Se você já ouviu rádios rock pelo mundo, foi em eventos esportivos, assistiu clipes clássicos da MTV, jogou “Guitar Hero” ou assiste luta livre, o nome Living Colour lhe faz lembrar imediatamente do riff icônico e daquele primeiro verso:
“Look in my eyes
What do you see?
The Cult of Personality”
“Cult of Personality” é uma das canções mais icônicas dos anos 1980, de uma das bandas mais influentes da década. Mas a estrada pro mundo sequer ouvi-los foi tortuosa devido ao racismo profundo da indústria musical.
Essa é a história do lendário álbum de estreia do Living Colour, “Vivid”, lançado em 3 de maio de 1988.
Quando rock era só coisa de branco
O rock pode ter sido criado a partir da música negra e figuras como Jimi Hendrix podem reinar até hoje como ícones musicais, mas nos anos 1980 o gênero era mais branco que giz. Mega astros pop como Prince e Michael Jackson pegavam emprestados conceitos roqueiros em suas canções, mas o rock em si era dominado por bandas de hair metal e artistas famosos desde os anos 1960.
Nesse cenário, uma banda de Nova York formada por músicos de jazz surgiu decidida a virar tudo isso de cabeça pra baixo.
O Living Colour foi criado em 1984 pelo guitarrista Vernon Reid, famoso na cena jazzística novaiorquina. Contudo, o projeto só chegou a sua formação clássica em 1986, com Reid, Corey Glover nos vocais, Muzz Killings no baixo e Will Calhoun na bateria.
Nesses dois anos, o grupo desenvolveu um som que combinava jazz, funk, metal, punk rock e música experimental, além de apresentações ao vivo com elementos visuais inovadores criados pelo iluminador Andy Elias. Ainda assim, as gravadoras não estavam interessadas.
O então empresário do grupo, Roger Cramer, explicou ao The Ringer em termos simples:
“Rock era feito por brancos naquela época. Era o auge da hair band. E o Living Colour chegou conseguindo tocar e cantar muito mais que aquelas bandas. Mas eles eram negros. A indústria musical era totalmente racista. A oposição era intensa por todos os lados. Nós oferecemos a todas as gravadoras. E naquela época havia muitas delas.”
Um encontro fortuito com uma lenda
Em meio a essa batalha para serem levados à sério como uma banda de rock, Reid conseguiu um trabalho como guitarrista no que viria a ser o primeiro disco solo de Mick Jagger, “Primitive Cool”. O cantor dos Rolling Stones já havia ouvido falar do grupo através de Doug Wimbish, baixista com quem trabalhava na época – e que substituiria Muzz Skillings no Living Colour já na década de 1990.
Essa conexão profissional levou o vocalista a ver o Living Colour ao vivo. A impressão desse show foi tamanha a ponto de Jagger pausar as gravações do álbum solo por uma semana e produzir duas demos do grupo.
A resistência das gravadoras continuou, mas eventualmente esse apadrinhamento foi suficiente para a Epic Records decidir apostar no grupo. Em entrevista à Billboard, Vernon Reid deu sua impressão sobre essa jornada toda:
“Precisou de muita coisa pro ‘Vivid’ existir. Tudo teve que dar certo, e aí Mick Jagger teve que ficar interessado. Tem algo no fato que o rockstar mais famoso do mundo na época tinha que estar interessado na gente pro nosso disco sequer ser ouvido que é loucura.”
A alma política de “Vivid”
Todo mundo que conhece “Cult of Personality” sabe os primeiros versos, as citações a líderes do século 20 e talvez a origem da expressão “Culto à personalidade” num discurso de Nikita Khruschev ao 20º Congresso do Partido Comunista denunciando o stalinismo.
Entretanto, a primeira coisa que se ouve na faixa de abertura de “Vivid” não é o vocalista Corey Glover, e sim o ativista afro-americano Malcolm X num trecho de um discurso subsequentemente chamado “Mensagem a Grass Roots”:
“E nos poucos momentos que nos restam, queremos falar bem próximos ao chão numa linguagem que todo mundo aqui consegue entender.”
O discurso é uma condenação da infiltração e apropriação do movimento de direitos civis por brancos. Ao longo de “Vivid”, essa mensagem é refletida nos temas que o disco aborda. Uma decisão que contrasta com o que havia se tornado o rock naquele momento – ao deixar para trás suas raízes negras, o gênero também abandonou os temas sociais relevantes a essa parcela da sociedade.
Composta por Reid com a poetisa Tracie Morris, “Open Letter (to a Landlord)” lida com o fenômeno de gentrificação. “Funny Vibe”, que conta com a participação de Chuck D e Flavor Flav do Public Enemy, fala sobre o sentimento de precisar constantemente fazer brancos não se sentirem em perigo.
Mas a banda ainda apostava tudo em “Cult of Personality”, mesmo com a gravadora lançando “Middle Man” como o primeiro single de “Vivid”.
O clipe e o legado
Com “Middle Man” decepcionando enquanto single, a gravadora parecia ter medo da mensagem política de “Cult of Personality”. Lançaram de maneira discreta, empurrando-a em programas de rádio noturnos. Um alvoroço foi se criando, o que culminou no lançamento do clipe.
Dirigido por Drew Carolan, o clipe de “Cult of Personality” mostra o grupo tocando ao vivo num galpão, com imagens de discursos famosos entrando e saindo do quadro. Em meio a isso, a figura que mais chama atenção é a de Corey Glover, usando uma roupa de mergulho de neoprene. Ele havia começado a usar esses trajes ao vivo depois de encontrar uma com sua então namorada, uma figurinista.
Ao site americano The Ringer, ele falou sobre a esse figurino:
“Eu não tinha pensado muito sobre isso até perceber que parecia uma roupa de super-herói.”
O clipe se tornou um clássico da MTV, e ganhou três prêmios no Video Music Awards (VMA). A música também venceu o Grammy de Melhor Performance de Hard Rock em 1990 – justo no primeiro ano da categoria. O disco “Vivid” atingiu o 6º lugar nas paradas da Billboard e foi certificado duplo-platina nos Estados Unidos.
Em anos subsequentes, o grupo teve dificuldades de replicar o sucesso estrondoso da estreia. Ainda assim, a influência que tiveram sobre a cena alternativa que veio após eles foi marcada por “Vivid” e o impacto do disco sobre a cultura em geral.
O baixista Muzz Skillings explicou à Billboard o que acha sobre o legado do álbum:
“Sinto que o que ‘Vivid’ foi capaz de transmitir foi como demos às pessoas acesso ao poder que existia dentro delas mesmas. Isso é mais poderoso que tudo acontecendo à nossa volta… Muitas pessoas me falam que, quando escutam ‘Cult of Personality’, sentem-se motivadas a agir, até hoje.”
Living Colour – “Vivid”
- Lançado em 3 de maio de 1988, pela Epic Records
- Produzido por Ed Stasium e Mick Jagger
Faixas:
- Cult of Personality
- I Want to Know
- Middle Man
- Desperate People
- Open Letter (To a Landlord)
- Funny Vibe
- Memories Can’t Wait (cover de Talking Heads)
- Broken Hearts
- Glamour Boys
- What’s Your Favorite Color? (Theme Song)
- Which Way to America?
Músicos:
Corey Glover (vocal)
Vernon Reid (guitarra)
Muzz Skillings (baixo)
Will Calhoun (bateria)
Músicos adicionais:
Mick Jagger (gaita na faixa 8, backing vocals na faixa 9)
Chuck D (rap na faixa 6)
Flavor Flav (comentário social na faixa 6)
The Fowler Family (backing vocals nas faixas 2 e 5)
Dennis Diamond (voz adicional na faixa 8)
* Texto por Pedro Hollanda, com pauta e edição por Igor Miranda.
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