Como se as mais de 500 mil cópias vendidas de “Ritual” (2002) ao redor do mundo não fossem motivo suficiente para manter o rumo de um trabalho que havia conquistado o exigente público do metal, o Shaman optou por mudar — e de forma ousada. Em seu segundo, e no fim das contas derradeiro, álbum de estúdio com a formação clássica, Andre Matos (vocal e teclados), Ricardo Confessori (bateria) e os irmãos Luis (baixo) e Hugo Mariutti (guitarra) arriscaram. Mas a guinada artística teve um custo alto.
Como dizia a biografia publicada no site oficial cerca de uma década atrás, “Reason” trazia “uma música mais orgânica, o que ajudou a evidenciar o contraste entre guitarras pesadas, teclados em estilo new age e batidas tribais de world music”. A mudança, no entanto, não agradou a todos. Parte dos fãs se mostrou reticente, e a banda passou a considerar novamente um redirecionamento de sua identidade musical.
Não houve tempo. Após uma turnê menos robusta do que a anterior, o Shaman implodiu — em um desfecho que ecoava o fim conturbado da fase Matos no Angra.
Os erros do passado, como agendas extenuantes e conflitos internos, voltaram a assombrar os músicos, ainda que por razões distintas. Lançado em maio de 2005, “Reason” tornou-se um divisor de águas na carreira do Shaman: denso, ambicioso e, em última instância, prenúncio do fim.
Ano de mudanças
O ano de 2005 não trouxe apenas o segundo álbum de estúdio do Shaman. Marcou também uma fase de transição e reformulação em diversos aspectos da carreira da banda.
A primeira mudança visível foi no nome. Com o acréscimo de uma letra “A”, a grafia passou a ser Shaaman. A alteração soou forçada e foi recebida com reservas até mesmo entre os fãs mais fiéis. Luis Mariutti, em entrevista à Rock Underground, explicou:
“Essa letra a mais não muda a pronúncia. O logotipo é quase o mesmo, só aumentamos um ‘A’ no layout. Quando a gente lê o nome pela primeira vez, parece que está gaguejando, mas depois passa. [Risos.]”
À Roadie Crew, Andre Matos apontou que a mudança foi uma forma de precaução jurídica, sem relação com outras bandas:
“Estávamos tentando nos precaver, pois sabemos que, quanto mais a banda cresce, mais gente aparece querendo tirar proveito. Havia várias empresas chamadas ‘Shaman’, e isso podia gerar complicações, já que nossa própria empresa também estava registrada com esse nome.”
Fiel ao lado espiritual que permeava a identidade da banda, Matos revelou que os quatro consultaram fontes ligadas ao xamanismo antes de tomar a decisão.
“Vale dizer que conversamos com pessoas do meio xamânico, que nos disseram que essa forma de escrever não altera em nada o significado do nome.”
Outra mudança importante foi de gravadora. Buscando uma relação mais direta e prioritária, o Shaman deixou a gigante Universal e assinou com a Deckdisc. Luis explicou:
“Nada contra a Universal, que fez um ótimo trabalho conosco, mas a ideia foi estar em um selo que falasse mais a nossa linguagem. Na Deck, somos prioridade. Temos mais contato, mais acesso para desenvolver o trabalho. Chegamos até lá por meio dos nossos empresários de shows, que já tinham relacionamento com o pessoal da gravadora.”
Uma nova sonoridade
A guinada visual e estratégica do Shaman em 2005 foi acompanhada por uma mudança perceptível na sonoridade. Em “Reason”, o grupo trilhou uma direção mais densa e introspectiva, com arranjos soturnos que contrastavam com a energia exuberante de “Ritual”.
Em entrevista ao Whiplash, Andre Matos revelou algumas das referências que moldaram o então novo trabalho:
“Todos nós crescemos ouvindo Destruction, Mötley Crüe, Whitesnake, Iron Maiden e Twisted Sister. Essa retomada oitentista que você ouve no CD é fruto dessas bandas, mas isso não muda a essência do Shaman. Somos uma banda de rock e metal, e nossos fãs entendem isso.”
As composições começaram ainda durante a turnê do disco anterior, impulsionadas pelo sucesso do DVD “RituAlive”. “A gente continuou a turnê depois do DVD. Eram muitos pedidos de shows. Depois que lançamos, tínhamos que fazer apresentações de lançamento, senão não faria sentido colocar o DVD no mercado. Começamos a fazer shows e, paralelamente, a trabalhar no disco novo”, explicou Hugo Mariutti em depoimento presente em “Andre Matos: O maestro do heavy metal” (Estética Torta, 2020).
“Essa turnê foi muito longa”, confirma o tecladista Fábio Ribeiro. “Algumas ideias começaram a ser testadas durante a própria turnê (…) Foi um processo interligado: o fim da ‘RituAlive’ e o início de ‘Reason’.”
Em relação às composições, Luis Mariutti comenta que “Reason” foi o CD mais colaborativo de sua carreira. “Antes, o Andre carregava mais o peso, mas neste trabalhamos realmente juntos. Todos contribuíram com ideias, inclusive nos vocais do Andre, onde demos mais opiniões”, disse ele à Roadie Crew.
O processo colaborativo de composição entre os integrantes é detalhado por Hugo:
“Quando fizemos o ‘Reason’, muitas coisas foram construídas da mesma maneira que no ‘Ritual’. Por exemplo: eu tinha boa parte de ‘Born to Be’, mas faltava o refrão. O Andre estava tocando uma melodia no piano, e meu irmão disse: ‘Legal isso aí, poderia ser o refrão’. E assim foi. Cada um, à sua maneira, contribuía com as músicas. O Andre trouxe ‘Innocence’ com harmonia, melodia vocal e letra prontas. Por outro lado, eu lhe entreguei ‘Reason’ já estruturada. Trabalhamos muito na pré-produção deste álbum.”
A faixa de abertura, “Turn Away” — que teve uma primeira versão tocada em alguns shows da Ritual World Tour —, foi pensada para causar impacto imediato e sinalizar a nova fase. À Roadie Crew, Andre afirma:
“Acho que foi proposital esse lance de colocar a ‘Turn Away’ logo no início do álbum. Meio que para chocar de cara e mostrar que houve uma mudança de um disco para o outro. Ela remete ao metal dos anos 1980, como Judas Priest, Deep Purple ou Black Sabbath. Os vocais estão bem rasgados, o que é legal para mim. Já o órgão Hammond é mérito do Fábio Ribeiro, que mandou muito bem.”
Apesar de manter sua identidade vocal, ele sente que explorou novas abordagens interpretativas.
“O ‘Reason’ foi, para mim, um desafio de interpretação, muito além do desafio técnico, que era algo que nos preocupava mais no passado. O desafio era convencer pela interpretação, e não pelo malabarismo vocal.”
Mesmo assim, a balada orquestral “Innocence” foi a bola de segurança da gravadora como o primeiro e único single oficial do álbum. A escolha, no entanto, contrariou os planos dos músicos. Andre destacou:
“Essa opção foi da gravadora. A intenção do single é que a música toque nas rádios, e, para isso, fizeram uma pesquisa com programadores, mostrando o disco inteiro. Eles preferiram a balada, porque o Shaman já tinha a ‘Fairy Tale’. Mas não pretendemos que ela seja a única música de trabalho. Ela é a primeira, mas viremos com outras.”
Embora a banda também tenha produzido um videoclipe para o cover de “More”, do The Sisters of Mercy, somente “Innocence” teve lançamento em CD.
Bastidores e experimentos
A pré-produção de “Reason” começou no estúdio de Fábio Ribeiro, onde a banda trabalhou nas novas músicas por alguns meses. O plano era iniciar o processo no Brasil e depois trazer Sascha Paeth, produtor de “Ritual”, da Alemanha para finalizá-lo.
Sobre vir ao Brasil para acompanhar mais de perto a criação do disco, Paeth conta que ficou cerca de três semanas em São Paulo.
“No segundo álbum foi um pouco diferente (…) Ensaiávamos juntos, e eu trabalhava nos arranjos pela manhã, na casa do Andre. À tarde íamos ao estúdio — sempre meio tarde, porque o Andre estava constantemente atrasado. Era quase ridículo!”
Ricardo Confessori também recorda detalhes das gravações.
“Quem ficou gravando com a gente foi o Philip Colodetti, que virou o braço direito do Sascha. Ele praticamente mixou o ‘RituAlive’. Brasileiro radicado na Alemanha, já tinha trabalhado com a gente no ‘Ritual’. O Sascha monitorava tudo de longe, mas era o Philip quem botava a mão na massa mesmo.”
As baterias e o baixo foram gravados no Nosso Estúdio, um espaço tradicionalmente dedicado à MPB. Por fim, as guitarras e as vozes foram registradas separadamente. O baterista explica:
“Eles foram para outro estúdio, do Philip, para gravar as guitarras. O Andre preferiu gravar os vocais na Alemanha, queria estar ao lado do Sascha. Ele gostava de trabalhar com quem já conhecia, então não quis gravar as vozes com o Philip.”
Apesar do envolvimento intenso na estrada, o repertório de “Reason” ainda não estava completo quando a banda entrou em estúdio. Segundo Hugo, Andre começou a trazer algumas composições extras “no último momento”, sendo uma “Innocence” e a outra “Trail of Tears”.
“Trail of Tears”, aliás, é uma das faixas que mais dialogam com “Ritual” em termos instrumentais, como apontado por Gustavo Maiato e Clovis Roman no livro “Andre Matos: A obra” (Estética Torta, 2023). A ideia original surgiu durante as sessões do primeiro disco, mas acabou sendo deixada de lado, como relembrou Andre:
“Cheguei nos últimos minutos do jogo com duas músicas embaixo do braço. A ‘Trail of Tears’ era uma ideia antiga que nem cheguei a apresentar na época do ‘Ritual’. Nem sabia se seria usada, mas todos gostaram. Originalmente, ela tinha uma batida mais lenta. Fizemos mais rápida, virou essa mistura de muitas melodias com batidas aceleradas.”
Segundo ele, a faixa também abriu espaço para explorar uma nova faceta sonora da banda.
“Foi a música em que mais experimentamos com elementos eletrônicos, algo mais moderno, que foge um pouco da proposta do ‘Ritual’.”
O peso das escolhas
“Reason” foi lançado em 23 de maio de 2005. O tom sépia da capa, mais sombrio e introspectivo, dava pistas sobre a proposta do álbum. Em entrevista ao portal AOL na época, Andre Matos explicou que a intenção era se afastar dos clichês visuais do metal.
“A gente quis fugir cada vez mais daqueles monstrinhos, diabinhos e dragões que aparecem nas capas de heavy metal. A capa é mais escura, abolimos praticamente todas as cores. Aquela figura andando no trilho de trem representa algo reflexivo, solitário. O disco tem um pouco desse sentimento, algo mais existencialista.”
Uma curiosidade pouco conhecida — e trazida à tona em “Andre Matos: A obra” — é que a imagem da capa de “Reason” já havia sido utilizada na literatura. “Um Terrorista no Pampa”, do autor Tailor Diniz, lançado em 2004, estampa exatamente a mesma fotografia.
Ainda em maio, no dia 31, o videoclipe de “Innocence”, filmado em preto e branco, estreou na MTV. Em seguida, foi lançado o vídeo de “More”, mais ambicioso em termos de produção: gravado em uma construção abandonada, o clipe abusava de efeitos especiais e computação gráfica.
Apesar dos esforços, a recepção ao segundo disco do Shaman foi mais contida em comparação ao entusiasmo gerado por “Ritual”. O novo direcionamento musical dividiu opiniões entre os fãs. Ciente dessa mudança, Hugo Mariutti admite que o grupo sabia que a decisão poderia ter impacto comercial negativo:
“Se a gente parasse pra pensar friamente, seria mais seguro lançar um ‘Ritual Parte 2’ e continuar com a turnê. Mas aprendi muito isso com o Andre. Ele sempre seguiu o instinto artístico, nunca fez uma continuação direta. Do ‘Angels Cry’ para o ‘Holy Land’, e depois para o ‘Fireworks’ [do Angra], sempre houve uma diferença grande. Eles não tinham medo, e isso é o mais honesto: fazer o que se tem vontade.”
E os reflexos logo vieram. A turnê de “Reason” foi significativamente menor: apenas 32 shows, sendo 28 deles no Brasil — muito aquém dos 75 shows da Ritual World Tour, que passou por mais de dez países. O repertório ao vivo incluía faixas de “Ritual” e “Reason”, além da balada “Lisbon”, do Angra. A ausência de “Carry On”, grande sucesso do Angra e antes sempre presente, foi marcante. Quando muito, Andre tocava apenas um pequeno trecho da música no teclado.
Anos depois, em entrevista à Roadie Crew, Andre reconheceu o erro estratégico de priorizar o mercado interno.
“Chegamos a recusar turnês inteiras na Ásia para poder tocar em grandes festivais aqui [no Brasil]. Com isso, nosso alcance lá fora foi menor do que poderia ser. Ainda assim, fizemos muitas apresentações no exterior, mas não atingimos o mesmo status que tínhamos quando estávamos no Angra.”
Além disso, o grupo foi atingido por uma tragédia que afetou diretamente seus planos internacionais. Hugo relembra:
“Tínhamos uma turnê grande programada na Europa. A gravadora nova [AFM Records] estava apostando muito no álbum. Eles diziam que esse tipo de som era perfeito para o mercado europeu. Mas, um mês antes do lançamento, o dono da gravadora [Andy ‘Henner’ Allendörfer] sofreu um acidente de carro e faleceu. Isso virou tudo de cabeça pra baixo. Acabamos lançando o disco sem qualquer estrutura de divulgação.”
Iniciada em março de 2005, a turnê terminou em maio de 2006, tendo como seu último show com a formação original no Bar Opinião, em Porto Alegre.
Quando tudo ruiu
Embora a aparência fosse de coesão, nos bastidores, a estabilidade do Shaman já dava sinais de desgaste.
Enquanto cumpriam a agenda de shows da turnê de “Reason”, Andre Matos e os demais integrantes já começavam a pensar nos próximos passos. Havia planos de lançar um EP, possivelmente de covers, voltado ao mercado japonês — onde havia dúvidas sobre como o novo álbum seria recebido em comparação ao sucesso de “Ritual”. Mas o projeto foi interrompido abruptamente: a banda se desfez ainda durante o processo de composição.
A separação do Shaman foi marcada por um racha. De um lado, Ricardo Confessori; do outro, Andre e os irmãos Mariutti. O estopim foi a descoberta de que Confessori havia registrado a marca “Shaman” em seu próprio nome, sem o conhecimento dos colegas. Para eles, tratava-se de uma traição imperdoável. A tentativa de reaver a marca por vias legais não foi suficiente para evitar a saída dos três.
A rotina exaustiva também cobrou seu preço. Entre 2002 e 2006, a banda lançou dois álbuns de estúdio e um ao vivo, além de realizar extensas turnês. Sem pausas, o desgaste emocional e físico aumentava. Hugo relembra o clima:
“Os últimos shows foram realizados já com a decisão tomada. O clima era pesado. O Andre estava visivelmente abalado, mas cumprimos todos os compromissos. A falta de descanso e os problemas legais minaram a energia de todos.”
O cenário não era novo para Andre e Luis, que já haviam vivido experiência semelhante na saída do Angra. Confessori, por sua vez, também apontou o ritmo intenso de trabalho como causa principal da ruptura. Segundo ele, o novo empresariamento impulsionou a banda a um circuito maior de shows, mas sem o devido tempo para descanso ou renovação criativa.
“Saímos direto da turnê do ‘Ritual’ para gravar o ‘Reason’. Estávamos todos esgotados. As relações ficaram tensas e havia dependência financeira de muita gente em cima daquilo. Isso só aumentava a pressão.”
Mesmo com o desgaste, o grupo ainda participou do programa “Rockgol MTV” em 2005 e 2006. Mas, em 10 de outubro de 2006, Confessori anunciou oficialmente o fim do Shaaman. Quatro dias depois, Andre subiu ao palco para seu primeiro show solo — acompanhado por Hugo e Luis. Confessori tentou manter o Shaman vivo com nova formação, mas a resposta do público não foi a mesma. Em 2013, o projeto chegou ao fim.
Doze anos depois, a formação original se reuniu para a turnê “Reunion”, celebrando os grandes momentos da banda. A última apresentação aconteceu apenas seis dias antes da morte repentina de Andre, vítima de um ataque cardíaco, em junho de 2019.
A redenção do “patinho feio”
Durante anos, “Reason” foi visto como o “patinho feio” da discografia de Andre Matos. Com o tempo, no entanto, a percepção mudou.
A complexidade emocional, a produção refinada e a proposta estética ousada permitiram que o disco envelhecesse bem, conquistando reconhecimento retroativo. Hoje, é celebrado por muitos como uma obra madura, densa e corajosa — inclusive por alguns de seus criadores. Ricardo Confessori relembra:
“Quando ouvi o disco pela primeira vez, estranhei. Achei que a voz do Andre não combinava muito com aquele tipo de música. Mas a gente resolveu ousar. Depois me acostumei. Hoje em dia, acho muito legal. Quanto mais o tempo passa, mais vejo que ficou bacana essa mistura de peso com a voz dele.”
Hugo completa:
“Hoje, muitos fãs que na época não gostaram do disco vêm falar que, depois que entenderam a proposta — que não era para ser uma continuação direta do ‘Ritual’ —, passaram a gostar. A gente quis fazer dessa maneira. Acho que fizemos a coisa certa.”
Shaman – “Reason”
- Lançado em 23 de maio de 2005 pela Deckdisc
- Produzido por Sascha Paeth e Shaman
Faixas:
- Turn Away
- Reason
- More (cover do The Sisters of Mercy)
- Innocence
- Scarred Forever
- In the Night
- Rough Stone
- Iron Soul
- Trail of Tears
- Born to Be
Músicos:
- Andre Matos – vocal, piano, teclados
- Hugo Mariutti – guitarras
- Luis Mariutti – baixo
- Ricardo Confessori – bateria
Músicos adicionais:
- Amanda Somerville – vocais de apoio, narração, preparação vocal
- Fabio Ribeiro – órgão
- Helder Araujo – sitar, tablas
- Junior Rossetti – teclados, efeitos sonoros
- Marcus Viana – violino, violoncelo, dioruba indiana, rabab
- Michael Rodenberg “Miro” – arranjos e programação de teclados, efeitos sonoros
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