Em 2011, um “novo” grupo vinha a São Paulo e ao Brasil pela primeira vez para se apresentar na Chácara do Jockey, uma noite antes de tocar no Rock in Rio. Era o System of a Down. Ali houve uma espécie de “troca de guarda”. Antes, este repórter via grandes nomes do metal detonarem em seus shows para a alegria do povo na frente do palco, enquanto quem estava atrás só assistia. A partir daquele 1º de outubro de 2011, testemunhei um cenário diferente: a molecada — no melhor sentido do termo — tomou a frente, abriu rodas onde houvesse espaço, inclusive no fundão da pista, e cantou cada pedacinho de todas as letras. Não havia por lá gente perdida no rolê. Show de metal com essa banda passava a ser um evento para especialistas.
Quatro anos depois, este redator rumou à Cidade Maravilhosa para assistir a Lamb of God, Deftones e Hollywood Vampires (por que não?) em outra edição do festival carioca. O headliner era o mesmo grupo que impressionou em 2011 — e voltou a detonar naquela nova ocasião. Um gigantesco fenômeno voltado majoritariamente a uma geração depois da deste escriba, hoje com 48 anos.
Quem tinha quinze anos em 2011, hoje tem quase trinta, está inserido no mercado de trabalho, ganha sua grana e ajudou a esgotar ingressos para duas datas num estádio em São Paulo, “forçando” a produtora a abrir uma terceira em local ainda maior, o Autódromo de Interlagos, nesta quarta-feira (14).
A única parte ruim para apaixonados pelo SOAD é a imprevisibilidade. Afinal de contas, quando os veremos novamente? Isso sem citar a sensação de termos ido assisti-los pela, quem sabe, última vez. Tal incerteza é partilhada em comunhão e é de domínio público que quem “empata” a vida do grupo é Serj Tankian, chegando ao ponto de o frontman ter sugerido, em 2017, a continuidade da banda sem ele.
Num ambíguo “autofuro” de reportagem durante a abertura do Seven Hours After Violet (S.H.A.V.) para Babymetal na Audio, em outubro de 2024, o baixista Shavo Odadjian, precisamente entre “Gloom” e “Alive”, já indicara que retornariam ao Brasil: “Vou dizer, depois de anos, em 2015, viemos aqui, valeu a pena e vamos voltar em breve”. Não ficou claro com qual dos grupos. O tempo provou que seria com o System of a Down.
Com a banda na ponta dos cascos e transbordando química no palco, restou uma curiosidade agridoce: seriam ainda melhores se tocassem mais vezes e lançassem mais material? Afinal de contas, descontando-se o single com “Protect the Land” e “Genocidal Humanoidz”, de 2020, o trabalho inédito mais recente é o álbum “Hypnotize”, do longínquo ano de 2005.
Nada animado, o próprio guitarrista Daron Malakian discorreu sobre o hiato criativo no podcast “Tetragrammaton With Rick Rubin”, no início deste ano, revendo seu ponto de vista a respeito de disponibilizar material novo.
Abertura robusta com convidada de peso
Pontualmente às 19h30, veio ao palco o Ego Kill Talent, formado por Emmily Barreto (voz), Theo van der Loo e Niper Boaventura (guitarras), Cris Botarelli (baixo) e Raphael Miranda (bateria) ao som de “We Move as One”, single do ano passado, com participações em estúdio de Rob Damiani e Andreas Kisser — este retribuiu a colaboração de Emmily em “Fear; Pain; Chaos; Suffering”, faixa de encerramento de “Quadra” (2020), álbum final do Sepultura.
Oriundas do Far From Alaska, Cris e Emmily — esta com Alanis Morissette estampada na camiseta — deram uma latente revitalizada na sonoridade do quinteto que, polêmicas à parte, segue arrebatando novos fãs com a abertura de respeito para as duas datas do Linkin Park em novembro último e participação no Knotfest um mês antes, todas no Allianz Parque. Importante destacar que o grupo é, segundo o Setlist.fm, a terceira atração a tocar mais vezes no novo estádio do Palmeiras, com oito performances, nunca como headliner. Supera Titãs (sete), Andrea Bocelli (seis) e Roger Waters (quatro).
Após participar do show do Tool no Lollapalooza Brasil 2025 tocando “Jambi”, Jéssica di Falchi, ex-guitarrista da Crypta, foi convidada e esbanjou talento na ainda inédita “Never Fading Light” e em “Reflecting Love”, quinta e sexta do setlist. Outro ponto alto foi a saideira, “Last Ride”, definitivamente a arrasa-quarteirão do grupo, originalmente do álbum de estreia homônimo e regravada com a nova formação sob o novo título “Last Ride (her)”.
Evidentemente as escolhas foram pautadas na nova fase do conjunto, com nove das dez canções tocadas já com Emmily na formação, considerando a regravação de “Last Ride (her)”. A única mais “das antigas” foi “Lifeporn”, de “The Dance Between Extremes” (2021). Totalmente adaptada, a “nova” vocalista ainda fez questão de lembrar se tratar do Dia das Mães entre as músicas com Jéssica no palco.
Agora, já pensou que legal se tivessem incluído “Thousand Nails” no repertório? O motivo? Total quebra de protocolo, pois o single de 2021 conta com um tal de John Dolmayan na bateria. Mas não precisou disso, visto que a apresentação teve firmeza e mostrou um grupo estável, com uma identidade que a troca constante de instrumentos por parte dos músicos não permitia ter.
Enfim, quarenta e cinco minutos super agradáveis que serviram em cheio para esquentar a galera e espantar a fina garoa que insistia em cair numa já noite fria, dando trégua do meio para o final da abertura, sem mais voltar.
Repertório – Ego Kill Talent:
01) We Move as One
02) Lifeporn
03) Call Us by Her Name
04) Need No One to Dance
05) Never Fading Light [Com Jéssica di Falchi]
06) Reflecting Love [Com Jéssica di Falchi]
07) When it Comes
08) Just for the Likes
09) Finding Freedom
10) Last Ride (her)
Outro: Top Top [Os Mutantes]
Catarse com System of a Down
A discotecagem do intervalo foi pautada em sons de Rammstein e Slipknot e faltando nove minutos para o início do System of a Down, oficialmente marcado para as 21h, numa quebra total de expectativas, soltaram “Pull Me Under”, do Dream Theater – acredite! Um minuto antes do programado, as luzes se apagaram para a intro, “One Flew Over the Cuckoo’s Nest”, tema de abertura de “Um Estranho no Ninho” (1975), filme que rendeu o Oscar de ator principal a Jack Nicholson.
Para quem ficou curioso quanto às lanternas azuis acesas nas cadeiras inferiores, vermelhas nas superiores e amarelas na pista premium (de onde estávamos não tínhamos acesso visual da pista comum), elas aludiam às cores da bandeira da Armênia. Foi algo combinado previamente pela internet, a fim de apoiar a banda na luta pelo reconhecimento do genocídio armênio.
Não dá para negar que a imensa maioria das pessoas saiu de casa para escutar o combo “Aerials”, “Chop Suey!” e “Toxicity”, evidentemente os pontos altos do set, embora esta última tenha rolado com o perigoso precedente dos sinalizadores acesos no meio da pista. Para piorar, visando jogar lenha na fogueira, Daron encorajou: “São Paulo, estávamos aqui na noite passada e não tínhamos pirotecnia alguma no palco. Estamos aqui esta noite e esperamos que vocês tragam o fogo!”.
Das três clássicas acima mencionadas, a que causou maior impacto foi “Aerials”, por ter sido o primeiro megahit tocado, como quarta no geral, prontamente identificada e gerando explosão de gritos e coros. Serj deu uma força substancial na guitarra em termos de peso e foi magnífica a cantoria oriunda das cadeiras com leve atraso. Tudo isso sem citar o belo e sutil “We love you!” cantarolado na melodia ao encerrá-la.
Na linha “começa e para”, “Prison Song”, terceira da noite, já havia evidenciado o divertido delay natural de um estádio, com as reações vindas das cadeiras ecoando de modo diferente da pista premium. Saindo do óbvio, “Lost in Hollywood” foi um daquelas pérolas escondidas das quais você não se dá conta até nela reparar melhor ao escutá-la ao vivo e foi concluída com um engraçadíssimo snippet de “Careless Whisper”, do Wham! Outro trecho de música um tanto inusitado foi “Every Breath You Take” (The Police) introduzindo “Bounce”.
Quanto aos músicos, toda banda de metal com apenas um guitarrista e sem tecladista para dar um apoio precisa de um baixista que segure a onda — e este é o caso de Shavo, especialmente em “Pictures” ou ao puxar a viagem em que se transformou a sombria “Mind”. Antes, porém, ele já havia dando amostras de sua importância em “Aerials”, “Dreaming” (em versão enxuta) e “Psycho”, e depois tornaria a se destacar em “Spiders”. Quanto ao seu parceiro na seção rítmica, discreto, John oferece a segurança condutória e poderosa vinda de seu kit com batidas precisas e sem firulas.
E se Serj é o ímã em termos de atenção (afinal, é a imagem da banda), Daron é quem se comunica com sobras de ironia, como antes da politicamente incorreta “Cigaro”, escolhida na hora e preterindo a dupla “DAM” e ”War?”, que constavam como opões no setlist de palco. “Hoje é Dia das Mães! Gostaria de dedicar esta música à minha mãe, às mães de todos nós, às mães de todos vocês, a todas as mães pelo mundo – incluindo todos os ‘m#therfuckers’!”. Ele mesmo ponderou ao seu final: “Meu bil@u é muito maior do que o seu não é a coisa mais agradável para se dizer no Dia das Mães. Mães são muito adoráveis e merecem uma música muito, muito bonita”, declarou, antes de ofertar a balada “Roulette” a elas.
Voltando às músicas, surpresa talvez tenha sido o povo cantar “Lonely Day” – e sobre o público recai o grande elogio da noite. Está lembrado da expectativa de roda referida acima? Elas rolaram, é claro, mas super no respeito e sem atropelos. Como num transe e de modo geral, os fãs apoiaram o quarteto, se divertiram e pularam, mesmo que em certos momentos houvesse certa perda de concentração, conforme notada em “Peephole”, com incidência acima da média na procura por cerveja.
Com menos de um minuto de duração e nem por isso menos relevante, “36” teve efeito devastador, enquanto “Soldier Side – Intro”, outra rapidinha, foi mais contemplativa. Agora, se você quer saber as pancadas não tão esperadas, o trio consecutivo formado por “Bounce”, “Suggestions” e “Psycho” e depois “Cigaro” foram de arrepiar. “B.Y.O.B.”, verdadeiro bombardeio sonoro, também foi sensacional e nela este repórter começou a viajar a partir das imagens de ataques aéreos mostradas no telão: qual seria a porcentagem de público que foi à festa (tanto literal como na letra) só para curtir e quantas pessoas vão realmente atrás de sua mensagem?
Sabe aquele povo tipicamente masculino branco e bombado que adora gritar “F#ck you, I won’t do what you tell me!”, só para posar de f#dão em qualquer discotecagem com “Killing in the Name”, sem ter a mínima idéia das causas defendidas por Zack de la Rocha, Tom Morello e companhia? No show do System of a Down, embora bastante gente também estivesse lá para meramente passar a noite, a impressão foi a de que as pessoas sabiam muito bem onde estavam, haja vista a homenagem à origem dos caras.
No palco, setenta e dois canhões de luz em sua parte superior eram distribuídos em quatro linhas de dezoito, somados a quinze pontos de iluminação acima destes e outros tantos no chão, sendo impossível precisar a quantidade. Daí você faz ideia das possibilidades visuais, até porque, lá pelas tantas, os quatro conjuntos de canhões se inclinavam e sua parte superior funcionava em junto com o telão de fundo oferecendo maior riqueza de imagens ao olhar para o palco.
Outro aspecto interessante na apresentação do SOAD é o quanto dá para dançar. Para ficarmos no exemplo mais forte, “I-E-A-I-A-I-O” tirou a massa para pular como se tivessem molas nos pés – lembrando que o Dia Mundial da Dança acaba de ser celebrado em 29 de abril. E em “Radio/Video”, Daron fez não uma, mas duas menções em momentos distintos à talvez mais espontânea forma de arte gerada pelo ser humano desde criança: “É hora de dançar!” e “Todos vão dançar agora!”. Concorre para reforçar o chacoalhar do esqueleto a própria herança musical armênia dos caras.
Na prática, o repertório adotado na segunda data de São Paulo foi idêntico ao do Rio, mas quem foi na véspera conferiu nove alterações dentre as trinta e duas apresentadas: “Attack”, “Violent Pornography”, “Mr. Jack”, “Genocidal Humanoidz”, “A.D.D.”, “Bubbles”, “Streamline”, “DAM” e “War?” em detrimento de “X”, “36”, “Pictures”, “Highway Song”, “Peephole”, “Kill Rock ‘n Roll”, “Mind”, “Spiders” e “Cigaro”. Convenhamos: 28% de trocas é uma parcela significativa.
Encerrada outra noite tão catártica quanto à do Rio de Janeiro com uma hora e 56 minutos quando dispararam “The Hand That Feeds”, do Nine Inch Nails, como “outro”, o choque de realidade era correr para pegar o transporte coletivo e surgia o vácuo emocional gerado pela dúvida de quando, e se, tornaremos a ver o quarteto ao vivo após a passagem pelo Autódromo de Interlagos. É melhor acordar ou seguir sonhando?
System of a Down — ao vivo em São Paulo
- Data: 11 de maio de 2025
- Local: Allianz Parque
- Turnê: Wake Up!
- Produção: 30e
Repertório:
Intro: One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Opening Theme) [Jack Nitzsche]
01) X
02) Suite-Pee
03) Prison Song
04) Aerials
05) I-E-A-I-A-I-O
06) 36
07) Pictures
08) Highway Song
09) Needles
10) Deer Dance
11) Soldier Side – Intro
12) Soldier Side
13) B.Y.O.B.
14) Radio/Video
15) Dreaming [pedaço]
16) Hypnotize
17) Peephole
18) ATWA
19) Bounce [com snippet introdutório de Every Breath You Take (The Police)]
20) Suggestions
21) Psycho
22) Chop Suey!
23) Kill Rock ‘n Roll
24) Lost in Hollywood [com snippet conclusivo de “Careless Whisper” (Wham!)]
25) Lonely Day
26) Mind
27) Spiders
28) Forest
29) Cigaro
30) Roulette
31) Toxicity
32) Sugar
Outro: The Hand That Feeds [Nine Inch Nails]
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