Do acidente à censura, a saga do Judas Priest em “Defenders of the Faith”

Nono álbum de estúdio foi moldado em meio a desafios; números, embora satisfatórios, registraram ligeira queda em comparação com os de seu antecessor

Screaming for Vengeance” (1982) e a extensa turnê mundial com 123 apresentações, intitulada World Vengeance, foram tanto um sucesso crítico quanto comercial. O oitavo álbum de estúdio do Judas Priest representou, basicamente, um experimento mais estrategicamente orientado para o mercado, resultando na banda sendo agraciada com seu terceiro disco de platina na América.

Chegado o momento de gravar o álbum seguinte, o vocalista Rob Halford, os guitarristas Glenn Tipton e K.K. Downing, o baixista Ian Hill e o baterista Dave Holland buscaram repetir a fórmula bem-sucedida — inclusive no design de capa —, dando origem ao que o autor canadense Martin Popoff descreveu como o “gêmeo mau de ‘Screaming’”.

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Essa é a história por trás de “Defenders of the Faith”.

Uma mesa de som morro acima

Quando desembarcaram em Ibiza em meados de 1983 para gravar o sucessor de “Screaming for Vengeance”, o Priest se deparou com uma situação inusitada, como relata Halford em sua autobiografia “Confesso” (Belas Letras, 2021). Seus primeiros dias na ilha foram passados o tempo bebendo e tomando sol, pois, nas palavras do vocalista, “o estúdio estava completamente vazio”.

“Todos os equipamentos haviam sido retirados; a mesa de som, os microfones, as caixas, os cabos, tudo. Não sobrou nem um talher na cozinha.”

A razão para essa ausência total de equipamentos foi revelada mais tarde: o proprietário do Ibiza Sound Studios, o alemão Fritz Ehrentraut, enfrentava dificuldades financeiras. Seus credores apareceram e basicamente deram a ele um ultimato: “Ou você paga, ou levamos tudo embora”.

Dado o prazo apertado para a gravação do álbum, o Priest optou por utilizar parte do adiantamento de gravação para resolver o problema. Como conta K.K. Downing em “Heavy Duty” (Estética Torta, 2021), alguns dias depois, Fritz deu a notícia:

“‘Consegui a mesa de volta’, disse. ‘Mas ela ainda não está no estúdio’. ‘Cadê ela, então?’. ‘Na estrada, morro abaixo do estúdio’. ‘Pelo amor de Deus!’. Enfim, descemos a colina e a enorme mesa de som estava de fato lá, no meio da estrada.”

Neste ponto, seria compreensível para a banda reivindicar seu status como astros do rock e recusar-se a carregar objetos pesados. No entanto, isso não aconteceu. K.K. continua:

“Com a ajuda de alguns troncos arredondados, rolamos a mesa de som morro acima sob o sol de Ibiza e a manobramos até a sala de controle. Todas as outras coisas nós remontamos. Levamos quatro dias para colocar tudo em ordem; só queríamos gravar nosso álbum.”

Assim, três meses após chegar de helicóptero e agitar cerca de 250 mil fãs de metal no US Festival, o Priest se viu transformado, nas palavras de Halford, em “trabalhadores braçais não remunerados ajudando a montar um estúdio”. O vocalista acrescenta: “Você não veria o Kiss fazendo isso…”

Um incidente noturno em Ibiza

Superados os contratempos iniciais, deram-se início às sessões de gravação. Os músicos dedicavam-se até tarde, encerravam o expediente e, então, trajando apenas regatas e shorts de praia, partiam em busca de diversão.

Numa dessas noites, ao saírem cambaleando de uma casa noturna no coração de Ibiza, a rua estava escura e aparentemente deserta. Foi nesse instante fugaz que um carro atropelou K.K., que descreve o ocorrido em sua autobiografia:

“Tudo aconteceu muito rápido. O carro me acertou na b#nda, essencialmente. Fui lançado para o alto antes de cair de costas no para-brisa (…) Poderia ter sido muito pior, mas eu tinha um machucado na perna que claramente exigia atendimento médico.”

Halford comenta que “pode parecer engraçado, mas não foi”.

“K.K. voou uns três metros. Foi uma cena horrível. Pensamos: ‘M#rda! Será que ele morreu?’. Ouvimos um gemido na escuridão: ‘Ai! Inferno do car#lho! Minha perna, p#rra!’. Não, K.K. ainda estava entre nós, mas não parecia nada bem.”

O guitarrista foi conduzido ao hospital local, onde um médico residente aplicou uma bandagem apertada, engessou sua perna e o liberou. “Era como se tivesse me embrulhado em fita adesiva”, recorda ele.

A situação agravou-se quando K.K. desenvolveu uma alergia à cola do esparadrapo. Após alguns dias, ele começou a apresentar erupções horríveis na pele, retornando ao hospital. “Jamais esquecerei quão doloroso foi o processo de remoção do curativo”, relata.

“Levou muito tempo para que meu nervosismo permitisse atravessar uma rua novamente. Eu não conseguia superar o fato de que, mesmo olhando para ambos os lados e assegurando-me de que não havia tráfego, ainda assim fui atingido. Esse medo perdurou por meses!”

“Um pau gigante, prestes a gozar”

Apesar do início conturbado, para dizer o mínimo, o álbum que eventualmente se tornaria “Defenders of the Faith” emergiu de maneira notavelmente habilidosa. A gravação, segundo K.K., “foi um dos processos mais divertidos de todos os tempos”.

“Em poucas semanas, tínhamos [o primeiro single] ‘Freewheel Burning’, ‘Jawbreaker’, ‘Rock Hard Ride Free’ [originalmente denominada ‘Fight for Your Life’] e ‘The Sentinel’ prontas. Quando as tocamos nessa ordem, Glenn perguntou: ‘Tem como ser melhor do que isso?’. Ele estava certo. Se houver uma sequência de abertura melhor em qualquer álbum de rock ou metal, ficarei feliz em ouvir qual seria. Na minha opinião, essas quatro músicas são incomparáveis.”

Halford compartilha que “Jawbreaker” foi uma repetição de seu truque de esconder letras gays nos álbuns da banda. Em “Confesso”, ele explica o significado de versos como “Deadly as the viper, peering from its coil / The poison here is coming to the boil” (“Mortal como a víbora, pronto para o abate / Lá está o veneno, prestes a jorrar”):

“É sobre um p@u gigante, prestes a gozar, e poderoso o bastante para quebrar o queixo de qualquer cara que tentasse encará-lo. Não contei isso à banda. Não tinha tanta certeza do quão bem ia pegar se eu, no estúdio, soltasse: ‘Então, caras, essa música aí é sobre um pauzão!’ (…) Anos mais tarde, falei aos caras do que se trata a letra. Eles riram e disseram: ‘Ah, sim, agora que você falou, percebemos bem do que se trata!’”

Uma advertência contra o holocausto nuclear — mensagem que continua relevante até hoje — dá o tom em “Some Heads Are Gonna Roll”, o segundo single do álbum, escrito por Bob Halligan Jr., o mesmo autor de “(Take These) Chains” de “Screaming for Vengeance”. “Para mim, nunca pareceu uma música do Judas Priest”, confessa K.K.

“Provavelmente porque não é! Sempre achei que essa música era uma estranha no ninho em ‘Defenders’, tanto estilisticamente quanto em produção. Suspeito que a gravadora sugeriu isso pensando em um possível sucesso — e desta vez acertou em cheio.”

De fato, “Some Heads Are Gonna Roll” não apenas entrou na Billboard — ao contrário de “Freewheel Burning” — como alcançou a 42ª posição na parada americana.

Sacudindo a censura

Nenhuma análise de “Defenders of the Faith” estaria completa sem mencionar “Eat Me Alive”. “Decidi que a letra deveria ser sobre as alegrias de receber um bom boquete”, revela Halford. Embora tenha mantido o significado de “Jawbreaker” escondido dos colegas, não houve dúvidas sobre o que “the rod of steel injects” (“o esguicho do cilindro de metal”) representava.

Não obstante a música tenha sido inicialmente uma brincadeira, a banda admite que a incluiu conscientemente, sabendo que atrairia a atenção da mídia. O problema é que, dois anos depois, despertou a ira do PMRC.

O PMRC, ou Parents Music Resource Center (Centro de Recursos para os Pais na Música), foi fundado nos Estados Unidos em 1985 por esposas de políticos e outras personalidades influentes, lideradas por Tipper Gore, esposa do então senador e futuro vice-presidente Al Gore. O principal objetivo do comitê era abordar preocupações sobre conteúdo lírico considerado explicitamente sexual, violento ou controverso na música popular, especialmente no rock e heavy metal.

De olho particularmente em letras inadequadas para crianças e adolescentes, o grupo elaborou a lista “The Filthy Fifteen” (“As Quinze Imundas”), destacando quinze músicas consideradas ofensivas, e “Eat Me Alive” ficou na terceira posição.

“Quando soubemos que estávamos entre as Filthy Fifteen, não sabíamos se ficávamos bravos ou ríamos”, recorda-se Halford.

“Aquilo era simplesmente ridículo, parte de uma agenda política que não nos dizia respeito e tampouco nos interessava. Aparentemente, Tipper e as outras Esposas de Washington não achavam que boquetes violentos, forçados à mão armada, eram uma coisa incrivelmente boa. Nisso, elas estão bem corretas, é claro… mas a nossa música era uma piada. A letra era do nível de uma história em quadrinhos de gosto duvidoso.”

K.K. concorda que a letra de Rob não deveria ser levada a sério.

“E certamente não pretendia ‘corromper’, como Tipper Gore e o PMRC acreditavam. Essa faixa certamente não fazia jus à sua posição na infame lista ‘The Filthy Fifteen’.”

Após muito debate, o PMRC alcançou seu principal objetivo: a rotulagem de álbuns com conteúdo considerado “ofensivo”. O comitê propôs a criação de um sistema de classificação semelhante ao utilizado para filmes, colocando adesivos que diziam “Parental Advisory: Explicit Lyrics” (“Aviso aos Pais: Letras Explícitas”) em todos os discos que contivessem letras potencialmente controversas.

A ironia foi que todos os adolescentes americanos fãs de rock imediatamente começaram a procurar os álbuns que ostentavam o adesivo. Para Halford, “o PMRC deu um empurrão nas vendas de muitos discos”.

“Screaming for Vengeance II”

“Defenders of the Faith” foi lançado em 13 de janeiro de 1984 e entrou nas paradas em dez países, atingindo a 18ª posição nos Estados Unidos e a 19ª no Reino Unido.

Simultaneamente, o Priest embarcou na Metal Conqueror Tour pela Europa (com Raven e Ted Nugent abrindo), América do Norte (com Great White e Kick Axe) e Japão, no que seria a primeira vez que a banda voltaria à Terra do Sol Nascente desde a gravação do ao vivo “Unleashed in the East” cinco anos antes. Nesta turnê, a banda tocou todas as músicas de “Defenders” ao vivo, com exceção de “Eat Me Alive”.

Apesar do sucesso do álbum, os números foram de fato inferiores à resposta explosiva a seu antecessor. Faltou no disco um megahit do porte de “You’ve Got Another Thing Comin’” e a imprensa o ridicularizou na época, apelidando-o de “Screaming for Vengeance II”.

Citado no livro “Judas Priest: Heavy Metal Painkillers” (ECW Press, 2007), de Martin Popoff, K.K. também concordou que o álbum era bastante semelhante a “Screaming”, observando que “fez uso dos mesmos ingredientes básicos”. Ele refletiu:

“Acho que o fato de termos feito um álbum tão bom no ‘Screaming’, e que foi tão bem-sucedido para nós, colocou uma pressão, realmente. E eu acho que, mesmo que haja muito material bom lá, se você ouvir atentamente, nos ouvirá tentando obter um pouco além disso; mais peso, um pouco mais de um efeitos ou algo assim, e provavelmente acaba soando um pouco inconsistente em alguns momentos.”

Para o nada autocrítico Halford, “Defenders of the Faith” é “uma boa representação do etos do Priest”.

“Quando terminamos o álbum, todos estávamos satisfeitos; parecia um bom resumo de quem éramos. Para mim, continua sendo um de nossos álbuns mais potentes e ferozes.”

Judas Priest — “Defenders of the Faith”

  • Lançado em 13 de janeiro de 1984 pela Columbia
  • Produzido por Tom Allon

Faixas:

  1. Freewheel Burning
  2. Jawbreaker
  3. Rock Hard Ride Free
  4. The Sentinel
  5. Love Bites
  6. Eat Me Alive
  7. Some Heads Are Gonna Roll
  8. Night Comes Down
  9. Heavy Duty
  10. Defenders of the Faith

Músicos:

  • Rob Halford (vocal)
  • K. K. Downing (guitarra)
  • Glenn Tipton (guitarra)
  • Ian Hill (baixo)
  • Dave Holland (bateria)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

3 COMENTÁRIOS

  1. Ótima e completa postagem! Eu amo esse disco e ele tem um valor sentimental nostálgico pra mim, muito grande. Foi com ele que comecei a curtir Judas Priest e Heavy Metal, já no longínquo ano de 1995.
    Ainda hoje, permanece sendo o meu preferido da banda (ao lado do também sensacional Stained Class). Os destaques são muitos, mas a sequência matadora de solos de Rock Hard Ride Free, é de tirar o fôlego!

  2. Simplesmente amo esse disco do Judas Priest, mas penso que ele teria um resultado bem melhor se a banda tivesse mais tempo para desenvolver suas composições no estúdio, também por conta dessa história do estúdio ter sido assaltado e do acidente que Downing sofreu na Espanha… Eu penso que se o JP tivesse esperado chegar o ano de 1984 para começar a trabalhar no Defenders de forma mais adequada após todos os problemas mencionados serem por fim resolvidos, aí sim o resultado de todo esse esforço sairia muito diferente e bem mais satisfatório do que saiu há 40 anos hoje completados. Mesmo assim, Defenders agora é o meu segundo álbum favorito da banda, depois de muito tempo ter sido o primeiro do meu ranking pessoal deles (o primeiro atualmente é Screaming for Vengeance). Longa vida ao JP e que venha o novo álbum Invincible Shield, que promete ser um dos melhores de sua incrível discografia, para fechar dignamente uma linda história dentro do heavy metal.

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