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Crítica: “Dahmer: Um Canibal Americano” é uma elegante ode ao doentio

Em novo acerto de Ryan Murphy, Netflix traz história de um dos criminosos mas sádicos de todos os tempos com fórmula dramática e pomposa que funciona de forma magistral

Em um novo e grande trunfo, a Netflix firmou parceria com o visionário Ryan Murphy e trouxe para seu catálogo a elegante minissérie: “Dahmer: Um Canibal Americano”. Pode parecer estranho usar uma palavra que remete a beleza ao definir uma produção que conta uma das piores histórias da humanidade, mas a narrativa adotada é tão sublime que abre uma nova possibilidade ao retratar serial killers no drama.

Além de abordar o funcionamento de uma mente doentia, a série de 10 episódios evidencia como o racismo e a homofobia se dava nas décadas de 1980 e 1990. Naturalmente, isso também provoca uma reflexão sobre os tempos atuais.

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Mas o debate realmente aberto é sobre o que é ser um criminoso – ou um doente.

Uma minissérie “leve”?

Apesar de toda a repercussão nas redes sociais, “Dahmer: Um Canibal Americano” é “leve” frente ao que aconteceu na vida real. Por uma série de razões, muitos fatos são deixados de fora ou modificados – acima de tudo, trata-se de uma obra dramática e não de um documentário ou um filme gore.

Os episódios abordam a vida de Jeffrey Dahmer desde a gravidez da mãe. Para alguns, acompanhar isso seria tentar justificar as atrocidades cometidas, mas não é este o caso por aqui. O andamento adotado por Ryan Murphy é calmo e não teme ser lento, pois visa a construção por camadas da visão do cineasta sobre o monstro. É quase um experimento artístico onde o interno sempre prevalece.

São, ao todo, 17 assassinatos envoltos em casos de canibalismo, estupros e uso de drogas. Um pacote de perversidade. Ainda assim, Murphy oferece uma espécie de balé com tudo isso. Até mesmo as cores adotadas contam a história – aquele certo tom amarelado parece combinar com tudo.

https://www.youtube.com/watch?v=getE-JuEOUE

Romantização ao demônio

Há quem enxergue em “Dahmer: Um Canibal Americano” uma certa pré-disposição a romantizar a história de Jeffrey Dahmer. No entanto, a discussão proposta pelo seriado é madura: o que deveríamos considerar um ser como este?

Ainda que Dahmer tenha sido julgado como uma pessoa sã – e por isso condenado a 957 anos de prisão –, é impossível não o enxergar como alguém doentio em vez de um criminoso comum.

Ao dramatizar essa história, Ryan Murphy e sua equipe trazem camadas que poucos se interessam em apresentar, já que um filme de terror que retratasse os mesmos atos renderia rios de dinheiro sem provocar qualquer debate. Como se trata de uma história real, é outra a profundidade sobre o que é ser mal.

Outro responsável pelo resultado satisfatório obtido com a minissérie é Evan Peters. O ator já venceu um Emmy por seu trabalho em “Mare of Easttown” da HBO e pode estar próximo de conseguir outro.

A construção feita em seu personagem enche os olhos. A forma que sentimos sua entrega e os rumos perturbadores da obra contrastam com uma performance contida e cheia de respiros e olhares. Se os olhos são a janela da alma, Evan soube muito bem como explorar isso – ainda que ao dar vida a um canibal.

Paralelos

Em janeiro de 2018, o mundo acompanhou a extraordinária minissérie “O Assassinato de Gianni Versace: American Crime Story” – que tem dedo de Ryan Murphy. Conforme retratado pela produção, a morte do famoso designer italiano foi cometida por um psicopata egocêntrico e instável, mas tudo em um nível completamente criminoso.

A construção de “Dahmer: Um Canibal Americano”, por sua vez, nos leva à concepção de um ser completamente doentio. Por mais que a condenação tenha sido mais do que justa, é interessante mergulhar em como uma mente é capaz de ser levada a esse ponto.

Parece até ter havido treino para que tal cérebro não conseguisse deixar de pensar em morte, sangue, órgãos e sexo, o que desencadeou uma obsessão viciosa em alguém que foi diagnosticado com transtorno de personalidade borderline, transtorno de personalidade esquizotípica e transtorno psicótico. Não à toa, a mãe do assassino queria que o órgão fosse estudado.

https://www.youtube.com/watch?v=2WtL_C3aHeM

Uma era de injustiças

Jeffrey Dahmer foi, provavelmente, o primeiro serial killer com “patrocínio”. Houve chance de detê-lo desde o primeiro assassinato. Foram incontáveis as vezes em que ele poderia ter sido parado, mas nunca foi. É um ganho magistral quando a obra retrata isso tão bem.

O homem dopou e estuprou duas vítimas em uma sauna destinada ao público homossexual; ninguém fez nada a não ser impedi-lo de frequentar o ambiente. Foi parado pela polícia numa noite enquanto estava bêbado e com diversos sacos pretos suspeitos no carro; acabou apenas “orientado” a voltar pra casa.

O caso mais emblemático se deu quando a polícia encontrou um jovem de 14 anos que conseguiu escapar de Jeffrey. Localizado nu, sangrando e completamente dopado, ele foi recuperado por Dahmer após o mesmo contar que eram namorados. A polícia pareceu ter acreditado no assassino simplesmente, por enxergar na homossexualidade uma prática suja. Era como manter-se limpo daquela anormalidade considerada imunda.

Uma frase que ficará sempre marcada nesta minissérie: “aqui tem muitas coisas de gay”. Jeffrey Dahmer usava muito a ideia de que ao citar seu apartamento era repleto de “coisas gays”, impediria que qualquer um adentrasse – e, pasme, funcionava.

De volta ao topo, mas com ressalvas

A Netflix tem um problema grave de marketing ao lançar todos os episódios das séries de uma vez em detrimento das estreias semanais. Em tempos de crise, a poderosa empresa usa uma estratégia ao meu ver equivocada, o que impede que a maior parte de suas obras se mantenha no topo por mais do que algumas semanas.

Enquanto isso, estamos há mais de um mês falando da HBO com “House of the Dragon”, Disney+ com “Mulher-Hulk” e Amazon Prime Video com “Anéis de Poder”. A gigante do streaming tem em mãos uma belíssima minissérie que, para muitos, acabou em três dias.

Independentemente do hype, “Dahmer: Um Canibal Americano” é recomendada. A doentia história oferece muitas camadas capazes de provocar reflexão. No fim das contas, a Netflix entregou o prometido de forma mais do que satisfatória.

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Raphael Christensen
Raphael Christensenhttp://www.igormiranda.com.br
Ator, Diretor, Editor e Roteirista Formado após passagem pelo Teatro Escola Macunaíma e Escola de Atores Wolf Maya em SP. Formado em especialização de Teatro Russo com foco no autor Anton Tchekhov pelo Núcleo Experimental em SP. Há 10 anos na profissão, principalmente no teatro e internet com projetos próprios.

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