“Vocês já esperaram por 30 anos”, exagerou Daniel Arvidsson, antigo guitarra-base e atual baixista do Draconian, ao pedir desculpas por um atraso gerado por problemas técnicos quando havia pouco mais de 30 minutos que a banda estava no palco do abarrotado Fabrique Club. “Come to Brazil”, brincou o vocalista Anders Jacobsson, “nós viemos ao Brasil”. E tocaram por mais de duas horas no frio anoitecer paulistano, para fã nenhum jamais esquecer.
Naquele momento, a banda se acertava com o computador responsável pelas bases atmosféricas e samplers antes de iniciar “Sorrow of Sophia”, faixa que abre seu disco mais recente, “Under a Godless Veil”, lançado durante a pandemia de Covid-19 em 2020. Dele haviam saído quase todas as faixas tocadas até então, mas o repertório se tornaria bem mais abrangente da discografia de 20 anos do Draconian na noite em que o grupo se apresentou pela primeira vez no Brasil.
*Fotos de Gustavo Diakov / @xchicanox.
Nem o mais fanático seguidor acreditaria que a banda sueca esgotaria aproximadamente 700 ingressos do Fabrique Club para sua estreia na América do Sul – a alta demanda gerou um show extra no dia seguinte na capital paulista no ainda mais intimista La Iglesia. A turnê se estenderá no continente com datas marcadas para Chile e Colômbia, além de um retorno ao México.
Não apenas essa ocasião especial fez com que a banda escolhesse um repertório mais abrangente de sua discografia: a ovacionada vocalista Lisa Johansson, voz feminina nos primeiros cinco álbuns do grupo, retomou seu posto após Heike Langhans, sua substituta nos dois discos mais recentes, ter decidido de forma amigável se afastar da banda quando esta retomou as atividades depois da pausa forçada pela pandemia – a transição das cantoras pode ser conferida na apresentação do grupo no Hellfest de 2022, disponível na íntegra no YouTube.
Por vários momentos, Johansson cantava frente a frente ao desgrenhado Anders Jacobsson, responsável pelos vocais masculinos do grupo, alternando grunhidos agressivos e lamentos melancólicos, dando teatralidade à hoje batida fórmula “A Bela e a Fera”. O que era algo esporádico na primeira geração do death doom inglês do trio da gravadora Peaceville (Paradise Lost, Anathema e My Dying Bride) foi aperfeiçoado pelos noruegueses do Theatre of Tragedy em “Velvet Darkness They Fear” (1996) e copiado à exaustão no que se convencionou chamar de gothic metal.
A sonoridade do Draconian, no entanto, reflete seu isolamento geográfico, cuja cidade natal é Säffle, na Suécia, de onde se demora mais ou menos o mesmo tempo para chegar a Oslo e a Gotemburgo. Não à toa, influências do death metal mais melódico e alguma rispidez do black metal norueguês acabaram moldando um estilo único e dinâmico à aplicação dos contrastes vocais.
O Draconian foi formado ainda nos anos 1990 pela união do guitarrista Johan Ericson a Jacobsson, responsáveis por praticamente todas as composições do instrumental e das letras, respectivamente. O grupo apenas achou uma identidade própria com a entrada de Lisa Johansson no início do novo milênio, consolidada na demo “Dark Oceans We Cry” (2002), da qual duas faixas, posteriormente regravadas nos dois primeiros discos da banda, se fizeram presente no repertório executado no frio fim de tarde paulistano.
Precisão mecânica
Sem banda de abertura e com quinze minutos de atraso do horário fornecido de modo quase militar pela organização, o Draconian subiu ao palco todo vestido de preto, óbvio, assim como quase todo o público. A mudança abrupta no clima na cidade, que cada vez mais vê temperaturas altas em seu inverno, propiciou um frio ideal para os sobretudos saírem do armário e as maquiagens pesadas não derreterem.
Todos os discos de estúdio do Draconian estiveram representados em sua noite de estreia em São Paulo. Se lado a lado Johansson e Jacobsson às vezes cantavam como um casal encenado, a vocalista também dançou ao ritmo ora mais gótico, ora mais funéreo e, simpática, sempre cumprimentava os fãs que se espremiam na frente do palco. O cantor, por sua vez, não demorou muito para buscar uma garrafa de vinho para acompanhá-lo na longa noite.
A execução com precisão mecânica das músicas para acompanhar os pouco efeitos pré-gravados não significou músicos pouco participativos. Apenas Ericson pouco saía do seu canto do palco comandando os riffs, melodias e solos do grupo, deixando o caçula de banda Niklas Nord mais à vontade para agitar com o público ao reproduzir as bases na guitarra e ajudar nos backing vocals. Enquanto um quase invisível Daniel Johansson substituía o baterista Jerry Tortensson dando ritmo perfeito às variadas dinâmicas musicais, o baixista loirão Arvidsson se portava como um colíder ao lado de Jacobsson.
Da empolgação à melancolia
Se a empolgação do público paulistano era latente na primeira metade do show, dedicada às canções mais recentes, a melancólica euforia tomou conta da casa quando foi tocada “The Cry of Silence”. O desgracento e melodioso doom death cheio de variações de andamento ao longo de mais de dez minutos abre o primeiro disco de estúdio do grupo, “Where Lovers Mourn” (2003).
Em seguida, os samplers de chuva denunciavam o início dos quase dez minutos de “A Scenery of Loss”, faixa de abertura de “Arcane Rain Fell” (2005), disco importante na consolidação da carreira dos suecos. A frenesi do público indicava que, se naquele momento o Draconian abandonasse o palco, sua estreia no Brasil já teria valido a pena.
Como um testamento à solidez da discografia do grupo, duas faixas de “Sovran” (2015), disco que marcou a estreia da ex-vocalista Heike Langhans, foram bem recebidas pelo público e cantadas com maestria por Lisa Johansson. Serviu como um respiro em meio a essa parte mais pesada da noite. Sob o mesmo contexto, houve ainda uma rara aparição de “The Morningstar”, música do quase sempre ignorado álbum “The Burning Halo” (2006).
Cansaço zero
Foi o suficiente para Jacobsson perguntar se as pessoas ainda estavam curtindo a si mesmas naquela noite e dizer que os membros do grupo ainda não estavam cansados. A partir de então, a trinca de encerramento de sua apresentação veio com canções do início de carreira do Draconian – dentre elas, aquelas duas da já citada demo do grupo.
Se a pesada “The Amaranth”, regravada no álbum de estreia, não recebeu nem um décimo da ovação da canção executada em seguida, “Daylight Misery”, icônica faixa de “Arcane Rain Fell”, o Fabrique quase veio abaixo quando Jacobsson anunciou que a banda tocaria uma poesia sua musicada.
“Death, Come Near Me”, a outra faixa da demo, registrada em “Arcane Rain Fell”, foi executada em todos os seus gloriosos quinze minutos para encerrar a noite de forma catártica e, parafraseando a letra de “Daylight Misery”, deixar todo mundo com um sorriso no rosto, mas sem sombra de se sentir doente por dentro.
*Fotos de Gustavo Diakov / @xchicanox. Mais imagens podem ser conferidas ao fim da página.
Draconian – ao vivo em São Paulo
- Local: Fabrique Club
- Data: 26 de agosto de 2023
- Turnê: Death of the Earth
Repertório:
- The Sacrificial Flame
- Lustrous Heart
- The Sethian
- Sleepwalkers
- Stellar Tombs
- Sorrow of Sophia
- Elysian Night
- Seasons Apart
- The Cry of Silence
- A Scenery of Loss
- Dishearten
- The Morningstar
- Pale Tortured Blue
- The Amaranth
- Daylight Misery
- Death, Come Near Me
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Só uma correção: o baterista que veio nessa turnê se chama Daniel Johansson. O Jerry não tem tocado com a banda há alguns meses.
Ótima matéria! 🙂
Excelente resenha!
Esse show foi incrível!!!!!!!!!!!
Tive a honra de prestigiá-los. O show foi perfeito, foram super simpáticos com o público durante e depois do show. Espero que voltem mais vezes, pois irei com certeza.