A teoria dos seis graus de separação se fez valer nesta sexta-feira (2) de Best of Blues and Rock, festival que acontece até domingo (4) no Parque Ibirapuera, em São Paulo. Este escriba pôde perguntar a Tom Morello e Nuno Bettencourt o que um pensa do outro com relação a guitarra. Como resposta, ouviu que o músico do Rage Against the Machine acompanhava o Extreme – inclusive indo a shows – na adolescência (em outro momento, até confessou que tentou trazer Gary Cherone para cantar na banda que virou o RATM). Nuno, por sua vez, deixou claro: o colega de instrumento é por vezes injustiçado, já que enfrenta críticas pelo uso predominante de efeitos por gente que nem sabe o quanto ele toca bem independentemente dos pedais usados.
Fato é: o público pôde conferir dois shows de guitarristas revolucionários que, curiosamente, nunca haviam dividido o palco em uma mesma noite. Morello, descrito pela Guitar World (a revista mais importante do planeta sobre o instrumento) como o “Eddie Van Halen dos anos 1990”, entregou uma apresentação enérgica e que contemplou praticamente toda a sua carreira – mesmo. Bettencourt, que conseguiu oferecer algo verdadeiramente novo em pleno 2023 com o solo da nova música “Rise”, exibiu sua técnica apuradíssima nas seis cordas mesmo com um joelho lesionado.
Vídeo com a resposta da referida pergunta citada no primeiro parágrafo:
E teve todo o resto, é claro. Da competente banda que acompanhou Tom ao poderoso trio que completa o Extreme, passando pelos interessantes shows das atrações nacionais de abertura Nanda Moura (com músicos do Blues Etílicos no apoio) e Malvada (uma das boas notícias do rock brasileiro nos últimos anos). Um primeiro dia pra ninguém botar defeito.
A elegante blueswoman
Entre 100 e 200 pessoas se fizeram presentes para assistir ao bom show de Nanda Moura, acompanhada por músicos do Blues Etílicos: Otávio Rocha (guitarra), César Lago (baixo) e Gil Eduardo (bateria). O sol aquecia o suficiente para nos fazer esquecer o frio dos últimos dias – e que voltaria a se instalar nas horas seguintes.
Sol, aliás, que foi culpado por um erro logo no início do repertório, fazendo Nanda e grupo reiniciarem. Tiraram de letra não só o tropeço, mas toda a apresentação. Em que pese o setlist composto apenas por covers, ao menos eram canções pra lá de bem escolhidas.
Afinal de contas, não é em qualquer lugar que se escuta sons como a merecidamente aplaudidíssima “Walking Blues” (Robert Johnson), a ardida “Everything Gonna Be Alright” (Little Walter) e um medley que vai de – ou engana com – “La Grange” (ZZ Top) até mesclar “Baby Please Don’t Go” (Big Joe Williams) e “Hit the Road Jack” (Ray Charles), numa tacada só. E tudo com elegância, tanto na execução geral quanto no figurino da alinhadíssima Nanda, que até tocou com uma guitarra cigar box no início do set. Coisa de quem ama o blues.
Como observação, poderia ter sido um show com mais interação de Nanda – que por vezes parecia sobrecarregada por assumir voz e guitarra – com a plateia. Faltou diálogo e até apresentar as escolhas do repertório. Quando tentou compensar, mais ao fim, parecia um pouco tarde demais. Mas se toda apresentação musical tivesse só isso de problema, estaria bom demais.
*Fotos de Gabriel Gonçalves / @dgfotografia.show. Role para o lado para ver todas. Caso as imagens apareçam pequenas, atualize a página.
Malvada agrada
Uma das boas notícias do rock brasileiro nos últimos anos, a Malvada talvez tenha sido a atração que mais fez proveito do Best of Blues and Rock em seu primeiro dia. Diante de um público ao qual talvez não teriam acesso em circunstâncias normais, Angel Sberse (voz), Bruna Tsuruda (guitarra), Ma Langer (baixo) e Juliana Salgado (bateria) nitidamente conseguiram converter vários presentes com um show pra lá de correto.
Obra e identidade da banda ainda estão em desenvolvimento. Foram lançados até aqui apenas um álbum, “A Noite Vai Ferver” (2021), e um single, “Perfeito Imperfeito”, sempre com ligeira inclinação ao pop rock em meio a um peso que não domina e melodias que, embora grudentas, pecam em identidade própria. Somente Angel chegou “pronta” ao grupo enquanto cantora e frontwoman – suas credenciais foram apresentadas a um público ainda mais amplo durante o “The Voice Brasil” na temporada 2020, ano de fundação da Malvada. Ma e Juliana cumprem suas funções de forma competente, com destaque ao preenchimento de peso oferecido pela baixista, mas sem roubar os holofotes; já Bruna, em que pese o visível talento, ainda parece demandar trabalho extra na precisão e fluidez de sua performance, especialmente nos solos.
Mas nada do que foi descrito como possíveis problemas no parágrafo anterior importou para as centenas de pessoas já aglomadas na área externa do Auditório Ibirapuera. E a opinião do público, que ficou satisfeito com a performance, é a que importa. A guitarrista, em especial, reverteu a situação com carisma e presença – era quem mais buscava contato próximo com a plateia. Em cada uma das várias vezes que surgia à beira do palco, arrancava gritos de empolgação dos presentes.
Uma série de fatores contribuiu para que tantas pessoas fizessem elogios à apresentação, na maioria das vezes reconhecendo ter acabado de conhecer a banda. Por trás da voz poderosa de Angel e do carisma e competência de suas colegas, houve também sabedoria ao construir o repertório. Cada vez mais acostumado com palco, o grupo não teve medo de recorrer a covers para equilibrar o set autoral.
Foram três versões, para clássicos de Rita Lee (“Esse Tal de Roque Enrow”), Janis Joplin (“Summertime”) e Jimi Hendrix (“Purple Haze”), distribuídos entre as canções próprias – também muito bem escolhidas, priorizando as mais performáticas (como a forte “Prioridades” ou a arrastada “Mais Um Gole”) ou as mais grudentas (a exemplo de “O Que Te Faz Bem” ou a balada “Quem Vai Saber”). Funcionou.
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Repertório – Malvada:
- Disso Que Eu Gosto
- Prioridades
- Pecado Capital
- Esse Tal De Roque Enrow (cover de Rita Lee)
- Quem Vai Saber
- Summertime (cover de Janis Joplin)
- O Que Te Faz Bem
- Perfeito Imperfeito
- Mais Um Gole
- Purple Haze (cover de Jimi Hendrix)
- A Noite Vai Ferver
Extremamente f#da
O atraso de 15 minutos para o início do show só colocou ainda mais expectativa em torno do Extreme. Mas a espera – no relógio e no calendário, já que fazia oito antes desde a última visita ao Brasil – começou a valer a pena logo nos primeiros segundos de um solo de guitarra de Nuno Bettencourt, introduzindo “Decadence Dance”. Ainda que não tenha sido tocada até o fim, a canção do álbum “Pornograffitti” (1990) resume bem o som do quarteto completo por Gary Cherone (voz), Pat Badger (baixo) e Kevin Figueiredo (bateria): hard rock com groove, molejo e muita técnica, especialmente – mas não exclusivamente – por parte de Bettencourt.
O guitarrista, aliás, fez de tudo para não cancelar a data única no Brasil. Sofreu uma lesão no joelho durante uma partida de basquete no cruzeiro Monsters of Rock Cruise, mas trabalhou duro para se recuperar. Apresentou-se de joelheira ortopédica, estava um pouquinho manco e pouco se moveu no palco. Foi agraciado com todo o carinho do público brasileiro, que gritou várias vezes por seu nome, especialmente ao fim do set. E no quesito movimentação, Gary Cherone tratou de compensá-lo: de fôlego inesgotável, o vocalista percorreu todos os espaços permitidos, até mesmo subindo em amplificadores.
Na primeira etapa do set, os fãs mais dedicados fizeram a festa. A pesada “Rebel”, o groove incomum de “It’s a Monster” e a injustiçada “Rest in Peace” esquentaram o coração de quem estava ali para ver mais do que os hits. A crua “Banshee”, uma das faixas do próximo álbum, “Six”, foi tão bem recebida que parecia das antigas. Já a divertidamente insana “Play with Me”, que referencia até Mozart em seu solo, começou a aproximar os ouvintes mais casuais – seja em função de sua presença no game “Guitar Hero Encore: Rocks the 80s” e na série “Stranger Things” ou pela introdução evocando “We Will Rock You”, do Queen.
Agora munido de seu violão, Nuno disse até estar com frio, contudo, a partir deste momento, encontrou ainda mais calor do público. Após fazer um solo meio flamenco acompanhado de uma batida artificial, puxou com Gary o momento mais aguardado da noite: “More Than Words”, cantada por quase todo cidadão presente no Ibirapuera. De arrepiar. Muitos pensaram que “Cupid’s Dead” seria “Get the Funk Out” pela introdução similar, mas a canção de “III Sides to Every Story” (1992) serviu mais como abre-alas para “Rise”, single do novo disco que também parecia uma velha conhecida dos fãs. O solo de Nuno, que já se tornou histórico em tão pouco tempo, arrancou aplausos e gritos justíssimos.
Um novo momento acústico rendeu “Hole Hearted”, agora com a banda toda – até mesmo Kevin Figueiredo cuidando da percuteria – e quase tão cantada pelo público quanto “More Than Words”. Bettencourt, que àquela altura já tinha a plateia na mão com seu carisma e talento, ficou sozinho no palco para executar “Flight of the Wounded Bumblebee”, não antes sem sacanear: “Cadê meus colegas? Acho que rompemos com a banda de novo”. “Get the Funk Out”, agora sim ela, encerrou o set com uma participação surpresa que poderia ter até durado mais: após o solo, o orgulho nacional Mateus Asato fez um duelo com Nuno, que o definiu como “o maior guitarrista do mundo” em sua opinião.
É sabida a relação especial do Extreme com o Brasil – muito em função da visita para shows em 1992, no auge da popularidade do grupo –, mas até o fã mais entusiasmado se surpreendeu ao notar que, muito provavelmente, a maior parte do público presente estava ali para ver Gary, Nuno, Pat e Kevin. Como retribuição, o quarteto deixou cada gota de suor em cima do palco. Que não demore tanto até a próxima visita.
*Fotos de Gabriel Gonçalves / @dgfotografia.show. Role para o lado para ver todas. Caso as imagens apareçam pequenas, atualize a página.
Repertório – Extreme:
- Decadence Dance
- Rebel
- It’s a Monster
- Rest in Peace
- Am I Ever Gonna Change
- Banshee
- Play with Me
- Midnight Express – Solo de violão de Nuno Bettencourt
- More Than Words
- Cupid’s Dead
- Rise
- Hole Hearted
- Flight of the Wounded Bumblebee
- Get the Funk Out
Pot-pourri de respeito
O formato de show adotado por Tom Morello em carreira solo é um tanto desafiador. O guitarrista é adepto dos medleys, ou pot-pourri, como no termo francês popularizado no Brasil: em vários momentos, toca apenas trechos de várias músicas em sequência, geralmente sem vocais. E surpreendentemente – ou não, já que Morello é um dos grandes riffmakers da história do rock e opta por fazer isso justo com as músicas do Rage Against the Machine – dá certo.
O músico iniciou no Brasil uma breve turnê solo que se esticará para o Chile e por festivais da Bélgica e Itália. Foi a forma que ele encontrou para retornar aos palcos após a malfadada turnê de reunião do Rage Against, banda sobre a qual não poderia ser perguntado durante entrevistas para promover o evento. Uma lesão no pé do vocalista Zack de la Rocha fez com que os próximos compromissos fossem não adiados, mas cancelados – e Tom, à Rolling Stone, deu a entender que são mínimas as chances de mais shows mesmo após a recuperação do colega.
Se não é tão bom em explicações, o guitarrista certamente é ótimo em fazer som. Mostrou, mais uma vez, que seu instrumento opera como uma extensão de si, já que se expressa muito melhor através de riffs pesados e solos verdadeiramente únicos. Aliás, quem diz que Morello é uma farsa por conta do uso de efeitos certamente nunca o viu ao vivo, especialmente neste modelo solo, onde desfila habilidade até nos momentos de poucos acionamentos no pedalboard.
Ainda que acompanhado de uma competente banda formada por Carl Restivo (voz e guitarra), Dave Gibbs (baixo) e Eric Gardner (bateria), Tom puxa para si o protagonismo. Ocupou a posição central do palco, teve sua guitarra em notória linha de frente na mixagem e até cantou em músicas como “Hold the Line”, “Lightning Over Mexico” (dedicada à vereadora assassinada Marielle Franco), “Keep Goin’” (com os colegas batendo palmas e fazendo fundo vocal ao seu lado) e “The Ghost of Tom Joad”, esta última de Bruce Springsteen. Seu vocal dá para o gasto em canções de tom mais grave, mas não passa disso.
Carl Restivo, por sua vez, assumiu o microfone principal e demonstrou grande alcance em momentos como “Like a Stone” (hit do Audioslave dedicado à memória de Chris Cornell) e “Gossip” (composição do Maneskin com solo originalmente gravado por Morello). No geral, porém, foi um show instrumental. Há quase mais falas (mesmo sendo poucas) do que cantoria: Tom disse em momentos distintos, por vezes em português, que “estava tocando pela paz, igualdade e rock and roll e contra o fascismo” e que tocaria músicas de 17 dos 21 discos que gravou em toda a carreira, só para ficar nos exemplos principais.
Além das homenagens citadas a Cornell e Marielle, o guitarrista do Rage Against the Machine tocou “Secretariat (For EVH)”, que vai de uma emulação de “Little Guitars” a um bluesão forte, sem mencionar diretamente Eddie Van Halen (mas quem conhece a música, sabe do tributo) e dedicou “Rat Race”, de sua primeira banda, o Electric Sheep, ao amigo Rich, falecido recentemente. Era, segundo ele, uma das poucas pessoas que não odiava o grupo inaugural sua carreira, que trazia Adam Jones, do Tool, como integrante.
Sobrou espaço ainda para participações especiais. Gary Cherone e Nuno Bettencourt subiram ao palco para um cover parrudo de “Cochise”, enquanto todos os integrantes do Extreme e Steve Vai (que só se apresenta no sábado, 3) cantaram uma breve versão de “Power to the People”, de John Lennon.
Esses e outros momentos trouxeram a impressão de que estávamos testemunhando algo único. Um show que não se vê tão facilmente por aí, em meio a longas turnês ou visitas frequentes ao Brasil. Tom até tocou no Best of Blues and Rock outra vez no passado, em 2018, mas só. Pouca gente no planeta viu esse modelo de apresentação, ainda mais com convidados do tipo. Só por isso, já vale o ingresso – que pode ser adquirido para domingo (4), já que o guitarrista se apresentará novamente no último dia do festival.
*Fotos de Gustavo Diakov / @xchicanox e André Velozo / Best of Blues and Rock. Role para o lado para visualizar todas. Caso as imagens apareçam pequenas, atualize a página.
Repertório – Tom Morello:
*Imenso agradecimento a Vagner Mastropaulo, colaborador do site que cobria o evento pelo site Onstage e conseguiu a informação deste setlist. Não deixem de conferir, também, o trabalho de Vagner por lá.
- One Man Revolution
- Let’s Get the Party Started
- Hold the Line
- Medley Rage Against the Machine: Bombtrack / Know Your Enemy / Bulls on Parade / Guerrilla Radio / Sleep Now in the Fire
- Like a Stone (Audioslave)
- Voodoo Child (cover de Jimi Hendrix)
- Gossip (cover de Maneskin)
- Lightning Over Mexico
- Secretariat (For EVH)
- Cato Stedman & Neptune Frost
- Atlas Medley: Rat Race (Electric Sheep) / Battle Sirens / Where It’s At Ain’t What It Is / Prophets of Rage (cover de Public Enemy) / Harlem Hellfighter / Can’t Stop the Bleeding / Bullet in the Head (Rage Against the Machine)
- Keep Goin’
- Medley: Testify (Rage Against the Machine) / Ghetto Blaster / Half Man Half Beast / Born of a Broken Man / Freedom (Rage Against the Machine) / Snake-Charmer
- Vigilante Nocturno
- The Ghost of Tom Joad (cover de Bruce Springsteen)
- Cochise (Audioslave; com Gary Cherone e Nuno Bettencourt)
- Killing in the Name (Rage Against the Machine)
- Power to the People (cover de John Lennon; com todos os integrantes do Extreme + Steve Vai)