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Mistério? Autorreferência? Entenda as letras de Bruce Dickinson em “The Mandrake Project”

Primeiro álbum solo do vocalista do Iron Maiden em 19 anos é liricamente complexo e explora temas ligados ao ocultismo, misticismo e filosofia

Levou 19 anos para que Bruce Dickinson entregasse um novo álbum solo. O sucessor de “Tyranny of Souls” (2005) se chama “The Mandrake Project” e é mais do que um disco — a obra vem acompanhada de uma história em quadrinhos. Contudo, não espere um trabalho conceitual: o primeiro de 12 volumes saiu junto com as músicas, mas só no fim de 2025 é que a edição final deve ser publicada.

Dessa forma, nem tudo liricamente em “The Mandrake Project” é perfeitamente amarrado. Quando a ideia para o álbum surgiu, em meados de 2014, o projeto seria um disco conceitual — o que foi abandonado ao longo do tempo. Se por um lado, perde-se em coesão lírica, por outro, Dickinson estava livre para trazer o que quisesse para as letras.

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E o homem soube aproveitar a liberdade. Bruce é um polímata: palavra que define uma pessoa que se dedica a diversas atividades e assuntos. Cantor, historiador, piloto de aviões, empresário, mestre cervejeiro, esgrimista, apresentador de rádio… a lista é longa e prova que a mente do vocalista do Iron Maiden é bastante complexa. Trata-se de um erudito moderno.

Referências a poetas e outras influências de Bruce permeiam o álbum, que de certa forma também parece referenciar outros trabalhos solo do artista, ainda que de forma velada. Frases e conceitos já conhecidos de “Accident of Birth” (1997) e “The Chemical Wedding” (1998) estão ali, como uma espécie de easter egg para os fãs mais dedicados do cantor.

“The Mandrake Project” é um prato cheio disso e suas letras devem agradar aos que acompanham mais de perto a carreira solo de Bruce. Enquanto o Maiden parte mais para um lado historiador e imersivo na maioria das vezes, Dickinson traz mais poesia, além de temas relacionados ao ocultismo, misticismo e filosofia.

Aliás, o álbum começa com o fim do mundo.

O fim deste mundo

O primeiro single de “The Mandrake Project” é também a faixa de abertura do álbum. “Afterglow of Ragnarok” tem uma pegada raivosa na letra, mas apesar da menção ao “fim do mundo” da mitologia nórdica, não tem nada a ver com vikings. De forma simples, o próprio Bruce Dickinson explicou o tema da música em entrevista ao Songfacts.

“A ideia de Ragnarok, as pessoas que estão familiarizadas com isso dos filmes e Thor e todo o resto, (sabem que) não é realmente o fim do mundo. Esse é centro da questão: o Ragnarok é o fim deste mundo, mas é o início do próximo mundo. O ciclo da vida começa todo de novo. O sol vai nascer de novo sobre as águas e você segue em frente.”

“Eu cruzei os mares brilhantes
Olhos de criaturas me seguem
A luz da lua nos guia em um caminho estável
Pós-brilho do Ragnarok
Se torna a sombra do alvorecer
Da noite o sol vai nascer de novo, de novo”

“Afterglow of Ragnarok”

Uma passadinha no inferno

Em 1997, Bruce cantou que “a estrada para o inferno (‘Road to Hell’) está cheia de boas intenções”, mas agora o tema são “as muitas portas abertas para o inferno”. Segundo o próprio, a música fala sobre uma vampira que deseja voltar a ser humana, mas só pode sair quando há um eclipse bloqueando a luz do sol.

O tema infernal não é a única coisa que faz lembrar “Accident of Birth” em “Many Doors to Hell”. A música traz uma leve blasfêmia ou questionamento da ausência da providência divina, assim como a faixa-título do álbum de 1997. Se diziam que o Iron Maiden era satanista nos tempos de “The Number of the Beast” (1982), muitos que acusavam a banda de tal prática ficariam ainda mais assustados com algumas passagens solo de Dickinson.

“Então onde estava Deus quando eu mais precisei dele?
Que salvação é o Espírito Santo?
Pelo que eu fiz, você não pode me culpar
Eu vivi através dos séculos

Quando o sol se põe
Eu uso meu espinho e coroa
Eu os conheço todos tão bem
Tantas portas abertas para o inferno”

“Many Doors to Hell”

“Mas só chove, chove…”

Na terceira faixa do disco (e segundo single), “Rain on the Graves”, o refrão faz lembrar o clássico de Kiko Zambianchi popularizado pelo Capital Inicial (“Primeiros Erros”), mas a comparação fica mesmo só na chuva, que não para de cair. Aqui, Dickinson visita um cemitério em um dia chuvoso — prática que aprecia na vida real — e é “intimado” pelo Diabo em pessoa sobre o que foi fazer ali.

O episódio que deu origem à música foi parecido com a história contada, mas não teve nenhuma entidade infernal. Era apenas Bruce Dickinson visitando a sepultura do poeta William Wordsworth em um dia chuvoso. O clipe da música dá uma ideia da situação, mas muda o poeta: sai Wordsworth e entra outro William, Blake, esse bem conhecido dos fãs do cantor.

O álbum “Chemical Wedding” é baseado na obra de Blake e é dito que o poeta, artista e profeta (segundo sua lápide) também é importante na HQ que acompanha o álbum. De qualquer forma, fica o questionamento da letra:

“No pátio de uma igreja no interior, eu encontrei um homem
Ele sorriu e lentamente acenou para mim com uma mão trêmula
Você veio para apostar ou você veio para rezar?
O que significa a sua presença aqui em um dia de tempestade?
Os pingos de chuva respingaram no túmulo de céus cinzas de chumbo
Me negue uma vez, me negue duas vezes, não me olhe nos olhos”

“Rain on the Graves”

O Projeto Mandrake

Em “Resurrection Men” começa a parte do álbum que Bruce Dickinson compôs quando a ideia ainda era trazer uma obra conceitual. A letra parece ter conexões com a HQ, citando inclusive o Professor Lazarus, que segundo o site oficial do projeto, é um dos criadores do “The Mandrake Project”.

Na história criada por Dickinson, o título se refere a um tipo de tecnologia que promete trazer pessoas mortas de volta à vida, por meio de criopreservação. A tal tecnologia por vezes adquire ares de magia, especificamente necromancia, quando Lazarus diz na letra:

“Então levantem, vocês espíritos, levantem
Se mostrem no vidro
Levantem, apertem meu controle sobre sua alma
Evoquem seus demônios do lado de fora”

“Resurrection Men”

Segundo Bruce Dickinson ao Songfacts, a música é basicamente sobre o Professor Lazarus e o Dr. Necropolis, os dois grandes responsáveis pelo Projeto Mandrake. Eles são os “Homens da Ressurreição”.

Jesus Cristo, o maior dos influencers

E se Jesus Cristo fosse um digital influencer? Essa foi a ideia de Dickinson para “Fingers in the Wounds”. A música é uma crítica ao poder das mídias sociais e ainda dá uma leve alfinetada na religião mais popular do ocidente, como ele gosta de fazer com alguma frequência. O cantor disse.

“E se Jesus voltasse e fosse um influencer na internet? Como iríamos lidar com isso? Ninguém o levaria a sério como messias a não ser que ele tivesse milhões de seguidores. Achei que essa seria uma boa forma de tirar um sarro dos influencers.”

Bruce estava certo. A letra compara sutilmente o movimento dos dedos em smartphones aos dedos colocados nas feridas de Cristo, como que para provar que ele era real. Ao mesmo tempo em que o seguem e idolatram, seus seguidores o objetificam, invertendo a situação.

“E ninguém pode ouvi-lo, sua vida é um zero
Você só pode ser o que as pessoas veem

Então coloque seus dedos nas feridas e reze para que seja Deus
Uma rolada de dados por um pedaço de suas vestes
Só precisa de um herói, de um níquel ou 10 centavos
Pegue uma pérola de uma ostra e alimente os porcos”

“Fingers in the Wounds”

Falhas da eternidade e quebra-cabeças montado

Não é coincidência: “Eternity Has Failed” é a mesma “If Eternity Should Fail” que abre “Book of Souls” (2015), do Iron Maiden. A música foi composta por Bruce para seu projeto solo, mas Steve Harris gostou e resolveu incluí-la no disco, mantendo inclusive partes do conceito original.

Dickinson não abandonou a ideia e optou por lançá-la, mas adaptando ao novo contexto. A música é uma das que dialoga com a HQ de “The Mandrake Project” e segundo o vocalista, as alterações na letra foram feitas para que ela se encaixe melhor à história em quadrinhos. No fim das contas, a faixa ganhou contornos mais épicos do que já tinha – e apocalípticos também.

“Velejando nos confins do mundo
Mas a eternidade falhou
Você está esperando em uma fila pelo fim dos tempos
Mas a eternidade falhou
Nós estamos construindo uma ponte, para que vocês possam viver
Porque a eternidade falhou
Apenas uma questão de tempo para meu parceiro de crime
E a eternidade falhou”

“Eternity Has Failed”

A tal ponte sendo construída no refrão pode ter relação com outra, destruída, citada em “Afterglow of Ragnarok”, numa possível metáfora para uma passagem entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Pensando desta forma e levando o conceito da HQ em conta, os conteúdos líricos de “Many Doors to Hell” e “Rain on the Graves” podem ganhar um novo significado.

Na primeira, a vampira procura uma passagem do mundo dos mortos para o dos vivos. Já na segunda, o que o homem procurava no túmulo de um poeta guardado pelo Diabo em um dia chuvoso? Uma passagem do mundo dos vivos para o dos mortos.

Ode à música

Sobre “Mistress of Mercy”, Bruce Dickinson foi categórico ao afirmar que a “senhora da misericórdia” é a música, o que torna a letra, intensa, uma ode à arte. Funciona dessa forma, mas agora que o conceito de “The Mandrake Project” começa a ganhar forma, fica difícil não tentar traçar paralelos.

A letra pode ser interpretada também como uma visão do Dr. Necropolis sobre Leah, a enfermeira que trabalha com ele no Projeto Mandrake. Os dois possuem uma relação sexualmente efervescente e enquanto o cientista trabalha na misteriosa tecnologia que une vida e morte, ele se vê preso a essa paixão.

“Me dê minha liberdade, me liberte da minha dor
Senhora da misericórdia, venha me emocionar de novo
Hora de retornar para o mundo de onde vim
Sem mais amanhãs, sem julgamento ou culpa”

“Mistress of Mercy”

Falando em julgamento…

“Face in the Mirror” nos afasta novamente do conceito original. Bruce explica que é basicamente uma música sobre alcoolismo, mas também sobre o julgamento que as pessoas que têm vícios e questões a tratar sofrem da sociedade. Ele disse:

“É triste que as pessoas acabem caindo no chão bêbadas, mas talvez elas tenham mais sabedoria do que você imagina. E quando elas olham no espelho de manhã, o que elas veem? Quem elas veem?”

A música traz o tom questionador com o qual Dickinson a abordou, mostrando que ninguém é moralmente superior o suficiente para julgar o vício de alguém.

“Não consigo ver o paraíso
Embora eu viva no inferno
Então não olhe no espelho
Você pode se ver também”

“Face in the Mirror”

Romeu e Julieta, mas não só isso

“Shadow of the Gods” marca um dos momentos mais emocionantes de “The Mandrake Project”. Bruce explicou a música como uma espécie de “Romeu e Julieta” em um cenário cósmico, o que certamente combina com a letra, mas há uma ligação óbvia com o conceito da HQ.

Em algum momento, a história de “The Mandrake Project” falará de amor, mas não sem deixar seus principais elementos de lado. A necromancia volta a ser citada, assim como o mundo dos mortos e o frio.

“Eu preciso de um necromante, a ciência é inútil
Eu preciso de sua habilidade para levantar o véu
Liberar a santidade
Um sacrifício à meia-noite
Faça o que deve ser feito
Eu preciso de sua ajuda para salvar a todos eles
Salve meu único filho

Este é o meu mundo, mundo dos mortos
Esta é minha vida, mundo dos mortos

Antes que um corpo ficasse gelado, você estava lá para roubar sua alma
Seu filho está morto, ele me disse. Eu dei paz a ele, o deixei ir”

“Shadow of the Gods”

É impossível afirmar detalhes sobre a história, já que a HQ ainda nem foi completamente lançada no dia em que o disco saiu, mas vale lembrar que há um pai e um filho na história. O Professor Lazarus, um dos criadores do Projeto Mandrake, sofre da doença de Alzheimer. Sendo assim, seu filho Lazarus Jr. assume as funções do pai na empreitada.

Na letra, “Shadow of the Gods” também parece fazer referências, ainda que não totalmente claras, a outros momentos da carreira solo de Dickinson. Não tem como não pensar isso ao ouvir a primeira frase “and so we lay” (“e então nos deitamos”), famosa pelo refrão da faixa-título de “Chemical Wedding”. Em outros momentos, a letra parece lembrar a viagem espacial de “Navigate the Seas of the Sun”, balada de “Tyranny of Souls”, assim como em outras passagens do álbum.

A rainha, de novo?

A última faixa de “The Mandrake Project” é também a mais exótica de todo o álbum e a mais longa. “Sonata (Immortal Beloved)” tem uma letra igualmente longa, onde mais uma vez Dickinson parece acenar não só para o enredo do conceito original, como também para outros momentos da carreira solo, ainda que de forma sutil.

Descrita pelo cantor como uma versão “torta” do famoso conto da Bela Adormecida, a faixa envolve um rei e sua rainha, aparentemente morta e com novas referências ao gelo. É impossível não lembrar de “Taking the Queen”, do álbum “Accident of Birth”, cuja temática era parecida — ainda mais quando a letra usa palavras específicas, como “acolytes” (“acólitos”) que choram a morte da soberana.

“O rei retornou e tudo estava em silêncio
O corpo de sua rainha congelada trágica
Os acólitos ao redor dela
Expressões de horror

Me faça inteiro de novo
Traga minha rainha de volta
Me faça inteiro de novo
E traga a rainha do gelo agora
Volte para mim
Volte para mim”

“Sonata (Immortal Beloved)”

“Sonata (Immortal Beloved)” não tem esse título à toa. Ela é parcialmente inspirada pelo filme “Immortal Beloved” (“Minha Amada Imortal”, em português), assistido pelo guitarrista e produtor Roy Z. Trata-se de um épico em todos os aspectos.

Durante todo o álbum, Dickinson usa seu vocal tradicionalmente operístico com ares de ator. Afinal, mesmo que o conceito do disco tenha se perdido e ele não seja totalmente “amarrado”, as músicas ainda precisam dialogar com a HQ de “The Mandrake Project” de alguma forma.

Quando os quadrinhos estiverem completos, será possível analisar as letras do trabalho com mais referências a serem apontadas. De qualquer forma, Bruce Dickinson entregou um álbum liricamente complexo e intrincado, que deixa o ouvinte ansioso por completar todas as peças do puzzle, o que deve acontecer, naturalmente…

…se a eternidade não falhar.

*“The Mandrake Project” foi lançado nesta sexta-feira (1º) pela BMG. O álbum poderá ser ouvido nas plataformas digitais neste link. A edição física em CD pode ser adquirida clicando aqui.

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André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes é jornalista formado pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Interessado em música desde a infância, teve um blog sobre discos de hard rock/metal antes da graduação e é considerado o melhor baixista do prédio onde mora. Tem passagens por Ei Nerd e Estadão.

1 COMENTÁRIO

  1. Parabéns André, excelente matéria!!
    Sou mto fã do Bruce, tenho, inclusive o cd “chemical Wedding” autografado (Rádio 89).
    Gostei do disco, especialmente: “Face in the Mirror” e “Sonata (Immortal Beloved)”. Também ví os clipes no canal oficial dele no Youtube.
    Esse hiato de 19 anos tardou, mas valeu a pena a espera!
    Seu texto abriu diversas “salas” na minha cuca e trouxe contexto p/ idéias que eu apenas supunha, ouvindo a obra.

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