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Da festa ao protesto: o adeus do Refused a São Paulo

Em seu primeiro — e último — show no Brasil, banda sueca ícone do hardcore ofereceu, em som e mensagem, tudo aquilo que a notabilizou

A morte do punk é decretada praticamente desde que o gênero foi inventado — e muito disso ocorre meramente por seus desdobramentos e metamorfoses naturais ao longo das décadas. Uma das bandas que melhor representa esta quebra de barreiras é o Refused, que realizou na sexta-feira (31), no Terra SP, em São Paulo, sua primeira — e última — apresentação da carreira no Brasil.

Formado em Umeå, Suécia, no começo da década de 1990, o grupo logo se revelou um dos destaques da cena local. O álbum de estreia, “This Just Might Be… The Truth” (1994), trouxe um hardcore enérgico e direto, mas a consolidação definitiva veio com o terceiro disco, o influente “The Shape of Punk to Come” (1998). Curiosamente, o reconhecimento não foi imediato. Na época, a mistura da sua sonoridade típica com elementos que iam do jazz ao eletrônico não foi bem vista por crítica e público.

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A decepção geral foi tamanha que o fim do grupo foi decretado logo após uma breve turnê divulgando o álbum de 1998. De certa forma, eles mesmos haviam previsto esse fim com a música “Refused are F**king Dead”. E como tantos outros artistas, o grupo só teve seu devido reconhecimento após a “morte”, ao ser louvado por sua abordagem experimental que moldou caminhos para o post-hardcore e influenciou posicionamentos anticonformistas, com críticas ao capitalismo, fascismo e indústria musical.

Foto: Gustavo Diakov @xchicanox

O retorno às atividades veio em 2012. Trouxeram mais dois álbuns de estúdio, “Freedom” (2015) e “War Music” (2019), e puderam gozar de um impacto para além da música pesada —fizeram, sob o nome Samurai, a trilha sonora do game “Cyberpunk 2077” e tiveram a canção “New Noise” no bem-sucedido seriado “The Bear”.

Mas o fim definitivo foi decretado. Com um nome bem claro — “Refused are F**king Dead — And This Time They Mean It” (“O Refused está morto pra car#lho — e desta vez eles falam sério”) —, a turnê de despedida traria o grupo à América do Sul pela primeira e última vez.

Eu Serei a Hiena

A abertura ficou a cargo do Eu Serei a Hiena, grupo cult da cena underground paulistana formado por figurinhas carimbadas do hardcore nacional: Juninho Sangiorgio (Ratos de Porão) e Fausto Oi (Zander) nas guitarras, Wash de Souza no baixo e Nino Tenório na bateria. Originalmente, esteve ativo de modo majoritário nos anos 2000, mas se reuniu neste ano.

Foto: Gustavo Diakov @xchicanox

O som une a energia e força do punk com instrumentais limpos, que beiram o post-rock. Vão dos acordes limpos e percussão simples ao frenesi de skank beats e pulos altos de Juninho — que utilizava uma camiseta com os escritos “Stop Netanyahu”. Combinou com a ocasião, tendo em vista a abordagem experimental e ao mesmo tempo enérgica de ambas as atrações, e engajou a plateia.

Foto: Gustavo Diakov @xchicanox

Repertório – Eu Serei a Hiena:

  1. Descompressão
  2. Do the Free the Borders
  3. Na Expectativa
  4. Doppelgänger
  5. Chotto Machigatte Iru
  6. Jovem Sônico
  7. Talking and Thinking About the Weather
  8. Sob Influência do Teste Voight-Kampff
  9. Nheengatù
  10. Asterix
  11. Sonâmbulo

Refused

Com o palco da banda de abertura já desmontado, uma mensagem simples foi exibida no telão: “this is what our ruling class has decided will be normal” (“é isso que a classe dominante decidiu que será normal”). Enquanto “Bulls on Parade” (Rage Against the Machine) ainda soava pelo sistema de PA via discotecagem, vieram correndo ao palco Dennis Lyxzén (voz), David Sandström (bateria), Magnus Flagge (baixo) e Mattias Bärjed (guitarra). Não rolou nem um “boa noite” sequer antes de abrirem os serviços com “Poetry Written in Gasoline”.

A presença elétrica e ao mesmo classuda de Lyxzén tomou o palco. Legítimo showman, ele pulava, girava, se contorcia, jogava o pedestal para o alto e pegava, atirava o microfone até o outro lado e trazia de volta como o Homem-Aranha… estava entregue, assim como o público, que fez rodas, se divertiu com crowdsurfing, atirou cerveja para o alto e por aí vai. Era impossível ficar parado.

“The Shape of Punk to Come”, na sequência, começa com uma batida envolvente que vai quase para o disco music. “The Refused Party Program”, por sua vez, soa como um hino e teve os fãs repetindo seu título a plenos pulmões. Foi apenas depois dela que vieram os primeiros segundos de respiro do show, enquanto Dennis tirava seu blazer, mas não demorou para que a positiva “Rather Be Dead” retomasse a bagunça.

Foto: Gustavo Diakov @xchicanox

Antecedendo “Malfire” — faixa sobre “uma guerra diferente quando os lobos estão à porta” —, o frontman engajou-se no seguinte discurso:

“Se você é forte, é para ajudar quem não é. Se você tem uma voz, use para falar pelos que não tem. Quero viver em um mundo onde se você cair, te levanto, e vice-versa. O nosso mundo está todo f#dido, e às vezes nos sentimos sozinhos. A política é algo insano. Mas olhe ao seu redor: não estamos sozinhos. Querem que a gente lute um contra o outro nessa guerra cultural para que não vejamos o tanto de dinheiro que nos tiram e nos esqueçamos da guerra de classes. Se você acha que o problema seja os imigrantes, ou a comunidade LGBT+, talvez você seja a p#rra do problema.”

Foto: Gustavo Diakov @xchicanox

Três pedradas de “The Shape of Punk to Come” — “Liberation Frequency”, com início quase reggae; “Summerholidays vs. Punkroutine”, entoada fortemente pelos fãs; e “The Deadly Rhythm”, com direito a palinha de “Raining Blood” (Slayer) — vieram antes de uma canção introduzida com parte de “um daqueles discos que vocês não gostam”. Era “Circle Pit”, cujo título adianta o que seria aberto na pista. Dennis passou esta canção e a seguinte (“Burn It”) fazendo two-step no palco.

“Economy of Death”, do álbum mais recente, “War Music” (2019), foi tão bem recebida quanto as clássicas. E quem poderia esperar tristeza em “Refused are F**king Dead” caiu do cavalo: o clima era de uma festa, que logo entraria em erupção no simples anúncio da seguinte, “Worms of the Senses/Faculties of the Skull”. Em outro diálogo com o público, Lyxzén pontua:

“Democracia americana? Não, não, não. Pela Europa toda, vemos o crescimento do fascismo. Todos temos presenciado um genocídio acontecendo em nossas telas apontando para a bandeira da Palestina do lado direito do palco]. Se você não fala nada a respeito disso, é cúmplice.”

Foto: Gustavo Diakov @xchicanox

Ao som de gritos de “free, free Palestine”, passaram para “Elektra”. Ao fim, o telão trouxe o mesmo recado, agora em caixa alta: “FREE PALESTINE”, prenunciando o riff de entrada de “New Noise”. Dennis, até então sentado na bateria, se levantou e foi para o fundo do palco. Todos sabiam o que teríamos: um ensurdecedor o grito de “can I scream?”. Nem o cantor se segurou e subiu em cima da grade para o último refrão junto da galera.

Quando voltou ao palco, Dennis ficou um tempo deitado no chão enquanto os instrumentos começavam “Tannhäuser/Derivè”. Com o microfone entre os dentes, começou a engatinhar pelo palco. Performance visceral com intenção por trás de cada grito. Um final cinematográfico, com Lyxzén e David Sandström, também membro fundador, pulando sincronizadamente.

Menos de dois minutos após o fim, retornaram para um bis. Dava para ser mais catártico? “Pump the Brakes”, com linha de baixo agressiva e timbragem quase Sludge, encerrou a noite junto de uma música mais recente: a áspera e crítica “REV001”, com um chamado para a revolução travestido de arena rock grandioso.

Quem viu, viu. Quem não viu, não vê mais. Aproximadamente 3 mil pessoas testemunharam um “adeus” e certamente ficaram com a sensação estranha de que não terão mais aquela experiência. Difícil cravar agora como um evento histórico, mas foi, de modo inegável, único.

Foto: Gustavo Diakov @xchicanox

Refused — ao vivo em São Paulo

  • Local: Terra SP
  • Data: 31 de outubro de 2025
  • Turnê: Refuse Are F**king Dead — And This Time They Really Mean It
  • Produção: Balaclava / Powerline

Repertório:

  1. Poetry Written in Gasoline
  2. The Shape of Punk to Come
  3. The Refused Party Program
  4. Rather Be Dead
  5. Malfire
  6. Liberation Frequency
  7. Summerholidays vs. Punkroutine
  8. The Deadly Rhythm
  9. Circle Pit
  10. Burn It
  11. Economy of Death
  12. Refused Are Fucking Dead
  13. Worms of the Senses/Faculties of the Skull
  14. Elektra
  15. New Noise
  16. Tannhäuser/Derivè

Bis:

  1. Pump the Brakes
  2. REV001
Foto: Gustavo Diakov @xchicanox

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