“Ninguém pode fazer tudo, mas todos podem fazer a sua parte”, cravou Gil Scott-Heron (1949-2011), um dos muitos ancestrais espirituais que o Planet Hemp evocou em sua despedida dos palcos, no último sábado (13), na Fundição Progresso, no Rio de Janeiro. É dele o manifesto em forma de spoken word “The Revolution Will Not Be Televised”, no qual critica a mídia, o consumismo e a passividade política. Scott-Heron sustenta que a verdadeira transformação social não será mediada pela televisão, mas nascerá nas ruas, na consciência e na ação direta das pessoas.
Mesmo partindo de contextos históricos, culturais e musicais distintos, os paralelos são sólidos e férteis. Se Gil encarna a consciência política do soul e do jazz falado, o Planet Hemp pode ser visto como sua reencarnação tropical e urbana no rap-rock brasileiro. Cada qual à sua maneira entende a música como arquivo histórico, arma retórica e catalisador social; ambos deslocam o debate do indivíduo para o sistema, falando com o povo — e não sobre o povo.

Entre censuras, polêmicas e confrontos diretos com o conservadorismo da época — incluindo a prisão de integrantes da banda em 1997 —, o Planet Hemp sobreviveu, escolheu a hora certa de guardar o isqueiro e transformou a turnê apropriadamente batizada de “A Última Ponta” em uma saideira à altura de um grupo que merece um capítulo próprio na história da música brasileira: uma banda que misturou gêneros, colocou em pauta a legalização da maconha — e pagou o preço por isso.

Encerrar essa trajetória na Fundição Progresso tem peso simbólico adicional. Espaço emblemático da cena alternativa carioca, o antigo complexo industrial convertido em polo cultural tornou-se sinônimo de resistência, liberdade artística e memória viva de gerações formadas à margem do mainstream. Voltar ao Rio para o último ato é retornar ao ponto de origem, fechando um ciclo iniciado ali perto, no Garage — berço do underground carioca —, no começo dos anos 1990.

Em relação ao show realizado para um Allianz Parque lotado, em São Paulo, em 15 de novembro, o repertório carioca foi mais enxuto. A cota de covers ficou restrita à essencial “Samba Makossa”, de Chico Science & Nação Zumbi, e as participações especiais seguiram um roteiro mais contido — coerente com a circunstância. Nada de Seu Jorge, Pitty ou João Gordo. No Rio, juntaram-se a Marcelo D2 (vocal), BNegão (vocal), Formigão (baixo), Nobru (guitarra), Pedro Garcia (bateria) e Daniel Ganjaman (guitarra e teclados) o baterista original Bacalhau, em “Legalize Já”, e Black Alien, “diretamente de Niterói”, que entrou em “Queimando Tudo” e permaneceu no palco até o fim do show, somando vocais aqui e ali.

Ao fundo do palco, um telão em formato de livro aberto exibia imagens dos 32 anos de trajetória do Planet Hemp, com dedicatória especial ao cofundador Skunk, morto em 1994, vítima de aids. Na lasciva e lisérgica “Phunky Buddah”, seu vocal surge em playback. Já em “Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga”, tem-se a síntese perfeita do caldeirão estilístico da banda — não apenas no título, mas na comunhão instaurada nos mosh pits que, vistos de cima, lembravam formigas em correição. O ritual se repetiu nas faixas mais pesadas, com BNegão pedindo ao público “a maior roda da noite” em “100% Hardcore”. Houve até sinalizador aceso no meio da multidão.

Uma bandeira palestina foi hasteada. Levada ao palco, acabou erguida por BNegão, que gritou “Palestina livre!” e atacou sionistas em termos nada lisonjeiros. Outros alvos da artilharia verbal do cantor incluíram o governador do Estado do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (“Vai tomar no c#!”); o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores (“fascistinhas de m#rda”); além de conservadores em geral, em meio a vivas à Marcha da Maconha, à Marcha das Favelas e a coletivos independentes em defesa da liberdade de expressão.

Ciente da polêmica em torno do valor dos ingressos — que, embora considerados altos, esgotaram em todos os setores da Fundição, apelidada “F#de Som” em razão de problemas de áudio que, de tão recorrentes, chegam a ser crônicos —, Marcelo D2 não economizou nos agradecimentos: “A gente sabe que não estava barato, então muito obrigado a todos que deram um jeito de estar aqui”. Visivelmente o mais emocionado, não chegou às lágrimas, mas suas palavras finais, após quase duas horas de música como ato político e autorreferência anárquica, ecoaram fortes entre os que sentirão falta dos autoproclamados “maconheiros mais famosos do Brasil”: “Avisa lá que agora o Planet Hemp é lenda! Saci-Pererê, Curupira e, agora, Planet Hemp, p#rra!”.

Ninguém pode fazer tudo — mas, em 32 anos, o Planet Hemp certamente fez a sua parte.

Planet Hemp — ao vivo no Rio de Janeiro
- Local: Fundição Progresso
- Data: 13 de dezembro de 2025
- Turnê: A Última Ponta
- Produção: 30e
Repertório:
Repertório:
- Dig Dig Dig (Hempa)
- Ex-quadrilha da fumaça / Fazendo a cabeça
- Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga
- Distopia
- Taca fogo
- Mary Jane / Phunky Buddha
- Planet Hemp
- Legalize já
- Não compre, plante!
- Jardineiro
- Queimando tudo
- Onda forte
- Nunca tenha medo
- Biruta
- Cadê o isqueiro? / Quem tem seda? / Pilotando o bonde da excursão
- Puxa fumo
- Adoled (The Ocean)
- Salve, Kalunga
- Gorilla Grip
- O bicho tá pegando
- Mão na cabeça
- Não vamos desistir
- Stab
- Procedência C.D.
- 100% Hardcore / Deixa a gira girá
- Zerovinteum
- Hip Hop Rio
- Samba makossa / Monólogo ao pé do ouvido (cover de Chico Science & Nação Zumbi)
- A culpa é de quem?
- Contexto
Bis: - Deisdazseis
- Mantenha o respeito

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