Na noite do último sábado (2), o palco do Sacadura 154, no Rio de Janeiro, recebeu uma verdadeira celebração ao white metal, subgênero que alia o peso do metal a mensagens cristãs. Em uma rara combinação de três nomes fundamentais do estilo — Stryper, Narnia e Bride —, o evento não só prestou tributo à fé como reafirmou a vitalidade artística de bandas que há décadas resistem à margem do mainstream.
Com formações que incluem veteranos na cena e repertórios que equivalem a recortes históricos do estilo, os três grupos mostraram que continuam a carregar com orgulho a cruz do metal cristão — AMÉM!

Veja como foi:
Bride
A estreia do Bride nos palcos brasileiros aconteceu no hoje mítico festival SOS da Vida Gospel, realizado nos dias 17 e 18 de setembro de 1993, no estádio do Pacaembu, em São Paulo. Muito antes de a bancada evangélica no Congresso turvar as noções de Estado laico, o evento entrou para a história ao antecipar o crescimento das religiões pentecostais no Brasil — especialmente entre os jovens, impulsionado em boa parte pela qualidade da música que emergia das igrejas.
A banda liderada pelos irmãos Dale (vocal) e Troy Thompson (guitarra) levaria longos 13 anos para retornar ao país, em condições mais modestas, com novas passagens por aqui em 2013 e, acredite, 2024. Sim, desta vez mal houve tempo de bater saudade. Mas não — ninguém reclamou de ver o quarteto novamente em menos de um ano.

Isso porque o Bride trouxe na bagagem um novo capítulo discográfico: o álbum “Vipers and Shadows”, lançado em maio último. A única representante do disco no setlist, a faixa “Million Miles”, entrega um inegável tempero hard rock setentista e levou uma galera a adquirir o CD na barraca de merchandise da banda pela bagatela de R$ 100.
A recepção do público — majoritariamente formado por homens acima dos 40 anos — foi surpreendente. A familiaridade com a nova canção fez parecer que se tratava de um clássico antigo. Ainda assim, nenhuma música gerou reação mais insana do que “Would You Die for Me”, com Dale, microcâmera em mãos registrando tudo, já reivindicando o título de vocalista com maior alcance da noite.

E se isso parecia o ápice, o que dizer de “Psychedelic Super Jesus” — com seu refrão grudento puxado em chamada e resposta —, ambas oriundas de “Snakes in the Playground” (1992), ainda hoje o melhor e, feliz (e convenientemente), o lançamento mais conhecido da carreira da banda.
O repertório enxuto, de apenas oito músicas, chegou ao fim com “Heroes”, que não era tocada ao vivo desde 1989. Resgatada dos anéis do esquecimento com uma nova roupagem mais hard rock pensada especialmente para esta turnê, a música foi acompanhada por palmas e coros de “ooohs”, como o verdadeiro hino gospel que é.

Setlist Bride:
1.Rattlesnake
2.Would You Die for Me
3.Beast
4.Million Miles
5.Everybody Knows My Name
6.Scarecrow
7.Psychedelic Super Jesus
8.Heroes
Narnia
“A maioria das bandas usa”, respondeu Christian Liljegren quando perguntado por este jornalista sobre o uso de bases pré-gravadas — leia-se, playback — nos shows realizados pelo Narnia no Brasil em 2019. “No nosso caso, é para que possamos recriar com o máximo de fidelidade possível o que apresentamos nos álbuns.” Colou? Bem, nem aí e tampouco aqui.
Mas o fato é que a má impressão ficou para trás quatro anos depois, quando os suecos dividiram o palco com Rob Rock. Em um ambiente muito mais intimista, e sob o crivo de uma lenda viva do metal cristão, Christian fez pleno uso da voz privilegiada — que, segundo ele, é instrumento para espalhar a Palavra de Deus.

De todos os frontmen da noite, o careca foi, sem dúvida, o mais verborrágico, emocionado e, quiçá, o mais “cristão raiz” de todos. Vestindo a camisa da seleção brasileira — manto que, nos últimos anos, se tornou símbolo de identificação política entre grupos conservadores —, ele foi o responsável por conduzir a apresentação praticamente sozinho. Movia-se como podia no espaço apertado do palco do Sacadura 154, entre pedestais, monitores e seus colegas de banda que, embora simpáticos e sorridentes (algo nem sempre típico dos nórdicos), mantiveram-se mais contidos, cada um no seu quadrado.
Mas o que tem de estático, o guitarrista CJ Grimmarck tem de espetacular. Versado na abordagem neoclássica à la Yngwie Malmsteen e nas estruturas familiares — porém eficazes — do power metal, ele se destacou como o músico mais técnico da noite.

A grande novidade no repertório foi a execução de “Ocean Wide”, faixa do ainda inédito décimo álbum da banda, prometido por Christian para 2026. A partir daí, a sequência final teve ares de verdadeiro culto: sim, houve um momento-pregação, com direito a lágrimas do vocalista, seguido pelo clima de arrebatamento de “Long Live the King” (com os refrães adaptados para “Vida Longa ao Rei”) e, por fim, pela tormenta quase ígnea provocada pela veloz “I Still Believe” — encerramento catártico, suado e tão poderoso em sua intensidade metaleira que por instantes se sobrepôs à profecia de fé da letra.

“E dessa vez também não teve playback”, acrescentou um amigo. No placar, 2 a 1 para a música ao vivo MESMO.

Setlist Narnia:
1.Rebel
2.No More Shadows from the Past
3.You Are the Air That I Breathe
4.MNFST
5.Ocean Wide
6.Long Live the King
7.I Still Believe
8.Living Water
Stryper
A semana não começou nada bem para Michael (vocais e guitarra) e Robert Sweet (bateria). Já em solo brasileiro, os irmãos receberam a notícia do falecimento do pai, nos Estados Unidos. A perda, no entanto, não alterou os planos: a turnê seguiu por mais três capitais até o compromisso final, sábado (2), no Rio de Janeiro.
A atual série de shows celebra os 40 anos de carreira da banda que foi uma das precursoras do chamado white metal, mas que viveu seu auge justamente quando se misturava ao universo dos grandes nomes do hard rock dos anos 1980. Convergindo em som e visual com os ícones da época, o Stryper nadava contra a corrente ao priorizar, nas letras, uma agenda de redenção dos pecados — em vez de incentivá-los, como era comum no hedonismo típico do gênero.

E embora a trajetória tenha tido seus percalços etílicos, o que se viu ontem foi a prova de que uma vida mais dedicada a Jesus Cristo do que ao Jack Daniel’s fez particularmente bem a Michael, que ainda ostenta uma voz poderosa e sabe ajustá-la à realidade dos 62 anos que, sinceramente, não aparenta ter.
Em tratamento contra o câncer, o guitarrista Oz Fox foi impedido pelos médicos de viajar. Coube a Howie Simon substituí-lo — de forma competente, ainda que sem brilho. Com passagens por Alcatrazz e Jeff Scott Soto, entre outros, Simon integrou um show ensaiado nos mínimos detalhes — como atestam as dobras de guitarra entre ele e Michael em “Soldiers Under Command”. Ainda assim, o timbre inconfundível de Fox, seus backing vocals e, claro, sua presença de palco fazem muita falta.

Por outro lado, Perry Richardson (ex-Firehouse) já está tão bem integrado que se torna difícil esperar por um retorno — hoje pouco provável — do baixista original Tim Gaines, que há tempos segue por outros caminhos.

A bateria montada de lado continua sendo a marca registrada de Robert, apresentado pelo irmão como o “Visual Timekeeper”, alcunha também usada nos créditos dos discos da banda. E ele faz jus: toca muito, e com aparente facilidade, encarnando um personagem que contrasta fortemente com o sujeito discreto com quem este repórter trocou algumas palavras nos bastidores.

Seguindo o mote da turnê, o repertório alternou músicas dos áureos tempos com faixas lançadas nas últimas duas décadas — e, num feito raro, houve empolgação perceptível na resposta do público a todas elas. É claro que não dá para comparar os gritos e aplausos dados a “Yahweh” — já eleita por Michael como a melhor composição do Stryper — com a explosão de entusiasmo provocada pela dobradinha “Calling on You” e “Free”, como no clássico álbum “To Hell with the Devil” (1986). Tampouco se espera que “The Valley”, cujo refrão é uma adaptação literal do Salmo 23 (“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte…”) — ouça na voz de Cid Moreira —, ressoe tanto no peito da plateia quanto a radiofônica “Always There for You”.
Faltaram “Honestly”, balada obrigatória para os mais românticos, e, mais uma vez, “I Believe in You” — tema do personagem Sassá Mutema na novela “O Salvador da Pátria” (1989), da Rede Globo). Por outro lado, os fãs que defendem com razão o secularíssimo “Against the Law” (1990) como uma joia subestimada do catálogo tiveram o que comemorar, mesmo que a escolhida tenha sido a nada secular “All for One”.

Não foi desta vez que este jornalista conseguiu agarrar a Bíblia lançada por Michael ao público na metade da apresentação. E foi, no mínimo, curioso ver irmãos em Cristo literalmente se estapeando em disputas febris pelo souvenir. No bis, “Sing-Along Song” fez bater com mais força a saudade de Oz — foi mal, Howie, mas sua voz não dá conta do recado aqui.
O clima de encerramento foi em tom de festa, com integrantes do Bride e do Narnia subindo ao palco para o grand finale com “To Hell with the Devil”. Se não houve literalmente um banho de água benta, o sentimento foi de almas lavadas e comunhão plena.
Stryper — ao vivo no Rio de Janeiro
- Local: Sacadura 154
- Data: 2 de agosto de 2025
- Turnê: 40th Anniversary
- Produção: Venus Concerts e En Hakkore Records
Repertório:
- IGWT (é In God We Trust, mas na versão do “Reborn”, assim denominada)
- Revelation
- Calling on You
- Free
- Sorry
- All for One
- Always There for You
- Divider
- No Rest for the Wicked
- No More Hell to Pay
- More Than a Man
- The Valley
- Yahweh
- Surrender
- Soldiers Under Command
Bis:
- Sing-Along Song
- To Hell with the Devil

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