Poucos minutos após o final do show de Jerry Cantrell, desabou uma chuva daquelas nas proximidades da Audio, casa de eventos que o recebeu em São Paulo na última terça-feira (12). Um final adequado após uma apresentação que levou o público espiritualmente à úmida Seattle.
Engana-se, no entanto, quem pensar que o líder do Alice in Chains usou sua estreia em carreira solo no Brasil apenas como uma desculpa para cair na estrada com pessoas diferentes tocando as mesmas coisas.
Se alguém comprou o ingresso esperando um setlist recheado de faixas do trabalho principal do guitarrista, pode ter se decepcionado com o show de uma hora e 45 minutos.
Não foi o caso, porém, da maioria das pessoas que praticamente encheram o espaço com capacidade aproximada de 3 mil pessoas na zona oeste paulistana. Mesmo num calendário lotado com artistas se apresentando todo dia em São Paulo no embalo de festivais em outros países da América Latina.
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E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante
Antes do guitarrista do Alice in Chains, porém, a banda paulista E Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante teve a chance de mostrar seu post-rock instrumental ao bom público que já havia chegado por volta das 19h30 e se aglomerava no terço da pista mais próximo ao palco.
Não é como se os fãs de Jerry Cantrell ali presentes fossem profundos admiradores do grupo nacional. Sua sonoridade tensa de melodias etéreas, porém, soava menos deslocada do que as músicas do Whitesnake e Bon Jovi, tocadas pelo sistema de som antes do quarteto subir ao palco para seus quase quarenta minutos de apresentação.
Após o lançamento do EP “Linguagem”, em novembro do ano passado — do qual as duas faixas iniciais, “Ausente” e “Bruce Willis” deram o pontapé em sua apresentação, assim como na abertura para o Russian Circles, no último mês de abril —, o grupo parecia se preparar para uma atividade mais constante. Não foi o caso, como o guitarrista e tecladista (e às vezes baixista) Lucas Theodoro deu a entender ao dizer que fazia tempo desde o último show da banda em São Paulo.
Theodoro segue como o membro mais extrovertido no palco de uma banda com sonoridade totalmente introspectiva, praticamente se deixando carregar pelas emoções das músicas. O guitarrista Luden Viana, do outro lado, é mais “contemplador de sapatos” ao executar suas melodias, mas assumiu publicamente não ser a atração principal da noite. Gabriel Arbex seguiu substituindo o expatriado Luccas Villela no baixo, enquanto Rafael Jonke ditou o ritmo na bateria.
Ao final, com a catártica “PMR” — dedicada a uma amiga dos músicos recém-falecida —, e Theodoro jogando sua guitarra para longe, E A Terra Nunca me Pareceu Tão Distante deixou uma boa impressão no público presente.
O sistema som da casa então passou a tocar uma playlist mais focada em metal clássico. Quanto “Walk” do Pantera foi executada cinco minutos antes do horário programado para Jerry Cantrell subir ao palco, a reação do público já indicava que as pessoas estavam saudosistas dos anos 90.
Repertório — E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante:
- Ausente
- Bruce Willis
- Pequenas Expectativas, Grandes Decepções
- Como Aquilo que Não Se Repete
- Medo de Tentar
- Medo de Morrer
- PMR
Jerry Cantrell: solo, mas não ao acaso
Nos últimos anos, o Alice in Chains tornou-se daquelas bandas obrigadas a engessar o repertório com base na discografia clássica. Há pouco espaço para novidades, com discos novos representados de forma refratária nos shows recheados de hinos do grunge noventista, que seguem atraindo novas gerações de fãs — como provou o público de idade e gênero bem variados na Audio.
Jerry Cantrell, assim, usou a turnê de sua carreira solo para se apresentar executando músicas diferentes, com maior liberdade para testar na estrada suas novas composições.
No entanto, não é como se o guitarrista tivesse desenvolvido um caso de múltiplas personalidades artísticas. As composições de seus quatro discos solo não fogem tanto à sonoridade que o consagrou. Até porque, no caso de seus dois primeiros trabalhos, o Alice in Chains praticamente inexistia enquanto Layne Staley sucumbia a seu vício em heroína.
“Psychotic Break”, do disco “Degradation Trip”, lançado meses após a morte do vocalista original de sua banda principal em 2002, traduziu bem a situação de Cantrell à época: “contabilizando meus amigos mortos e entes queridos que há muito se foram”. E iniciou a apresentação da terça-feira precisamente às 21h de forma bem soturna e morosa. Não soaria deslocada num show do Alice in Chains. Ou até do Black Sabbath.
Para temperar essa atmosfera quase de “deep cuts” de sua banda principal, Cantrell já tirou da manga “Them Bones” logo como a segunda da noite. Se havia algum risco de ter um público mais contemplativo na Audio, ele foi eliminado sem dó pela gritaria desenfreada dos fãs à faixa do clássico “Dirt” (1992).
Zach Throne fez um bom trabalho na reprodução das partes de Layne Staley, que na turnê norte-americana eram feitas por Greg Puciato — vocalista por quase vinte anos da banda seminal de djent The Dillinger Escape Plan e atualmente em turnê com o Better Lovers. Mesmo se o competente guitarrista as cantasse mal, nem daria para perceber: o público as gritava de forma quase ensurdecedora.
Até porque Cantrell escolheu a dedo apenas os maiores e mais animados hits do Alice in Chains durante a quase hora e meia da etapa convencional do repertório. Depois de “Them Bones”, os fãs teriam que aguardar por mais cinquenta minutos até “Man in the Box”, de “Facelift” (1990), colocar a Audio abaixo. Antes de chegar ao bis, apenas “Would?”, trilha sonora do filme “Singles – Vida de Solteiro” (1992) e incluída em “Dirt”, ainda seria executada de seu trabalho principal.
Trabalho e banda solo consistentes
Felizmente, isso não significou que o público ficou dormente durante a execução das músicas solo de Cantrell. As canções de seu mais recente álbum, “I Want Blood”, lançado há poucas semanas, foram bem recebidas. A faixa-título, com sua levada cadenciada em um hard rock pesado, pôs o povo pra pular. Já “Afterglow” teve reação similar à de um single de qualquer dos dois últimos álbuns do Alice in Chains. O pessoal tinha feito a lição de casa.
Os músicos também. Apesar de os quatro discos de Jerry Cantrell possuírem lineups bem distintos com artistas consagrados, a banda solo do líder do Alice in Chains estava bem afiada. Nunca ninguém ameaçou o protagonismo do chefe no palco, mas Throne duelava em riffs e solos, além dos duetos vocais, como se fosse seu trabalho fixo.
No baixo, Eliot Lorango era mais discreto — somente a tecladista Lola Colette aparecia menos, restrita quase o show inteiro ao seu instrumento ao lado da bateria lá no fundão, apenas à frente do pano de fundo com o nome do dono da festa.
O experiente Roy Mayorga, com passagens em bandas tão diversas quanto Soulfly, Ministry e Amebix, chamou a atenção em sua bateria logo atrás de Cantrell. Sólido na maior parte do tempo, ele teve seu protagonismo em momentos específicos, como nas inventivas levadas rítmicas de “Atone”, de “Brighten”, penúltimo álbum do guitarrista, lançado em 2021.
Jerry Cantrell, mas ainda Alice in Chains
Apesar de desfrutar de uma liberdade artística maior em seus dois trabalhos mais recentes, são poucas as faixas talvez não se encaixem num show do Alice in Chains. A bonita “Siren Song”, de “Brighten” (2021), ou até mesmo a deliciosa e hardzinha “Angel Eyes”, do tenso “Degradation Trip”, servem de exemplo.
As duas canções do primeiro disco de Cantrell, “Boggy Depot” (1998), porém, são praticamente faixas que o guitarrista não pôde lançar como Alice in Chains. Até os músicos eram praticamente os mesmos: Sean Kinney tocou bateria no álbum todo e Mike Inez fez uma parte das linhas de baixo.
Não à toa, a cadência semi-acústica de “Cut You In”, muito mais pesada nesta noite na Audio, teve seu refrão cantado pelo público quase como se fosse um single da banda principal. Cantrell sofreu para afinar seu instrumento para “My Song” — gravada originalmente com Rex Brown do Pantera —, na sequência, baixar um pouco os ânimos com sua levada mais introspectiva e serena.
Se o show começou com a pegada soturna de “Psychotic Break”, o final da parte regulamentar conseguiu ser ainda mais denso e sombrio com a arrastada “It Comes”, do disco solo mais recente de Cantrell. Um doomzão daqueles, executado logo depois dos ânimos exaltados em “Would?”, só poderia ser acompanhado de forma mais contemplativa.
“Olê olê olê, jé-rrê, jé-rrê”
O hardzão meio setentista de “Brighten” já animou todo mundo de novo após os poucos minutos de espera pelo bis, sob os coros de “Olê olê olê, jé-rrê, jé-rrê”. Ninguém esperava, porém, que Jerry Cantrell mandasse o tenso riff de “Sea of Sorrow” na sequência. A pesadíssima música de “Facelift”, executada apenas em São Paulo na curtíssima turnê sul-americana encerra nessa noite, teve reação quase tão forte quanto os grandes hits do Alice in Chains.
A inevitável “Rooster”, faixa personalíssima para o guitarrista — com letra inspirada na experiência de seu pai na guerra do Vietnã —, encerrou a noite na Audio. No único momento no qual Lola Colette empunhou um violão e foi à frente do palco, o destaque foi mesmo a cantoria do público, acompanhando todas as nuances vocais do icônico single de “Dirt”, do início quase sussurrado ao refrão gritado. Ao terminá-la, Cantrell se despediu depois de quase uma hora e quarenta e cinco minutos de apresentação dizendo não querer voltar para casa.
Certamente, ninguém ali na Áudio reclamaria se ele emendasse mais umas duas músicas à chuva que desabou na zona oeste paulistana alguns minutos depois. De fato, a noite não poderia ter outro final.
Jerry Cantrell — ao vivo em São Paulo
- Local: Audio
- Data: 12 de novembro de 2024
- Turnê: I Want Blood
- Produção: 30e
Repertório:
- Psychotic Break
- Them Bones (Alice in Chains)
- Vilified
- Off the Rails
- Atone
- Angel Eyes
- Siren Song
- Had to Know
- Afterglow
- I Want Blood
- Man in the Box (Alice in Chains)
- Cut You In
- My Song
- Held Your Tongue
- Would? (Alice in Chains)
- It Comes
Bis: - Brighten
- Sea of Sorrow (Alice in Chains)
- Rooster (Alice in Chains)
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