Poucas bandas mereciam tanto uma redenção quanto o Toto. Ao longo dos anos, o Roupa Nova americano ganhou a pecha de “brega” mesmo com uma série de méritos individuais ou coletivos que não podem ser ignorados.
O catálogo da banda é, de fato, repleto de altos e baixos e por vezes apresenta execução de algumas fórmulas típicas da música pop. Nada, porém, que um artista ou grupo de longa atividade não tenha feito. Ouça alguns discos do gênio incontestável Paul McCartney nas décadas de 1970 e 1980 e tire a prova.
Fato é que o Toto vendeu 40 milhões de cópias em todo o planeta, conquistou prêmios Grammy de Álbum do Ano e Gravação do Ano (duas das categorias mais importantes e raríssimas para artistas de rock), emplacou oito singles no top 40 americano e teve seus integrantes envolvidos em alguns dos discos mais importantes da música popular. Vários deles serviram como banda de apoio do trabalho mais vendido em todos os tempos: “Thriller” (1982), de Michael Jackson. Não é pouca coisa.
É de se lamentar que a redenção tenha vindo um pouco tarde, quando a maior parte dos integrantes da formação clássica não estão mais envolvidos com a banda — com alguns já falecidos e o cantor original Bobby Kimball sofrendo de demência. O guitarrista Steve Lukather e o tecladista David Paich são os únicos ainda vinculados, mas o segundo mencionado não faz mais turnês devido a problemas de saúde. Lukather e o vocalista Joseph Williams, que passou brevemente pelo grupo entre 1986 e 1988 para retornar de vez em 2010, são os únicos integrantes fixos.
E de onde é que veio tal redenção? Dos “jovens” na internet, acredite se quiser. Nos últimos anos, o mega-hit “Africa” virou meme e ganhou tração após um fã pedir nas redes que o Weezer, nome forte do rock alternativo, regravasse a faixa. O grupo decidiu fazer um cover de “Rosanna” só de sacanagem, mas tempos depois atendeu à solicitação — e chegou a emplacar sua versão em 51º lugar na parada americana. Ótima repercussão para uma brincadeira online, que se reverteu à banda original de várias formas: renovação de público, números cada vez mais altos no streaming e um novo interesse por suas apresentações ao vivo.
Todo esse cenário nos leva à segunda passagem do Toto pelo Brasil, em uma sobrevida quase que inacreditável após a banda ter acabado em 2019 por divergências agora solucionadas com Susan Porcaro-Goings, viúva do baterista Jeff Porcaro. Fãs que assistiram ao show no domingo (24) no Espaço Unimed, em São Paulo, e verão a performance de terça (26) na Arena Jockey, Rio de Janeiro, nunca iriam imaginar que haveria um retorno após a data única na capital paulista em 2007.
Mas aconteceu. Com uma competentíssima formação alternativa, mas aconteceu. Abençoadas sejam as chuvas que caem na África, responsáveis por lavar as almas não só dos fãs que marcaram presença em São Paulo e em toda a turnê “Dogz of Oz” (nome que seria usado para batizar a banda caso a situação com Susan Porcaro-Goings não se resolvesse), mas dos próprios músicos. Nem eles pareciam esperar uma recepção tão positiva no fim das contas.
O Toto atual
Há tanta história em torno dos músicos que compõem a formação atual do Toto que Steve Lukather dedica um bloco robusto do show para apresentar cada um, com direito a tocar trechos de canções com as quais eles estiveram envolvidos — visto que, como esperado, todos são músicos de estúdio. A saber, na ordem em que são introduzidos:
- Greg Phillinganes, tecladista que já havia tocado com o grupo entre 2003 e 2008 e colaborou com Michael Jackson, Stevie Wonder, George Harrison e mais;
- Dennis Atlas, de longe o mais jovem, também tecladista, substituto de Steve Maggiora e indicado pelo guitarrista Ron “Bumblefoot” Thal (ex-Guns N’ Roses, Sons of Apollo etc);
- Warren Ham, percussionista que também toca sax, flauta e gaita, com passagem entre 1986 e 1988 antes de retornar de vez em 2017, ligado à All-Starr Band de Ringo Starr assim como Lukather;
- John Pierce, baixista envolvido desde 2020 que já trabalhou com Huey Lewis and the News, Cher, Boz Scaggs, Steve Perry e por aí vai;
- Shannon Forrest, baterista vinculado desde 2014 (apesar da ausência entre 2020 e 2024) que emprestou seu talento a Taylor Swift, Carrie Underwood, Willie Nelson e mais;
- Joseph Williams, já citado vocalista, filho do lendário compositor de trilhas sonoras John Williams e, entre vários trabalhos, a voz de “Hakuna Matata”, do filme “O Rei Leão”.
O fato de a maior parte deles ter algum vínculo de amizade ou profissional anterior com Lukather faz transparecer muita leveza no palco. Todos brincam, interagem e parecem estar, acima de tudo, se divertindo. Para uma banda que perdeu seu vocalista (Bobby Kimball) logo após lançar seu álbum de maior sucesso (“Toto IV”) e constantemente mudou de formação, bom relacionamento é essencial para além dos talentos inegáveis de todos os envolvidos.
O show
Com apenas quatro minutos de atraso em relação ao horário previsto, o septeto americano ocupou seus postos, em semicírculo — com Steve Lukather e Joseph Williams ao centro, os dois teclados à esquerda, percussão ao fundo, bateria e baixo à direita — para tocar “Girl Goodbye”. Relativamente pesada para os padrões do Toto, a faixa foi uma das quatro escolhidas do álbum de estreia de 1978, trabalho mais representado no setlist ao lado de “The Seventh One” (1988), um dos quatro gravados com Williams.
Eram tantos celulares para o alto que mal dava para ver o palco. A situação não melhorou em “Hold the Line”, um dos maiores hits do grupo, executado logo na sequência para catarse coletiva. Confortável como se estivesse tocando em casa, Lukather chamou os fãs presentes de “amigos” (em português mesmo) e brindou com sua “cerveja falsa”, visto que está sóbrio desde 2010, antes de assumir vocais na envolvente “99”. Antes deste e de quase todos os solos que executou no show, o guitarrista era recebido com gritos logo nas primeiras notas. Tinha o público na mão.
Não só ele, como todo o grupo. Arrancavam reações entusiasmadas não apenas em hits como “Pamela” e a baladaça “I’ll Be Over You”, como também na longa instrumental “Jake to the Bone”, no solo de teclado de Greg Phillinganes (com trecho de “I Won’t Hold You Back”, que chegou a ser cantada pela plateia) e na climática, mas pouco conhecida “Burn”. Algo raro.
“Stop Loving You”, com seu final quase Rush, e “Little Wing”, outra cantada por Lukather e dedicada ao saudoso baterista original Jeff Porcaro, antecederam um solo de bateria que não esfriou os ânimos para a grudenta “I’ll Supply the Love”, com vocais também de Dennis Atlas e recebida nas palminhas desde os primeiros segundos.
Não dá para dizer o mesmo da sequência composta por “A Thousand Years”, faixa de 1988 que só começou a ser tocada agora; “Georgy Porgy”, canção de bom groove oriunda do disco de estreia; e “Dying on My Feet”, com covocais de Phillinganes e representante única de “Falling in Between” (2006). Todas boas, mas foram talvez as únicas que não conseguiram manter a atenção de um público que, a essa altura, demonstrava fascínio havia mais de uma hora.
Mas logo viria a matadora sequência final para recolocar os ânimos — e os celulares — no alto. Após um “muchas gracias” meio deslocado de Lukather e a já mencionada introdução aos músicos, a irresistível “Home to the Brave” e a execução de “With a Little Help from My Friends”, clássico dos Beatles na versão tão histórica quanto de Joe Cocker, prepararam o público para os hits máximos “Rosanna” e “Africa”. A primeira, dona de um groove inconfundível, foi estendida para solos que mostram como os instrumentais do Toto não são chatos: além do trabalho pulsante de bateria, ninguém passa do ponto ao solar. Tudo em prol da música. A segunda traz simplesmente um dos refrães mais poderosos já feitos. Ponto.
O poder da música
Por vezes classificado como AOR ou yacht rock, o Toto pertence a um segmento de bandas cujas músicas transcendem bastante os seus autores. Journey, Boston, Foreigner, Survivor, REO Speedwagon… são grupos que, com todo o respeito, podem mudar quase todos os integrantes — ou todos mesmo, caso do Foreigner — e ainda seguir se apresentando sem problemas.
Mesmo com as mudanças, Steve Lukather tentou preservar certo critério ao resgatar ex-integrantes e músicos que conhece há muito tempo. É ele próprio quem valida o trabalho atual ao dizer, em entrevista a este site concedida meses atrás, que praticamente nenhuma banda de rock clássico mantém sua formação intacta. “As pessoas morrem, se aposentam, adoecem, enlouquecem ou, sei lá, viram padres. Já vi de tudo”, diz.
Se tantos ex-colegas não puderam ver ou desfrutar da já explicada redenção do Toto perante o público, Lukather, que felizmente não virou clérigo, teve. Com a bênção de David Paich e do espólio de Jeff Porcaro, os dois reais criadores da coisa toda, o guitarrista de 67 anos mantém a engrenagem funcionando. Com méritos.
Diante do ótimo show que se viu em São Paulo no último domingo (24), só dá para se dizer: vida longa a ele, pois o Toto, como outros nomes de seu segmento, tem vida própria.
Toto — ao vivo em São Paulo
- Local: Espaço Unimed
- Data: 24 de novembro de 2024
- Turnê: The Dogz of Oz
- Produção: 30e
Repertório:
- Girl Goodbye
- Hold the Line
- 99
- Pamela
- Jake to the Bone
- Solo de teclado de Greg Phillinganes, com trecho de “I Won’t Hold You Back”
- Burn
- I’ll Be Over You
- Stop Loving You
- Little Wing (cover de The Jimi Hendrix Experience)
- Solo de bateria de Shannon Forest
- I’ll Supply the Love
- A Thousand Years
- Georgy Porgy
- Dying on My Feet (seguida por apresentação dos integrantes da banda, com trechos de “Beat It” [Michael Jackson], “I Keep Forgettin'” [Michael McDonald], “Carry on Wayward Son” [Kansas], “The Power of Love” [Huey Lewis and the News], “Sex Machine” [James Brown], “Hakuna Matata” [O Rei Leão] e “I’m Still Standing” [Elton John])
- Home of the Brave
- With a Little Help From My Friends (original dos Beatles; versão de Joe Cocker)
- Rosanna
- Africa
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