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O curioso fax de Steve Albini ao Nirvana com condições para produzir “In Utero”

Produtor escreveu um longo texto detalhando como trabalharia com a banda em seu derradeiro disco

Com o falecimento de Steve Albini, noticiado nesta quarta-feira (8), algumas histórias famosas sobre seu trabalho vem sendo resgatadas pelo público. Uma das mais conhecidas envolve o trabalho no derradeiro disco do Nirvana enquanto banda em atividade, “In Utero” (1993).

As sessões geraram polêmicas com o passar dos anos. Apesar de ter encampado a ideia da banda, o profissional recebeu acusações de ter maltratado a banda, especialmente Kurt Cobain. Courtney Love, viúva do vocalista e guitarrista, declara abertamente seu ódio ao agora saudoso produtor.

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Eis o fax enviado por Steve aos músico após o convite para a colaboração. O resgate na íntegra é do fansite Live Nirvana.

“Para Kurt, Krist e Dave:

Primeiro, deixe-me pedir desculpas por já ter passado vários dias desde que estou tentando rascunhar este esboço para vocês. Quando falei com o Kurt, estava no meio de uma gravação do novo álbum da banda Fugazi, então pensei que teria 1 ou 2 dias entre as sessões para resolver tudo com vocês. Mas os meus horários se alteraram de uma forma inesperada e este é o 1º momento em que tive um tempo livre para lhes passar tudo o que irei escrever logo abaixo. Desculpas e mais desculpas, ok?

Eu acho que a melhor coisa que vocês podem fazer neste momento é exatamente o que estão falando em fazer, ou seja, bater um recorde de gravação de um álbum de estúdio em poucos dias, com alta qualidade, mas com uma produção mínima e sem a interferência dos empresários e da gravadora, que trabalham o dia todo sentados em suas cadeiras nos seus escritórios. Se isso é realmente o que querem fazer, adoraria estar envolvido também.

Se em vez disso vocês podem se dar ao luxo de se encontrar na posição de ser o espetáculo temporário da gravadora de vocês, apenas para tê-los por perto quando precisarem que eles ‘arranquem’ vocês de alguma cadeia em algum momento das suas vidas, não se incomodando em ficarem horas e horas, dias e mais dias retrabalhando nas mesmas músicas, nas mesmas sequências de edição e produção, e ainda chamando os ‘pistoleiros’ certos para ‘adoçar’ as músicas do seu álbum, transformando a coisa toda para ser tocada em discotecas e boates por algum DJ que ainda está usando fraldas neste exato momento, o que quer que seja, caras… então vocês estão vivendo em uma chatice e eu não quero de jeito nenhum fazer parte deste mundo de vocês.

Só estou interessado em trabalhar em registros que legitimamente refletem a percepção da própria banda, das suas músicas e da sua existência. Se vocês irão se comprometer a isso como um princípio de metodologia da gravação, então vou aceitar, está bem? Vou trabalhar os círculos dos processos em torno de vocês com toda a minha dedicação e experiência, além de bater nas suas cabeças com uma catraca quando for preciso…

Já trabalhei em centenas de álbuns (alguns grandes, alguns bons e outros horríveis, sendo que tenho um lote desses horríveis aqui no pátio) e visto uma correlação direta entre a qualidade do resultado com o humor da banda ao longo do processo de gravação. Se leva um longo tempo para ser gravado, todo mundo começa a ficar chateado com a situação, analisando cada passo dado para que em seguida a gravação final tenha pouca semelhança com o som que a banda apresenta ao vivo em um show. O produto é raramente lisonjeiro. Fazer álbuns de punk rock é, definitivamente, um caso em que mais trabalho não implica em um melhor resultado. Claramente vocês aprenderam esta visão e apreciam esta lógica também.”

Métodos e filosofias de Steve Albini

A seguir, Steve começou a explicar como seu trabalho era realizado e o que entendia como ser o caminho certo para a parceria. Ele disse:

“Sobre a minha metodologia e filosofia de gravação:

1- A maioria dos engenheiros e produtores musicais contemporâneos enxergam um álbum como um projeto e a banda como apenas um elemento dele. Além disso, consideram as gravações uma estratificação controlada de certo som específico, cada um estando sob o controle completo desde o momento em que a nota musical é concebida até a mixagem final. Depois, a banda é ‘empurrada’ para dentro e em torno do processo de como está sendo gravada, fazendo os membros refletirem o pensamento de “que seja”, enquanto o projeto é compilado e moldado sob a aprovação dos seus colegas que estão lá na sala de controle do estúdio…

A minha abordagem é exatamente o oposto do que acabei de falar.

Eu considero a banda a coisa mais importante, a entidade criativa que gerou uma personalidade e um estilo, tanto dela quanto a entidade social que existe 24 horas sobre cada dia. Não considero minha função lhes dizer o que fazer ou como tocar. Estou bastante disposto a deixar as suas opiniões serem ouvidas (se realmente a banda estará decidida no estúdio a fazer progressos bonitos ou erros de levantamento, tanto faz, eu considero que é parte do meu trabalho lhes dizer) e se a banda decide buscar algo, eu vou ver sim do que ela é feita.

Gosto de deixar um espaço para os acidentes e para o caos acontecer durante o processo de gravação, fazendo um álbum sem costuras, onde cada nota e sílaba estará no seu devido lugar, mostrando também que cada batida do bumbo da bateria é idêntico ao outro, sem truques, ao invés de uma pessoa adotar este procedimento que eu acabei de falar, escolhendo exatamente o inverso deste processo. Qualquer idiota com a paciência e o orçamento para permitir essa loucura pode fazê-lo. Portanto, prefiro trabalhar em álbuns que aspiram a coisas maiores como originalidade, personalidade e entusiasmo. Se todos os elementos da música e da dinâmica de uma banda são controladas por faixas de cliques, computadores, mixagens automatizadas, portões cibernéticos, samplers e sequenciadores, o álbum pode não ser incompetente, mas certamente não será excepcional também. Ele também irá ostentar muito pouca relação com o som da banda ao vivo em um show, o que deveria ser sempre.

2- Eu não considero que a gravação e a mixagem de um álbum sejam tarefas não relacionadas, que possam ser realizadas por especialistas sem nenhum envolvimento contínuo. Deve ser estabelecido que 99% do som de uma música seja feito enquanto a tomada de base é gravada e as suas experiências sejam específicas para os discos. Pela minha experiência, remixagem nunca resolveu todos os problemas que realmente existem, que são únicos e imaginários. Eu não gosto de remixar gravações de um outro engenheiro, assim como não gosto que gravações minhas sejam entregues para outra pessoa remixar. Nunca fiquei satisfeito com uma ou outra versão de quem usa essa metodologia. Remixar é para maricas sem talento que não sabem como sintonizar um tambor ou o ponto de um microfone.

3- Eu não tenho um evangelho fixo de sons com ações e técnicas de gravação que aplico cegamente a todas as bandas em cada situação. Vocês são uma banda diferente de qualquer outra banda e merecem pelo menos o respeito de ter os seus próprios gostos e preocupações abordadas. Por exemplo, eu adoro o som de uma bateria boomy (sem agudos) da marca ‘Gretsch’, usando amplificadores da marca ‘Camco’ bem abertos em uma sala grande, estilo John Bonham com um bumbo de duas cabeças e com uma tarola realmente dolorosa. Eu também adoro o resultado de indução de vômito que sai de um velho amplificador da marca ‘Fender Bassman’ ou do amplificador de guitarras da marca ‘Ampeg’, além do som totalmente soprado que sai de um amplificador da marca SVT que mais parecem como tubos se quebrando. Eu sei também que esses sons serão inadequados para algumas músicas de vocês e tentar forçá-los a isso seria um desperdício de tempo. Predicar as gravações nos meus gostos pessoais é tão estúpido quanto projetar um carro somente em torno do seu estofamento. Vocês precisam decidir entre si e depois articular comigo como que irão querer que as músicas devem soar, para que estes tipos de sons inadequados não apareçam no álbum vindo de diferentes direções.

4- Quando um álbum é gravado, o local onde ele será produzido não é tão menos importante como a forma que será gravado. Se vocês têm algum estúdio que gostariam de usar, sem problemas, caras. Caso contrário, posso fazer as minhas sugestões. Eu tenho um bom estúdio de 24 canais na minha casa (o Fugazi gravou o seu álbum inteiro na minha casa, vocês podem perguntar-lhes como eles o classificaram), e eu estou familiarizado também com a maioria dos estúdios do Centro Oeste e da Costa Leste americana, além de uma dúzia ou mais de estúdios espalhados pelo Reino Unido.

Sinceramente falando, ficaria um pouco preocupado em ter vocês na minha casa pela duração de todo o processo de gravação e mixagem, porque mesmo vocês não querendo assumir, são celebridades. Não gostaria de sair para caminhar no meu bairro, assim como vocês aqui dentro da minha casa, para ficar aturando um monte de besteiras e assédios que os fãs irão falar para mim e para vocês. Seria um ótimo lugar para gravar o álbum de vocês, porém, se realmente quiserem isso, não podem encher de porrada esses inevitáveis ‘vikings’ quando eles aparecerem, ok?

Mas se quiserem escolher por conta própria os detalhes da seleção de estúdios, de pousadas e etc, até para mim, eu ficaria muito feliz de realizar todo este processo de gravação em um outro lugar. Se vocês querem fazer isso para resolver os seus problemas, tranquilo, basta vocês estabelecerem a lei.

A minha 1ª escolha para um local de gravação em um outro lugar, seria um estúdio chamado Pachyderm, na cidade de Cannon Falls, no estado da Minnesota (nota: que foi o local escolhido pela banda). Este estúdio possui uma grande acessibilidade e facilidade em manusear as coisas, com uma excelente acústica em uma mansão dos sonhos para qualquer arquiteto, totalmente confortável, onde podem morar durante as gravações. Isso torna tudo mais eficiente, já que todo mundo do grupo e os devidos funcionários estarão lá, morando neste estúdio, sendo que os procedimentos e as decisões serão feitas e tomadas muito mais rápido do que se as pessoas envolvidas ficarem residindo em algum lugar na cidade. Há também toda aquela coisa chique, como uma sauna, piscina, lareiras, um lago ao redor com um fluxo considerável de peixes, tudo isto em um terreno de 50 hectares mais ou menos. Eu fiz um monte de registros de álbuns neste estúdio também e sempre gostei do lugar. Também o custo não é tão caro, considerando-se todos estes atrativos que proporciona.

O único problema sobre o estúdio Pachyderm é que os proprietários e o gerente não são técnicos de som e eles não têm nenhum técnico de plantão. Já trabalhei lá o suficiente para que eu mesmo possa corrigir qualquer coisa que venha a dar errado, seja um curto circuito ou colapso eletrônico sério. Tenho uma pessoa de confiança, trabalho com ele há bastante tempo já, chamado Bob Weston. Ele é muito bom em eletrônica referente a projetos de circuito, resolução de problemas eletrônicos ou que seja para construir qualquer coisa no local. Se quiserem optar por fazer a gravação do álbum neste estúdio, ele provavelmente vai vir na minha folha de pagamento também, uma vez que seria um seguro barato se uma fonte elétrica de alimentação venha a explodir ou se uma falha grave ocorrer no auge do inverno, que será o mesmo período em que vocês pretendem gravar. Lembrando que o estúdio se localiza em uma área isolada e nativa, a 1ª loja de eletrônicos fica a 80 quilômetros, ok? Bob é um engenheiro de gravação também, então pode estar fazendo algumas das coisas mais banais como catalogação de fitas, manuseio em materiais de embalagem e até ir à cidade para buscar alguns suprimentos, enquanto nós estaríamos trabalhando afastados e de uma forma adequada.

Em algum dia próximo, vou falar com o pessoal da banda Jesus Lizard para eles comparecerem neste estúdio também, para termos um momento de lazer e distração. Ah, sim…, e o estúdio possui o mesmo console da mesa de som da marca Neve, onde foi gravado e mixado o álbum da banda AC/DC chamado ‘Back in Black’, para que vocês saibam que o álbum de vocês só precisa emitir o verdadeiro som do rock, está bem?”

A recusa dos royalties

Uma característica de Steve Albini era o fato de ele recusar royalties. Para o produtor, seria uma forma de se apropriar de algo que pertencia ao artista pelas vendas. Ele explicou:

“5- Eu expliquei isso para o Kurt, mas acho melhor reiterá-lo aqui. Não quero e não aceito os royalties vitalícios sobre qualquer álbum que gravo e produzo. Sem conversa, ok? Considero pagar royalties vitalícios para um produtor ou para um engenheiro de som eticamente indefensável. É a banda quem escreve as músicas. É a banda quem toca as músicas. Pode gerar um grande disco ou um registro horrível, mas mesmo assim, os direitos pertencem à banda somente.

Eu gostaria de ser pago como um encanador, vocês me entendem? Faço o trabalho, vocês me pagam o que vale o serviço e ponto final. Por acaso um encanador vai continuar recebendo os seus valores depois de 20 anos só porque a casa que ele foi arrumar ainda está de pé? A gravadora de vocês vai esperar que eu peça um valor X ou um valor Y. Se realmente assumirem o que me disseram, que o álbum de vocês irá vender 3 milhões de cópias no mundo inteiro logo no seu 1º lote de lançamento, então eu não aceito que me paguem mais de 400 mil dólares, sendo que estou disposto a receber menos ainda, ok? Não há, não existe e jamais acontecerá, de nenhuma maneira, de eu pedir um valor a mais do que é de direito. Eu simplesmente não seria capaz de dormir se tivesse esse tipo de personalidade, vocês me entendem?

Eu tenho que estar confortável com a quantidade de dinheiro que irão me pagar, mas lembrando que é o dinheiro de vocês e eu insisto que se sintam confortáveis com o manuseio dele. Kurt me sugeriu pagar uma parte do que já consideraria ser o pagamento integral e, em seguida, se realmente acharem que mereço mais, depositem o restante depois que já tenham tido a oportunidade de conviver com o álbum por um tempo. Não irei negar que isso seria bom. Mas o problema de isso não acontecer será provavelmente mais empresarial e burocrático do que realmente se valeu o serviço.

Tanto faz. Eu confio em vocês para serem justos comigo e sei que devem estar familiarizados com o que um idiota regular da indústria musical gostaria de receber. Vou deixar que tomem a decisão sobre o valor final, ok? Podem ter certeza de que isso não vai afetar o meu entusiasmo para gravar este álbum.

Algumas pessoas na minha posição iriam esperar um aumento nos seus próprios negócios depois de ser associado à banda de vocês. Eu, no entanto, já tenho mais trabalho do que posso lidar e, francamente, esse tipo de pessoa que esbanja tais superficialidades irá atrair mais tipos de pessoas que eu não quero trabalhar e nem me relacionar. Por favor, não considerem que isto será um problema para mim, ok?

É isso aí.

Por favor, me liguem se ao passarem por cima deste fax e caso nada disso ou alguma coisa que eu falei não esteja claro, ok?

Ass: Steve Albini.

ps: se um álbum leva mais do que 1 semana somente para grava-lo, então alguém está f*dendo com o processo…”

Nirvana e “In Utero”

Sob a batuta de Steve Albini, as gravações de “In Utero” duraram duas semanas de fevereiro de 1993. As sessões ocorreram no Pachyderm Studio em Cannon Falls, Minnesota, Estados Unidos. Parte das composições foi desenvolvida no Brasil, entre as edições paulistana e carioca do festival Hollywood Rock.

Apesar da tentativa declarada de fugir das características que levaram ao sucesso em “Nevermind” (1991), o álbum chegou ao 1º lugar na parada americana, vendendo mais de 15 milhões de cópias em todo o mundo. Embora Kurt Cobain tenha declarado em entrevistas considerar o conteúdo lírico impessoal, várias das letras refletiam suas angústias e lutas na vida pós-fama.

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João Renato Alves
João Renato Alveshttps://twitter.com/vandohalen
João Renato Alves é jornalista, 40 anos, graduado pela Universidade de Cruz Alta (RS) e pós-graduado em Comunicação e Mídias Digitais. Colabora com o Whiplash desde 2002 e administra as páginas da Van do Halen desde 2009. Começou a ouvir Rock na primeira metade dos anos 1990 e nunca mais parou.

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