Como “Sin After Sin” representou um recomeço para o Judas Priest

Com Roger Glover (Deep Purple) na produção, primeiro álbum por uma grande gravadora introduziu o grupo nas paradas de sucessos de seu país

Lançado em 8 de abril de 1977, “Sin After Sin” está longe de ser um dos títulos mais festejados do extenso catálogo do Judas Priest. Mas o álbum foi, sob muitas óticas, um recomeço para a banda.

Em seu terceiro disco de estúdio, o grupo britânico apresenta sua primeira música a entrar nas paradas britânicas e as primeiras letras nas quais o vocalista Rob Halford expõe sua homossexualidade. Foi, ainda, a primeira vez da banda sob a tutela de um produtor renomado, cujas sugestões provaram-se valiosas ante o implacável teste do tempo.

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Judas Priest muda de casa

Mesmo com dois álbuns lançados mundo afora e um deles, “Sad Wings of Destiny” (1976), chegando às paradas em diversos países, o Judas Priest continuava na penúria. Apesar das vendas e dos elogios, dinheiro, que era bom, a banda não tinha.

Na autobiografia “Heavy Duty: Minha Vida no Judas Priest” (Estética Torta, 2021), o guitarrista K.K. Downing conta que ele, Halford, Glenn Tipton (guitarra), Ian Hill (baixo) e Alan Moore (bateria) não pensaram duas vezes quando a Sony/CBS lhes fez uma proposta para deixar a Gull Records.

“Meu meio de transporte ainda era uma bicicleta. Oportunidades para sair em turnê chegavam diariamente, mas se quase não tínhamos dinheiro para a gasolina, tampouco teríamos para o básico de um show ou para pagar os roadies.”

Ao assinar com a Sony/CBS, o Judas Priest foi de um adiantamento de 2 mil libras para um de 60 mil pelo seu primeiro álbum com a nova gravadora.

Mas nem tudo são flores: por ter efetivamente abandonado o seu contrato vigente, todos os direitos autorais de “Rocka Rolla” (1974) e “Sad Wings” foram revertidos para a Gull. Downing avalia:

“O triste é que, até hoje, nenhum de nós jamais recebeu um único centavo por esses dois álbuns. Muitos relançamentos ocorreram em vários países ao longo dos anos, e vê-los costumava me irritar porque eu sabia que alguém estava ganhando dinheiro às nossas custas. Enfim, é necessário sempre pesar os prós e os contras antes de tomar uma decisão. Sair da Gull era definitivamente a coisa certa a fazer pelo Judas Priest naquela época.”

Um famoso na produção

Foi ideia da Sony/CBS trazer Roger Glover para produzir o primeiro lançamento do Judas Priest pela gravadora.

Após sua saída do Deep Purple em 1973, o baixista se aventurou em uma carreira solo que também lhe possibilitou entrar de cabeça na produção de discos. Quando foi sugerido pela então nova gravadora do Priest, Glover já tinha três álbuns do Nazareth em seu currículo – “Razamanaz”, “Loud ‘N’ Proud” (ambos de 1973) e “Rampant” (1974) – e acabara de produzir “Calling Card” (1976), do lendário guitarrista Rory Gallagher (1948-1995).

Depois de um começo nada promissor – que incluiu Roger, cansado de ter suas sugestões negadas pelo Judas, abandonando o barco por duas semanas –, as partes chegaram a um consenso para fazer a coisa funcionar. À Guitar World, Glover contou:

“A gravadora deles queria um produtor de renome, mas quando fui aos ensaios, senti que não era desejado ali. A banda disse que queria produzir o álbum por conta própria. Então fui embora.”

Em “Heavy Duty”, K.K. confirma:

“Como Rob, Glenn e eu estávamos nos aprimorando como compositores, tenho certeza de que achamos na época que a presença do Roger não era necessária. Nós ainda éramos bastante ingênuos então. No entanto, Roger era um cara muito gente boa, ótimo para trabalhar junto.”

Roger Glover volta e mostra a que veio

Embora nenhum dos integrantes do Judas Priest tivesse a menor ideia de quais eram as credenciais de Roger Glover como produtor, todos ficaram “de boa” quando ele, ao voltar, deixou evidente que vestia a camisa da banda. À Guitar World, o baixista revelou:

“Glenn me disse que não eles estavam felizes com as faixas que gravaram e acabaram dispensando o baterista. Chamaram, então, um baterista de estúdio, Simon Phillips, que era meu amigo. Ouvi as músicas [que haviam gravado] e sugeri que começassem do zero. Daí, gravamos [a bateria] em seis dias.”

Com 19 anos na época, Phillips era um sujeito cujos diferenciais – ser versado em jazz e outros estilos musicais fora do rock – lhe renderam um convite para juntar-se ao grupo em tempo integral; convite esse que ele, educadamente, recusou.

Resolvida a questão da bateria, o restante fluiu bonito e intenso no decorrer de um mês e meio no Ramport, mais conhecido como o estúdio do The Who, em Londres.

O milagre de “Sin After Sin” veio do cover

Partiu de Roger Glover a ideia de regravar “Diamonds and Rust”, da cantora folk Joan Baez. O cover não só se tornou um destaque no repertório ao vivo do Judas Priest como também serviu de passaporte para o disco, batizado de “Sin After Sin”, entrar nas paradas britânicas; um feito inédito para a banda até então.

Embora inicialmente relutante, os números logo convenceram K.K. de que o cover foi uma baita ideia.

“Roger sugeriu que gravássemos ‘Diamonds and Rust’ com a desculpa de que fazer um cover de uma música conhecida seria um empurrãozinho comercial para o nosso disco. Naquela época, as gravadoras tentavam emplacar artistas nas rádios. As rádios, por sua vez, eram mais propensas a tocar uma música já conhecida interpretada por uma banda nova do que uma música autoral de uma banda desconhecida. Inicialmente, pensei: ‘Não, sem essa, nada a ver’. Contudo, depois de um pouco de experimentação, descobrimos que, se imprimíssemos a marca do Judas Priest numa música – seja lá qual fosse –, ela se tornaria parte de nós. Inclusive, conheci muitas pessoas ao longo dos anos que achavam que ‘Diamonds and Rust’ era do Judas Priest!”

Passadas mais de quatro décadas, “Diamonds and Rust” continua sendo um dos pontos altos dos shows do grupo.

Manifestos gay e antiguerra

“A verdadeira liberdade de expressão que eu exijo são os direitos humanos”, canta Rob Halford em “Raw Deal”, dando uma pista a respeito de sua homossexualidade. “O segredo mais mal guardado do rock”, segundo K.K. Downing, só viria à tona em 1998, mas mesmo nos anos 1970 os sinais estavam lá para quem quisesse ou tivesse a sensibilidade de ver.

Em sua autobiografia “Confesso”, o vocalista admite que “Raw Deal” é, sem sombra de dúvida, a canção mais importante em “Sin After Sin”, de um ponto de vista pessoal:

“‘Raw Deal’ trata de perambular pelos bares gay de Fire Island, popular reduto homossexual na costa de Nova York. Era uma música de saída do armário, um respiro para minha angústia como gay não assumido.”

Halford pensou que as pessoas, ao pegarem a flagrante e óbvia letra, juntariam dois e dois. Porém, nada aconteceu.

“A banda não falou nada da letra e provavelmente achou que eu só estava contando uma história. Nem os críticos nem os fãs perceberam nada. Foi um uivo de cólera que ninguém ouviu.”

Já “Dissident Aggressor” é sobre o Muro de Berlim: “Grand Canyons espaço-temporais, minha mente está sujeita a tudo”, diz a letra, uma fria análise das diferenças entre o Ocidente e o Oriente no auge da Guerra Fria. É uma das favoritas de Downing:

“Ótimo riff, um vocal fantástico do Rob. Eu adorava tocar o solo. Nunca poderíamos imaginar que a música seria indicada ao Grammy muitos anos depois, quando foi regravada pelo Slayer.”

“Sin After Sin”, das baladas às paradas

Em 8 de abril de 1977, “Sin After Sin” – cujo título, extraído de uma frase da letra de “Genocide”, pedrada lançada em “Sad Wings of Destiny”, visa dialogar com a faixa de abertura, “Sinner” – chegaria às lojas trazendo 40 minutos de heavy metal pontuados por duas baladas: “Last Rose of Summer” e “Here Come the Tears”. A primeira, K.K. Downing define como “fraqueza infiltrada”:

“Glenn e Rob estavam na onda do Queen; então Glenn teve a ideia de compor uma balada no piano. Claro, reconheço que muitas bandas parecidas com a gente seguiram um caminho semelhante. O Black Sabbath teve ‘Changes’, que achei ótima – muito melhor do que ‘Last Rose of Summer’, que, na minha opinião, é uma m#rda. Parece demais com o Queen.”

Já à segunda, Halford atribui o título de “grito de ajuda”:

“Glenn e eu compusemos essa música delicada e sofrida, e para mim foi catártico expor meu coração solitário ao tratar da minha vida comprometida. De novo, ninguém percebeu! Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Os críticos ficaram mais interessados no fato de termos incluído no álbum o cover de Joan Baez.”

A vigésima terceira posição no Reino Unido e um curioso 49º lugar na Suécia mostrou que o trabalho duro estava começando a valer a pena. Depois de algumas datas abrindo para o Status Quo em casa, o Judas Priest, agora com o batera Les Binks a bordo – outra ideia de Glover para a conta –, estava pronto para conquistar a América. Mas o ingresso nas paradas estadunidenses teria de aguardar até o próximo disco, “Stained Class”, em 1978.

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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