Como a estreia do Raimundos estabeleceu o rock brasileiro dos anos 90

Letras explícitas, humor adolescente e mistura de hardcore com forró geraram o álbum mais original daquele período até então

A década de 1990 é vista na história do rock nacional como um período conturbado. Muitos nomes populares nos anos pós-ditadura perderam o gás e a popularização do sertanejo contribuiu para que se veja a época como não muito fértil. Entretanto, a história não rolou assim — e nomes como Raimundos servem para comprovação.

Alguns dos nomes mais populares e internacionalmente reconhecidos do rock brasileiro tiveram sua ascensão nos anos 1990. Sepultura, Chico Science e Nação Zumbi, Skank, Cássia Eller e tantos outros deixaram sua marca no cenário musical brasileiro.

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Mas nenhum grupo foi tão popular dentro daquela década quanto o Raimundos. Um quarteto de Brasília que incorporava a identidade musical do Nordeste ao hardcore e fazia canções impensáveis anos antes. Essa é a história dos maiores zoeiros do país.

Vamos falar de seu álbum de estreia homônimo, “Raimundos”.

Começo em falso

Rodolfo Abrantes era um guitarrista à procura de alguém para tocar, e encontrou o baterista Digão em 1987 porque ambos moravam na mesma rua em Brasília. Um gostava de Ramones, enquanto o outro pirava com Dead Kennedys.

Não demorou para que recrutassem o baixista Canisso e o grupo fez seu primeiro show na casa de Gabriel Thomaz, do Autoramas, no Réveillon de 1988. Na plateia estava Fred Castro, futuro baterista da banda, mas esse futuro ainda está distante.

O repertório consistia de covers e originais, mas desde então a identidade sonora do grupo estava bem definida. Era punk, mas com influências nordestinas bem pronunciadas, num estilo batizado por eles de forró-core.

Em entrevista publicada no Whiplash, Rodolfo explicou a origem do som:

“Minha família é da Paraíba, e eu me lembro que desde os dez anos, eu sempre ia naqueles churrascos familiares com os meus pais. Tocava forró o tempo inteiro, e eu achava aquilo um saco. Só gostava das músicas do Zenilton, por causa das letras sacanas, achava aquilo muito fera.”

Raimundos teve bastante sucesso na cidade de Brasília entre 1988 e 1990, mas nunca pareceu capaz de furar essa bolha para outras partes do país. Numa tentativa de acompanhar à moda metaleira que tomou conta da capital em 1989, eles adicionaram um segundo guitarrista à formação e substituindo Canisso. Não deu certo.

Ao final desse período, Digão estava com problemas auditivos por causa da bateria, Canisso havia passado no vestibular de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e Rodolfo se mudou para o Rio de Janeiro. O Raimundos havia se separado antes mesmo de realmente começar.

Começo de verdade

Em 1992, uma oportunidade surgiu para o Raimundos tocar em um bar em Goiânia. O trio aceitou voltar, mas havia um problema: Digão não podia mais tocar bateria e agora era guitarrista. Eles tentaram fazer esse show com uma bateria eletrônica, mas como Canisso contou em texto publicado no Whiplash, isso deu errado.

“Arrumaram um show pra gente em Goiânia. Levamos tudo preparado na eletrônica, pois a mesma batida dava pra todas as músicas dos Ramones. Só que por um problema de impedância, o negócio tocou tudo diferente.”

Era imperativo encontrar um novo baterista. Felizmente, o candidato perfeito conhecia a banda desde seu primeiro show. Fred foi recrutado e no ano seguinte gravaram sua fita demo, que contava com as canções “Marujo”, “Nêga Jurema”, “Palhas do Coqueiro” e “Sanidade”.

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Se o fim dos anos 1980 não era a época ideal para uma banda underground de Brasília tocando punk misturado com forró furar a bolha local, o cenário em 1993 era outro. A indústria musical praticamente desistiu do rock em formato convencional e os grupos até então gigantescos no Brasil começaram a sofrer antagonismo da imprensa.

Havia uma sede genuína por coisa nova, e foi aí que a cultura DIY (do it yourself) do punk realmente estourou por aqui. Fanzines começaram a surgir em tudo quanto é lugar e bandas independentes incapazes de sequer conseguir destaque no jornal local apareciam na Folha de S. Paulo.

Durante um encontro durante as gravações de “Titanomaquia” (1993), o jornalista Carlos Eduardo Miranda mostrou aos integrantes do Titãs uma mala cheia de fitas demo de artistas de todo o Brasil. Graforréia Xilarmônica, Planet Hemp, Charlie Brown Jr – quando ainda cantavam em inglês – e Raimundos.

A reação dos Titãs foi arranjar com a Warner Music um acordo para montar seu próprio selo, Banguela Records. O primeiro artista a ser assinado seria Raimundos, que a esse ponto tinham atraído interesse de majors através de seus shows incendiários. Entretanto, como Digão contou a Ricardo Schott para a Superinteressante, isso vinha com ressalvas:

“Queriam mudar o som, tirar os palavrões, dar aula de dicção para o Rodolfo, mas a gente preferiu esperar.”

Em entrevista publicada no Whiplash, Miranda explicou o atrativo da proposta da Banguela, em adição ao controle criativo oferecido:

“As outras gravadoras oferecem contratos milionários, limusine, hotel cinco estrelas, só que quem acaba pagando tudo isso são as próprias bandas, que tem que vender muito para cobrir os gastos. Nós temos o suficiente, o mínimo necessário pra fazer algo apresentável.”

Gravação e estouro

Assinado o contrato com a Banguela, o Raimundos se mudou para São Paulo e começou a gravar o álbum de estreia no estúdio Be Bop. Em entrevista ao Uol, Miranda falou sobre produzir o disco:

“Raimundos não tem para ninguém, é a banda mais chuta c* da história da música brasileira. E a minha maior contribuição foi permitir que eles fossem exatamente como eram. Não quis mudar o som, diminuir guitarras, tirar palavrão. Deixei bem cru e nervoso.”

A única coisa que Miranda impôs à banda foi a inclusão de uma canção em particular, como ele contou à Bizz em abril de 2007:

“Tinha uma música, ‘Selim’, que eles tocavam nas festas, mas o Rodolfo não queria cantar,. Aí eu falei pra ele. ‘Seguinte, véio, vou gravar sua música e se você não quiser cantar vou chamar o Falcão!’ (risos). Eu propus gravar versão acústica, deixar só o violãozinho, e quando a música for acabando vou abrir a guitarrinha pra fazer um solinho só de sacanagem – e foi a p#rra da versão acústica que a rádio começou a tocar.”

“Nêga Jurema” e “Puteiro em João Pessoa” haviam sido selecionadas pela banda como músicas de trabalho e permanecem clássicos no repertório do Raimundos. Mas foi “Selim” a canção responsável por estourar o grupo. Como Digão contou à Superinteressante:

“A gravadora lançou ‘Nêga Jurema’ e ‘Puteiro em João Pessoa’ e achou que fôssemos vender uns 30 mil discos. Aí começou a tocar ‘Selim’ e o disco pulou para 100 mil.”

O sucesso de “Selim” nas rádios pop fez outras canções ganharem espaço em estações rock. Ao longo de 1995, várias das faixas mais pesadas de “Raimundos” eram figuras cativas nas programações. Assim, a banda se tornou a mais popular do país entre adolescentes.

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Entretanto, o sucesso de “Raimundos” foi uma faca de dois gumes, como Digão explicou à Superinteressante:

“Gravamos com baixo orçamento e vendemos 100 mil cópias. Depois, o Banguela gastou mais do que podia com outras bandas e nos propuseram um segundo disco com orçamento menor. A gente queria um produtor gringo. Aí apareceu a WEA.”

A WEA era essencialmente a matriz do Warner Music Group no Brasil, o que significa uma promoção dos Raimundos para uma gravadora major sob os termos da banda. O segundo álbum deles, “Lavô Tá Novo”, saiu em 1995 e consolidou a reputação deles como artistas de sucesso popular.

Isso também significou, infelizmente, que as gravadoras estavam agora somente interessadas em artistas iguais aos Raimundos. Pesados, desbocados e piadistas. Uma onda de bandas tentou se equiparar, mas nada era como o original.

O grupo ainda estava longe de seu maior sucesso, “Só No Forévis” (1999), embalado pelos hits “Me Lambe”, “A Mais Pedida” e “Mulher de Fases”. Contudo, esse sucesso teve suas baixas.

Em 2001, Rodolfo Abrantes deixou o grupo após se converter ao protestantismo. De imediato, alegou que o grupo se vendeu. Depois, reconheceu que a música e o estilo de vida da banda iam contra suas crenças. Digão continuou à frente do Raimundos, ainda que sem o mesmo sucesso de seu período áureo. Fred saiu em 2007, enquanto Canisso permaneceu envolvido durante boa parte da formação pós-Rodolfo, mas faleceu em 2023, aos 57 anos.

Raimundos — “Raimundos”

  • Lançado em 2 de abril de 1994 pela Banguela Records / Warner Music Brasil
  • Produzido por Carlos Eduardo Miranda e Raimundos

Faixas:

  1. Puteiro em João Pessoa
  2. Palhas do Coqueiro
  3. MM’s
  4. Minha Cunhada
  5. Rapante
  6. Carro Forte
  7. Nêga Jurema
  8. Deixei de Fumar
  9. Cajueiro / Rio das Pedras
  10. Bê a Bá
  11. Bicharada
  12. Marujo
  13. Cintura Fina
  14. Selim
  15. Puteiro em João Pessoa II (faixa bônus da edição em CD)
  16. Selim (acústico, faixa bônus da edição em CD)

Músicos:

  • Rodolfo Abrantes (vocal)
  • Digão (guitarra, vocal)
  • Canisso (baixo, vocal)
  • Fred (bateria)

Músicos adicionais:

  • Carlos Eduardo Miranda (vocais em “Minha Cunhada”; pandeiro em “Cintura Fina”)
  • Guilherme Bonolo (vocais em “Puteiro em João Pessoa”, “Palhas do Coqueiro”, “Minha Cunhada”, “Nêga Jurêma”, “Cana Caiana”, “Marújo” e “Cintura Fina”; guitarra solo em “MM’s” e “Selim”)
  • Ivan David (vocais em “Puteiro em João Pessoa” e “Nêga Jurêma”)
  • João Gordo (vocais em “MM’s”)
  • Nando Reis (violão em “Puteiro em João Pessoa”; viola em “Selim”)
  • Paulo Miklos (vocais em “Carro Forte”, “Bê a Bá” e “Bicharada”
  • Branco Mello (vocais em “Carro Forte”, “Bê a Bá” e “Bicharada”)
  • Sérgio Britto (vocais em “Carro Forte”, “Bê a Bá” e “Bicharada”)
  • Zenilton (acordeão em “Rio das Pedras” e “Marújo”)

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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