Na segunda música do show realizado no último sábado (23) em São Paulo, Lenny Kravitz se autoproclama o “ministro” (no sentido religioso, como um pastor) do rock ‘n roll. Diz ao interlocutor — neste caso, dezenas de milhares de fãs que não lotaram o Allianz Parque — que tem poder de cura e o segredo para o não envelhecimento.
Dos acertos aos excessos, Kravitz oferece ao vivo a epítome do rock ‘n roll da forma como o gênero é glamourizado. Desde o momento deplorável em que sua equipe cortou o som de uma das atrações de abertura, o icônico Roberto Frejat, por ultrapassar dois minutos do tempo previsto aos momentos finais de “Are You Gonna Go My Way?”, última canção antes do bis e dona de um dos riffs mais hipnotizantes dos anos 1990. Tem controvérsia, egocentrismo, um guarda-roupa invejável e, claro, música boa.
Lianne La Havas (e um pouco de Liniker)
Produzido por 30e e Mercury Concerts, o show de Kravitz em data única no Brasil foi transformado em um minifestival, com três atrações de abertura relativamente díspares, mas de excelente qualidade artística, cada uma a seu modo. Não foi possível conferir na íntegra a primeira, Liniker, que se apresentou para um estádio ainda vazio, mas pareceu ter agradado quem estava por lá. A cantora trans nascida em Araraquara (SP) tem trabalho consistente desde os tempos com a banda de apoio Os Caramelows, trazendo um soul/funk repleto de swing e vocais caprichados. Seu novo álbum, “Caju”, é audição recomendada.
Lianne La Havas, sensacional artista inglesa bastante identificada com a música brasileira — a ponto de ter gravado com Milton Nascimento no álbum dele com Esperanza Spalding —, surgiu na sequência para a terceira de quatro apresentações pelo país. Antes, realizou show aclamado na edição soteropolitana do festival Afropunk e tocou no Circo Voador, no Rio. Conclui a agenda nacional com performance no Cine Joia, na capital paulista, neste domingo (24).
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Quem deu uma chance para seu som, uma combinação própria que vai de R&B a jazz brasileiro, aprovou. Todavia, Lianne realiza um show difícil de se cativar quando se está na posição de atração de abertura em um estádio. Requer atenção de quem assiste — algo que os ainda poucos presentes não pareciam querer lhe oferecer, mesmo após ela ter iniciado seu set falando em português.
La Havas trouxe consigo um baterista (um brasileiro introduzido apenas como Thiago) e um tecladista, contrariando o formato de performance 100% solo que adota há anos. Sabia da importância da ocasião. Ao longo de 45 minutos, suas tentativas mais consistentes de atrair a plateia se deram durante a irresistível “Green & Gold”, seu maior hit no Spotify e colocada logo como a segunda do setlist; “Weird Fishes”, cover de Radiohead onde solta o vozeirão ao fim — e Thiago a acompanha com classe —; “Seven Times”, inspirada no Clube da Esquina e até um trecho de samba em seu miolo; e a despojada “Midnight”, quando até arriscou uma interação com os presentes.
Frejat (e a triste polêmica no fim)
Quando prometeu celebrar seus mais de 40 anos de carreira em uma apresentação de “pouca conversa e muita música”, Frejat não estava para brincadeira. O vocalista e guitarrista tocou, ao longo de uma hora, uma sequência de hits que praticamente toda a plateia demonstrou conhecer. E quase tudo foi criado ou cocriado por ele: até mesmo “Ideologia”, gravada por Cazuza, e “Malandragem”, maior hit de Cássia Eller coescrita com seu parceiro cantor falecido em 1990. As exceções foram “Tente Outra Vez” (Raul Seixas), “Codinome Beija-Flor” e “Exagerado” (ambas de Cazuza).
O repertório trazido pelo carioca de 62 anos se dividiu em três momentos. A primeira etapa, na configuração tradicional de duas guitarras, trouxe quatro canções e teve a indomável abertura “Puro Êxtase” como destaque. A segunda, com o frontman no violão, reuniu em seis faixas todo tipo de balada: da emotiva e já citada “Codinome Beija-Flor” à pimpona “Amor Pra Recomeçar”. No meio dessa parte, o filho do artista, Rafael Frejat, se junta à afiada banda formada por Mauricio Almeida (guitarra), Bruno Migliari (baixo), Humberto Barros (teclados) e Marcelinho da Costa (bateria) para tocar guitarra — mais especificamente, uma Stratocaster vermelha que o faz ficar ainda mais parecido com o pai na juventude.
O trecho final, com três guitarras, sofreu com algumas confusões em relação a volume, mas reuniu o convincente combo “Bete Balanço”, “Por Que a Gente é Assim?”, “Maior Abandonado”, “Exagerado” (com intro de “Satisfaction”, dos Rolling Stones) e “Pro Dia Nascer Feliz”. Nesta última, o lamentável episódio citado no início do texto: após ter ultrapassado dois minutos do tempo previsto para seu show (deveria ter acabado às 20h30), Frejat e sua banda tiveram o som sumariamente cortado. Ouvia-se apenas um rastro de bateria e nada além.
A plateia reagiu em um misto de indignação e apoio ao artista, que, junto de seus colegas, continuou tocando — provavelmente o retorno dos fones continuou soando normal. Ou seja: se a ideia era ganhar tempo, não adiantou nada, pois com plateia escutando ou não, a canção foi executada até o fim. Nos segundos finais, deu até para ver alguns membros da equipe técnica expulsando os músicos do palco.
Não dá para negar: eventos desse porte contam com um rigoroso cronograma a ser seguido pontualmente. Todavia, se o próprio Lenny Kravitz atrasou 10 minutos para começar seu show, por que não deixar o artista anterior concluir uma música que já estava próxima do fim? Uma atitude tão extrema só se justificaria se Frejat tivesse puxado outra canção e se recusasse a sair, o que não foi o caso. Situação extremamente desrespeitosa e que não pode se repetir.
Lenny Kravitz (e sua epítome do rock’n roll)
Em meio aos presentes, a chateação com o desrespeito a Frejat pareceu ter se amenizado quando as caixas de som começaram a tocar a segunda parte de “Whole Lotta Love”, clássico do Led Zeppelin, uma das bandas favoritas da estrela da noite. Lenny Kravitz surgiu no palco logo em seguida com seu fiel escudeiro Craig Ross (guitarra), Honoch “The Wolf” Choi (baixo e teclados) e Jas Kayser (bateria), esta com uma bela camiseta do Kiss na era “Love Gun” (1977) para executar “Bring It On”, e não “Are You Gonna Go My Way?”, como em vários shows recentes da turnê do álbum “Blue Electric Light” (2024).
Conforme o desenrolar do set, apareceriam os demais músicos — George Laks (teclados), Amiri Taylor (backing vocals e violão), Rahiem Taylor (backing vocals), “Big Daddy” Harold Todd (saxofone tenor), Cameron Johnson (trompete) e Michael Sherman (saxofone barítono) —, mas aquele começo precisava ser em guitarra, baixo e bateria. E depois de um começo inesperado, nada como a ligeiramente atmosférica “Minister of Rock ‘n Roll”, citada no primeiro parágrafo deste texto, para recolocar tudo nos eixos em termos de previsibilidade.
Já de cara, nota-se que o frontman e sua banda executam tudo de forma tão perfeita que parece até playback. Não é (só os backing vocals em coro pré-gravados). O perfeccionismo de Lenny, que faz questão de gravar seus álbuns praticamente sozinho e ainda os produzir, é tamanho a ponto de todos tocarem exatamente como nos discos, reproduzindo fielmente as timbragens originais. Nada de atalhos. Isso vale para o astro da noite, que, no alto de seus 60 anos de idade, surpreende ao soar como se tivesse 25.
A dançante “TK421”, primeira das três canções do disco “Blue Electric Light” a serem tocadas na noite, tem uso forte de recurso visual — TVs são estampadas nos sete telões, sendo um de fundo, outros quatro em blocos laterais no palco e mais dois nos extremos — e um momento curioso ao fim: Kravitz simplesmente pega um baixo para fazer um solo. Por sua vez, o rockão simples de refrão grudento “I’m a Believer” antecede o diálogo mais longo da noite. Com direito a dizer em português “boa noite” e “fazendeiro” e a pedir orações para o Todo Poderoso, o religioso — a ponto de praticar celibato há 9 anos — músico diz:
“Faz muito tempo [desde a última visita em 2019]. Tudo bem se eu falar em inglês? Quero me expressar de verdade pra vocês. Estamos muito gratos por estarmos com vocês em São Paulo. O Brasil significa muito para mim. Vim pela primeira vez muitos anos atrás e me apaixonei pelo país, pelas pessoas, pela música, pela arte, pela natureza. [Em português:] ‘Eu te amo’. Amei tanto aqui que me tornei um [em português] ‘fazendeiro’. O Brasil é um lugar que chamo de lar. essa noite é uma celebração da vida e do amor. Estamos aqui nessa noite juntos para amplificar o amor em um mundo que precisa muito disso. Vamos começar orando para o Todo Poderoso [aponta para cima].”
Curioso é que a oração vem ao som de “I Belong to You”, uma canção de amor levemente sensual. O clima de balada permanece com “Stillness of Heart”, estendida até demais pela busca por interação com a plateia. Lenny até desce para a grade que separa a pista premium do palco, sendo prontamente agarrado quando chega perto dos fãs.
A partir daqui, porém, a atenção do público começa a se dispersar, visto que Kravitz emenda faixas que não são exatamente hits e composições mais recentes:
- “Believe”, com solo excelente de Craig Ross;
- “Human”, outro número dançante do novo álbum com uso do trio de metais;
- “Low”, tocada enquanto telões exibiam uma gravação de Lenny sem camisa (focando no tanquinho);
- “Paralyzed”, cadenciada composição também do disco mais recente;
- a deliciosamente funky “The Chamber”, oriunda do bom álbum “Strut” (2014);
- e “Fear”, de seu álbum de estreia “Let Love Rule” (1989), estendida para agregar solos que vão de órgão a sax tenor.
Teria sido uma decisão mais acertada se este miolo do set se misturasse com a chuva de hits que viria na sequência. Os açucarados mega-hits “It Ain’t Over ‘Til It’s Over”, que ganhou versão célebre do Só Pra Contrariar, e “Again” antecederam as agitadas e também populares “Always on the Run”, “American Woman” (The Guess Who), “Fly Away” e, encerrando o set “regulamentar”, a já citada “Are You Gonna Go My Way?”. Chuva de celulares para o alto em todas essas, com justiça, já que representaram os melhores momentos da noite.
Depois de tanto rock’n roll, é hora de orar. Única escolhida para o bis, “Let Love Rule” não fala exatamente de religião, mas a iluminação simplória — ainda mais após o espetáculo visual que se viu nas duas horas anteriores —, a dispensa dos telões e a disposição dos músicos no palco remeteram a uma apresentação em igreja. Antes mesmo de seu início, centenas de fãs deixaram o Allianz, seja por desconhecimento ou desinteresse pelo que ainda viria.
Talvez até nisso colaborasse a melhor distribuição dos maiores hits do repertório. Fica difícil manter a atenção dos presentes após a injeção de adrenalina oferecida no terço final do set pré-bis. Um ponto que nem o exacerbado perfeccionismo de Lenny Kravitz conseguiria pegar — e mais uma prova de que a perfeição, ainda bem, não existe. Ainda assim, grande show.
*Esta cobertura contou apenas com fotos de celular devido à negativa de credenciamento ao profissional de fotografia do site IgorMiranda.com.br.
Lenny Kravitz — ao vivo em São Paulo
- Local: Allianz Parque
- Data: 23 de novembro de 2024
- Turnê: Blue Electric Light
- Produção: 30e / Mercury Concerts
Repertório:
- Bring It On
- Minister of Rock ‘n Roll
- TK421
- I’m a Believer
- I Belong to You
- Stillness of Heart
- Believe
- Human
- Low
- Paralyzed
- The Chamber
- Fear
- It Ain’t Over ‘Til It’s Over
- Again
- Always on the Run
- American Woman (cover do The Guess Who)
- Fly Away
- Are You Gonna Go My Way
Bis:
- Let Love Rule
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