlist e, assim, não derrubar o ritmo.
Chaplin não ouve samba, mas não desiste nunca. Antes de “The Frog Prince”, agradeceu ao fã-clube e à fidelidade de quem acompanha a banda desde a primeira vez em que vieram, em 2007. Em “You Are Young”, esforçou-se consideravelmente para que todos acompanhassem o “ô ô ô” característico da música, meio confuso, mas de bela melodia. Apesar de requerer um certo esforço, conseguiu que as pessoas cantassem.
Virada do Jogo
Foi em “A Bad Dream” que as coisas voltaram ao normal, ou seja, cantoria e aplausos ensurdecedores. O Keane pareceu reenergizado e tocou com ainda mais vontade. A trinca “This is the Last Time”, “Crystall Ball” e “Somewhere Only We Know” (sob nenhum aspecto a melhor música da banda, mas é a mais conhecida e a única a bater o bilhão de plays no Spotify) transformou o Espaço Unimed em estádio de futebol com torcida única em final de título importante.
A plateia não parou de fazer barulho, gritar “olê, olê, olê” e bater palmas nem quando veio o bis. O palco contava com uma iluminação espetacular e um belíssimo backdrop, claro e com o desenho de vários prédios. Mesmo sem a banda, não seria estranho aplaudi-lo. O Keane voltou logo em seguida e Tom agradeceu por terem continuado com o alvoroço.
Mencionando um cartaz com pedido de música, o vocalista anunciou “Disconnected”. Pegou todo mundo de surpresa e pareceu estarem atendendo um pedido, mas ela já estava programada, constava do setlist impresso. Foi o presente para São Paulo, já que cada cidade teve um repertório distinto.
Inesperado — apesar de ter surgido no show anterior no Rio — foi o cover de “Under Pressure”, de Queen e David Bowie (este, homenageado pelo Smashing Pumpkins no mesmo Espaço Unimed poucos dias antes). A execução do clássico se deu após breve reunião da banda para decidir se atenderiam ao pedido do público por mais uma canção, além da última anunciada por Chaplin.
Aí pôde-se ver o tamanho artístico que o Keane atingiu: mesmo sem guitarra, conseguiram reproduzir à altura a interpretação do Freddie Mercury e companhia. Os backing vocals feitos por todos os instrumentistas se mostraram discretos, mas eficientes. Mais um dos muitos pontos altos da noite.
A balada “Bedshaped” era a faixa que faltava do disco aniversariante. Com ela, encerraram a apresentação. Foi a apresentação mais improvável de de se ter alguma quebra proposital de guitarra ou de bateria, mas ali faria sentido. O Keane é uma grande banda ao vivo e a revisitação à carreira resultou em um dos melhores shows que ocorreram em São Paulo em 2024.
Keane — ao vivo em São Paulo
- Turnê: Celebrating 20 Years of Hopes and Fears
- Local: Espaço Unimed
- Data: 9 de novembro de 2024
- Produção: Move Concerts
Repertório:
1. Can’t Stop Now
2. Silenced by the Night
3. Bend & Break
4. Your Eyes Open
5. Nothing in My Way
6. Spiralling
7. Sunshine
8. The Way I Feel
9. The Frog Prince
10. You Are Young
11. Everybody’s Changing
12. Hamburg song
13. Untitled 1
14. A Bad Dream
15. Perfect Symmetry
16. Is It Any Wonder?
17. She Has No Time
18. This Is The Last Time
19. Crystal Ball
20. Somewhere Only We Know
Bis:
21. Disconnected
22. We Might As Well Be Strangers
23. Sovereign Light Café
24. Under Pressure (cover de Queen e David Bowie)
25. Bedshaped
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