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Como o Secos & Molhados de Ney Matogrosso peitou a ditadura militar com classe

Com foco em poesias inteligentes e visual impactante, banda brasileira marcou o início da década de 1970

No início da década de 1970, o Brasil vivenciava o período mais repressivo da ditadura militar, sob o governo do general Emilio Garrastazu Médici. Ironicamente, também foi a época de uma das bandas mais transgressoras de nossa história: o Secos & Molhados, com a voz do lendário Ney Matogrosso.

O projeto foi idealizado pelo músico João Ricardo, em 1971, quando ainda era o responsável pelos vocais, além de violão e gaita. O percussionista Fred e o violonista Pitoco completavam a formação, mas eles logo saíram do grupo.

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Pouco tempo depois, o vocalista Ney Matogrosso e o também cantor e violonista Gérson Conrad são integrados à banda, que, enfim, ganhou corpo. As influências iam desde o rock progressivo até o recente movimento do tropicalismo, passando também por outras artes, como a literatura, especialmente a poesia.

Porém, o que chamava a atenção mesmo era o visual, com maquiagens que renderam comparações até com artistas como Alice Cooper e Kiss. O próprio Ney Matogrosso sustenta a hipótese de que a famosa banda americana teria copiado o grupo brasileiro, o que não é verdade.

Fato é que o visual era impactante. João Ricardo, em entrevista, relembra:

“Na época, já havia um sentimento diferente. Havia o New York Dolls, o David Bowie, o Alice Cooper Mas a nossa necessidade de pintar os rostos não era só estética, era essencial. Era o momento do rock progressivo, e nós fazíamos canções. Nosso cantor tinha a voz fina. Vimos a necessidade de nos apresentarmos de maneira diferente, não éramos uma banda no sentido convencional.”

Ditadura: Médici, AI-5 e censura

A época no Brasil não era das mais receptivas a um grupo de artistas tão visual e musicalmente chocantes.

O país vivenciou um golpe de estado em 1964, que instaurou a ditadura militar. Em 1967, a Constituição foi alterada, o que criou um cenário para a implementação do tenebroso Ato Institucional número 5 (AI-5), que implementava a censura às artes e à imprensa, entre outros pontos.

Junto com exílios e casos de desaparecimento e tortura comandados pelo governo brasileiro da época, o país também começou a viver o auge de suas canções de protesto, tendo os artistas da MPB como linha de frente. Foi nessa época que Caetano Veloso, Chico Buarque e tantos outros começaram a encontrar formas de tentar driblar a censura, com muitos êxitos no caminho.

Tanto os meios de comunicação quanto os artistas da música, teatro e outros segmentos foram encontrando formas de fugir da censura. Os motivos para uma obra ter sua circulação proibida nunca eram devidamente esclarecidos, mas os censores não eram exatamente rigorosos (ou inteligentes) o bastante para entender críticas veladas feitas ao próprio sistema.

Todo esse cenário permitiu o surgimento do Secos & Molhados. O timing era ideal para uma banda desse tipo.

As letras de Secos & Molhados

Lançado em agosto de 1973, o primeiro álbum do Secos & Molhados, também intitulado “Secos & Molhados“, já chama atenção logo pela capa. As quatro cabeças com rostos maquiados dos quatro músicos que integravam a banda na época – Ney, João, Gerson e o baterista Marcelo Frias – aparecem expostas em bandejas ao lado de alimentos em uma farta mesa, em um grande banquete antropofágico.

Todos os produtos ali exibidos eram vendidos nos antigos “armazéns de secos e molhados”, de onde o nome do grupo foi tirado.

As músicas em si são, basicamente, poemas musicados. Alguns dos versos eram de autores famosos, enquanto outros eram originais. Havia, ainda, material escrito pelo jornalista e poeta João Apolinário, pai de João Ricardo, que topou ceder alguns de seus textos para o grupo.

Entre as letras baseadas em poemas de Apolinário, temos “Amor” e “Primavera nos Dentes”, a segunda com uma letra um pouco mais dura em comparação à primeira. Mas as críticas podem ser encontradas por todo o disco, de forma mais ou menos sutil, dependendo do tema escolhido.

“Rosa de Hiroshima”, poema de Vinicius de Moraes, critica a guerra atômica e os efeitos das bombas lançadas no Japão durante a Segunda Guerra Mundial de forma entristecida. “Mulher Barriguda”, por sua vez, também fala de guerra, mas em tom mais provocativo.

“Sangue Latino”, uma das mais emblemáticas do disco, é um raro grito de orgulho sul-americano. Outros países do continente viviam sob ditaduras, o que motivou uma espécie de reação empoderada contra a opressão.

Já “O Vira” usa do folclore e do ritmo português para uma divertida citação à diversidade sexual. Foi um dos grandes hits do álbum, junto de “Sangue Latino”.

Merecem destaque ainda “Patrão Nosso de Cada Dia” e sua reclamação mais (ou menos) escondida sobre a rotina do trabalhador, e a violência policial escancarada de “Assim Assado”, com seu instrumental pesado, para os padrões do grupo.

O impacto de Ney Matogrosso, João Ricardo e cia.

As figuras dos músicos do Secos & Molhados eram provocantes não só visualmente – o som do grupo também se encaixava no que os militares classificariam como “subversivo”. Porém, se os censores chegaram a pensar em algum momento na possibilidade de tomar alguma providência, certamente, era tarde demais.

O impacto do disco de estreia da banda foi gigantesco, rendendo à banda diversas aparições em programas de TV e rádio e grandes shows para arenas lotadas. Tornou-se até mesmo um fenômeno infantil, devido ao visual quase de super-herói dos integrantes e das canções com referências lúdicas e imaginativas.

O sucesso foi tamanho que, em apenas uma semana, o álbum “Secos & Molhados” vendeu todas as 1,5 mil cópias que a gravadora havia encomendado. Isso gerou uma situação peculiar: na época, havia uma escassez de vinil no mercado, então, álbuns encalhados de outros artistas tiveram de ser derretidos para a produção de novos LPs.

Foram 300 mil cópias vendidas em três meses e um milhão no período de um ano, no embalo de uma aparição regular na vinheta de abertura do “Fantástico”, programa da TV Globo que acabava de estrear.

Com a mesma formação, o grupo gravaria um segundo álbum, também intitulado “Secos & Molhados” e também elogiado, mas sem o impacto do primeiro. A formação rachou depois que, segundo Ney Matogrosso, João Ricardo tomou a liderança do grupo após fazer seu pai tornar-se empresário do grupo.

“João Ricardo nos pressionou para que aceitássemos seu pai como nosso empresário. Mil promessas foram feitas e, no final, quando entramos em nosso escritório, fomos tratados como simples empregados e não como donos do negócio.”

Logo, Ney seguiria em carreira solo e os músicos remanescentes não conseguiriam ter a mesma relevância. Ainda assim, mesmo passados tantos anos, o nome Secos & Molhados segue como sinônimo de inovação e resistência na música brasileira.

* Texto desenvolvido em parceria por André Luiz Fernandes e Igor Miranda. Pauta, argumentação base e edição geral por Igor Miranda; redação, argumentação complementar e apuração adicional por André Luiz Fernandes.

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André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes é jornalista formado pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Interessado em música desde a infância, teve um blog sobre discos de hard rock/metal antes da graduação e é considerado o melhor baixista do prédio onde mora. Tem passagens por Ei Nerd e Estadão.

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