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Roger Waters oferece crítica e afago durante 2º show em SP

Apresentação que conclui etapa nacional da “This is Not a Drill” traz capricho técnico aliado a discurso forte, mas com intenção conciliadora

O nome da atual turnê de Roger Waters, encerrada neste domingo (12) com o segundo de dois shows no Allianz Parque, em São Paulo, não poderia ser mais preciso: “This is Not a Drill” (“isso não é um treinamento”). Pode parecer, mas a vida não é uma simulação, um teste. Acontece de verdade. E é necessário estar preparado ao máximo para o que ela nos apresenta; embora o protagonista da noite tenha nos mostrado, ao longo de sua trajetória, que é impossível se sair bem diante de todos os desafios que surgem no meio do caminho.

Neste espetáculo, que teve sete datas no Brasil — seis delas com cobertura pelo site —, Waters segue por dois caminhos. Como o próprio havia prometido ainda em janeiro de 2020, a apresentação seria ainda mais política que a turnê anterior, “Us + Them”, que gerou polêmica por críticas diretas a Donald Trump e até Jair Bolsonaro. O dedo é colocado na ferida constantemente. Ao mesmo tempo, há um tom conciliatório. Fala-se sobre fragilidades pessoais quase tanto quanto se discute os problemas do mundo. A ideia por trás da nova canção “The Bar”, executada em duas partes, resume a proposta da tour: fingir que estamos em um bar, onde podemos debater questões diversas com desconhecidos sem medo de, nas palavras de Roger, ser “cancelado ou preso”.

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Foto: André Tedim

Nem todos quiseram visitar este convidativo boteco, porém. Diferentemente da primeira noite — quando deu sold out —, havia espaços vazios notórios na pista premium e na arquibancada inferior do Allianz Parque nesta segunda ocasião. Os ingressos também não se esgotaram nas outras cidades, ainda que tenha passado longe de ser um fiasco em vendas. E parece ter muito mais a ver com altos valores de entradas + enxurrada de shows neste fim de ano do que com questões políticas.

Uma pena. Teria sido legal que mais e mais pessoas assistissem a um dos espetáculos musicais mais grandiosos da atualidade.

O chão treme

Já te contamos o roteiro do show em pelo menos seis textos deste site: as coberturas em Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e na primeira data em São Paulo, além de Lisboa, em Portugal. Dessa forma, o texto busca mais analisar do que narrar cada detalhe do que acontece em uma apresentação da “This is Not a Drill”.

Mas algo factual precisa ser destacado: às vezes, o chão treme durante a performance. O som surround utilizado no espetáculo é tão forte que a experiência sensorial — já carregada por audição com a mixagem mais cristalina que ouvi ao vivo e visão privilegiada a partir de quatro telões — acaba sendo elevada a outro patamar. Você sente a música logo de cara, com a versão “redux” de “Comfortably Numb”, que abre o setlist com ares de controvérsia.

A polêmica se dá porque muitos fãs não entenderam por que uma das canções mais icônicas do Pink Floyd ganhou uma releitura lenta, com vocais graves e, especialmente, sem solo de guitarra. Contudo, a maior parte das críticas vem de pessoas que sequer assistiram a qualquer um dos shows, porque fica claro como a versão faz sentido dentro do contexto da apresentação. Com artes de telão e figurino — Roger Waters entra vestido de médico —, fica claro o recado: atualmente, todos nos encontramos “confortavelmente entorpecidos”. Estamos confortáveis. Roger quer nos tirar dessa zona e consegue desde o primeiro momento.

Foto: André Tedim

A sequência arrebatadora com “The Happiest Days of Our Lives” e as partes 2 e 3 de “Another Brick in the Wall” coloca tudo nos eixos em termos musicais. Ainda assim, o recado segue: estamos nos tornando apenas tijolos na parede. Numa emenda incomum para shows desse tipo, uma trinca de canções solo pouco conhecidas e posicionadas logo no início são mais incisivas em, cada uma a seu modo, incomodar a ponto de provocar reflexão.

A primeira é a dramática “The Powers That Be”. Original do álbum “Radio K.A.O.S.” (1987), exibe no telão pessoas que foram assassinadas pela repressão estatal em função de motivos torpes. Muitas vezes os “crimes” são apenas “ser negro” ou “ser judeu”. Os nomes mais aclamados foram os de Mahsa Amini, mulher curda iraniana morta por seu hijabe (vestimenta tradicional islâmica) não atender aos padrões obrigatórios do governo, e Marielle Franco, vereadora carioca cuja vida foi ceifada após, segundo descrição de Roger, “criticar a polícia”.

Em seguida há “The Bravery of Being Out of Range”, do disco “Amused to Death” (1992), que leva Waters ao piano e surpreende por sua levada quase southern rock associada a acusações de políticos que se tornaram “criminosos de guerra”. Há vários ex-presidentes dos Estados Unidos, incluindo George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump, além do atual, Joe Biden. Políticos de outros países, como o presidente russo Vladimir Putin e o norte-coreano Kim Jong-un, também são exibidos, ainda que de forma mais discreta.

A já mencionada “The Bar”, que sequer foi lançada nas plataformas digitais, fecha a sequência incômoda com a conciliatória mensagem de poder debater sobre qualquer questão sem receber críticas. Trata-se de uma balada apenas razoável no piano que, segundo o próprio Roger, foi copiada de “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”, de Bob Dylan. Dedos na ferida à parte, o show dá uma travada e só volta a engrenar com a seção seguinte, dedicada a um álbum clássico do Pink Floyd: “Wish You Were Here” (1975).

“É tão fácil perder alguém”

“Have a Cigar”, “Wish You Were Here” (a canção) e a partes 6 a 9 de “Shine On You Crazy Diamond” têm a proposta de refletir sobre perdas. Para Roger Waters, de Syd Barrett, líder da fase inicial do Pink Floyd afastado após a descoberta de problemas mentais agravados pelo uso de drogas.

Para tal, toda a história de fundação do grupo é contada em português no telão. Na parte mais emocionante, Waters aponta como é fácil “perder” as pessoas; não apenas por morte ou doença, mas por circunstâncias diversas. A seção é dedicada a Syd (e é a mais bela musicalmente do show), mas incomoda como Roger retira qualquer aparição de David Gilmour — mesmo que algumas imagens utilizadas sejam nitidamente de quando o guitarrista já fazia parte do grupo. Vale lembrar que, apesar do período ter sido curto, Gilmour chegou a integrar a formação enquanto Barrett ainda estava nela.

Apenas uma faixa de “Animals” (1977), “Sheep”, consta no repertório. E é tocada logo após a trinca de “Wish You Were Here”, fechando o primeiro dos dois atos da apresentação. Em meio a um ou outro erro de tradução — o disco é citado como “Animais” —, Roger introduz mais recados no telão ao dizer que George Orwell, Aldous Huxley e Dwight D. Eisenhower estavam certos, como ele próprio, ao anteciparem os problemas da vida moderna em suas obras.

A ovelha gigante que sobrevoa a plateia pode até distrair um pouco, mas não é difícil notar que essa é a canção mais pesada do setlist. E também uma das que mais convida para a ação, pois pede-se para que os fãs resistam ao capitalismo, ao fascismo e à guerra.

Foto: André Tedim

O lunático está na sua cabeça

Após um intervalo de 20 minutos, Roger Waters retorna ao palco, agora como o louco da cadeira de rodas e não mais como o médico. A grandiosa “In the Flesh” e a dançante “Run Like Hell” representam bem o álbum “The Wall” (1979), mas as solos “Dèjá Vu” + reprise e “Is This The Life We Really Want?” só prendem a atenção devido à exibição um vídeo vazado de soldados americanos fuzilando nove civis em Bagdá, 16 anos atrás, e imagens de conflitos no Oriente Médio sob o pedido: “pare o genocídio”. Waters sabe que as canções fora do Pink Floyd não têm o mesmo apelo; por isso, faz delas as mais didáticas nos telões.

Foto: André Tedim

Pela música, ele ganha o público novamente ao executar, em seguida, todo o lado B de “The Dark Side of the Moon” (1973). É o momento onde, após tantos tapas na cara do público e apesar da crítica ácida na sempre incrível “Money”, o amor começa a vencer. A climática “Us and Them”, a potente instrumental “Any Colour You Like” e a apoteótica dupla “Brain Damage” + “Eclipse” culminam em um show de luzes nas cores do arco-íris e o momento mais aplaudido do setlist.

Foto: André Tedim

Waters até tenta voltar a colocar o dedo na ferida em “Two Suns in the Sunset”, do esquecido álbum “The Final Cut” (1983). No entanto, a melodia acalentadora e as artes nos telões em cores mais suaves reforçam que, chegando ao fim, a tentativa é oferecer alguma mensagem de esperança.

Foto: André Tedim

A reprise de “The Bar”, com homenagem à família do músico inglês — motivada após a perda do irmão mais velho ano passado —, deságua no simples encerramento “Outside the Wall”, onde cada integrante de sua primorosa banda de apoio é apresentado. A saber: Jonathan Wilson (guitarra e voz), Dave Kilmister (guitarra), Jon Carin (teclados), Gus Seyfert (baixo); Joey Waronker (bateria); Seamus Blake (saxofone); Robert Walker (órgão e piano), Amanda Blair (backing vocals) e Shanay Johnson (backing vocals). Um final de pouco glamour, assim como o início.

Nunca estamos em treinamento

É preciso tempo para digerir tudo o que foi apresentado em “This is Not a Drill”. Não só pela complexidade — ainda que tudo seja feito de modo tão didático —, mas, especialmente, pelo volume de informações e reflexões. Tudo nos leva a questionamentos do tipo: como aplicar tudo isso à vida real? Como deixar de ser crítico para tentar mudar, se não o mundo, ao menos o nosso entorno?

Nem Roger Waters, a mente por trás do show, consegue. Vez ou outra dá alguma entrevista esquisita, seja ao demonstrar afinidade com o tirano Vladimir Putin, ao passar do ponto na crítica sionista — e esbarrar, sim, no antissemitismo —, ao cogitar que o ataque do Hamas a Israel teria sido uma operação de bandeira falsa, ao afirmar que foi o único responsável por “The Dark Side of the Moon” ou ao fazer piada machista com Polly Samson, esposa de David Gilmour e também uma de suas detratoras. É um caso clássico de “faça o que eu digo, não o que eu faço”.

Foto: André Tedim

Mas até com os tropeços, Waters tem feito bastante. Para além do espetáculo desafiador que idealiza — inclusive com escolhas de fluxo de repertório não tão fáceis de se compreender —, é talvez o único artista desse porte a seguir combativo, às vezes demais, diante das injustiças do planeta. Seu ativismo transcende a música, a ponto de a segunda ser usada como veículo para o primeiro. Roger nunca está “em treinamento”. E nós? Estamos?

Foto: André Tedim

Roger Waters – ao vivo em São Paulo

  • Local: Allianz Parque
  • Data: 12 de novembro de 2023
  • Turnê: This is Not a Drill

Repertório:

  1. Comfortably Numb
  2. The Happiest Days of Our Lives
  3. Another Brick in the Wall, Parte 2
  4. Another Brick in the Wall, Parte 3
  5. The Powers That Be
  6. The Bravery of Being Out of Range
  7. The Bar
  8. Have a Cigar
  9. Wish You Were Here
  10. Shine On You Crazy Diamond (Partes 6 a 9)
  11. Sheep
  12. Início do segundo ato – In the Flesh
  13. Run Like Hell
  14. Déjà Vu
  15. Déjà Vu (reprise)
  16. Is This The Life We Really Want?
  17. Money
  18. Us and Them
  19. Any Colour You Like
  20. Brain Damage
  21. Eclipse
  22. Two Suns in the Sunset
  23. The Bar (reprise)
  24. Outside the Wall

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Igor Miranda
Igor Miranda
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

1 COMENTÁRIO

  1. Show me surpreendeu positivamente, embora não fosse meu primeiro show do Roger. É que achei que seus 80 anos iria pesar muito, mas não, a performance estava boa, contou histórias de suas musicas solo, tocou um repertório variado de Pink Floyd, porém somente canções dos anos 70, pulando os discos pré-dark side e final cut. Claro que hj como é modinha ser reacionário pró guerra, vai ter mimimi, mas nota 10.

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