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Quando o Kiss experimentou com a disco music em “Dynasty”

Pressão da indústria musical e conflitos internos moldaram controverso álbum; hit não livrou embaraçosa turnê do clima de tensão

No final dos anos 1970, com o Kiss detentor do tipo de sucesso mundial equiparado por apenas alguns poucos grupos na história do rock, tensões internas começaram a ameaçar sua existência. Em 1979, a banda — formada por Gene Simmons (voz e baixo), Paul Stanley (voz e guitarra), Peter Criss (bateria e voz) e Ace Frehley (guitarra e voz) — não era mais uma unidade coesa.

Pouco depois da campanha dos discos solo no final de 1978, os quatro se reuniram para começar a trabalhar em seu primeiro álbum de estúdio totalmente inédito desde “Love Gun” (1977). Com a América dominada pela disco music na época, a banda decidiu, sob sugestão da gravadora Casablanca Records e de seu empresário, Bill Aucoin, adicionar um toque dançante ao seu som

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Na biografia “Kiss: Por Trás da Máscara” (Companhia Editora Nacional, 2006), Paul conta:

“Bill achou que deveríamos atrair uma plateia mais ampla. A primeira pergunta é ‘por quê?’, mas essa questão nunca foi respondida.”

Apesar disso, o single de estreia — “I Was Made for Lovin’ You” — se tornou o mais popular do grupo até então. Contudo, seu sucesso não impediu a banda de rachar ainda mais, no fim das contas.

Esta é a história de “Dynasty”.

O fim de uma era

Quando o Kiss entrou nos Electric Lady Studios em janeiro de 1979 com o produtor Vini Poncia, ficou evidente que as habilidades de Peter Criss na bateria e sua atitude geral em relação à banda haviam piorado severamente.

Pouco depois de ele gravar suas partes para “Dirty Livin’”, ele foi convidado a se afastar da banda. Gene Simmons lembra na autobiografia “Por Trás da Maquiagem” (Belas Letras, 2021):

“Vini decidiu que, apesar de ter sido o produtor do disco solo do Peter, não o considerava um baterista bom o suficiente para o Kiss. Ele afirmou que Peter não estava qualificado para fazer qualquer julgamento sobre o material ou os arranjos. Ele acreditava que Peter não entendia muito bem as notas musicais e não tocava bateria bem o suficiente.”

O próprio Peter admite em “Makeup to Breakup” (Editora Lafonte, 2013) que quase não contribuiu para a produção do álbum “Dynasty”.

“‘Dirty Livin’’ foi a única faixa em que toquei bateria. Eles contrataram Anton Fig para tocar no resto do álbum, mas não me senti traído. Fiquei feliz por eles o terem contratado. Na realidade, não queria mais tocar com eles.”

Nascido em 8 de agosto de 1952, o sul-africano Anton Fig havia trabalhado no disco solo de Ace Frehley. Paul relembra em “Uma Vida Sem Máscaras” (Belas Letras, 2015) que, além disso, o baterista havia sido membro de uma banda chamada Spider, agenciada, assim como o Kiss, por Bill.

“Mais tarde, ele tocaria na banda do programa de David Letterman. Fizemos um acordo: Anton seria bem pago, mas não estávamos pagando pelo sigilo. Circulavam rumores de que Peter não estava no álbum, mas nunca sentimos a necessidade de responder a isso. Não pensávamos em realmente demitir Peter, pelo menos não ainda.”

Em “Não Me Arrependo” (Belas Letras, 2020), Ace complementa:

“Na época, eu queria acreditar que a ausência dele seria apenas temporária. Mas acabou sendo permanente.”

Com Peter fora da jogada, a gravação de “Dynasty” prosseguiu com uma aura turva. O guitarrista atribui isso ao processo de produção, que começou a mudar.

“Quase não havia colaboração entre os membros da banda. Cada um de nós entrou no estúdio por conta própria para gravar demos que mais tarde apresentamos um ao outro e ao produtor, Vini Poncia. Esse processo criou uma luta de poder dentro da banda, já que várias músicas teriam que ser rejeitadas.”

A criação de um hit

Durante as sessões no Electric Lady, Paul estabeleceu como meta criar um single de sucesso. Com a ajuda certa, ele conseguiu.

Entre as pessoas com quem ele havia colaborado em seu disco solo, estava um grupo de três mulheres e um homem chamado Desmond Child & Rouge, responsável pelos backing vocals na faixa “Move On”.

“O som deles era formidável e ficamos amigos”, conta Paul, que começou a compor junto com Desmond pouco depois de conhecê-lo. “Eu levava meu violão para o apartamento dele, enquanto ele cantava ou tocava teclado para acompanhar”.

A primeira música que Paul e Desmond escreveram juntos foi “The Fight”, que acabou sendo incluída no álbum de estreia homônimo do Desmond Child & Rouge em 1978. Então, no início de 1979, a dupla começou a trabalhar em outra.

Era uma noite em que Paul estava no Studio 54, a famosa casa noturna de Nova York, ou, como ele descreve, “um antro de perdição”.

“A disco music estava no auge. Eu me vi indo lá para conferir toda a agitação e barulho (…) O que percebi foi que todas as músicas tinham exatamente a mesma quantidade de batidas por minuto. Dessa forma, elas poderiam se sobrepor de uma música para outra sem parar. E o número mágico era 126, cento e vinte e seis batidas por minuto. Então, foi meio que uma brincadeira ou desafio: a ideia de ouvir algo e dizer: ‘Eu posso fazer isso’ ou ‘Posso fazer isso?’. E com isso em mente, percebi que a primeira linha da música começaria com ‘Tonight’. Porque quando você estava naquela boate, esta noite era tudo que importava.”

Desmond, que nos anos 1980 e 1990 ficaria conhecido como um “hitmaker”, ajudou Paul nos versos e o produtor Vini Poncia contribuiu com o refrão. Segundo Gene, a música, chamada “I Was Made for Lovin’ You”, atendeu às expectativas da gravadora.

“A Casablanca já estava sugerindo que queria um hit há algum tempo. Paul aceitou o desafio, e eu fui um pouco contra, mas não tinha nenhum princípio moral me impedindo (…) ‘I Was Made for Lovin’ You’ tinha uma melodia cativante e um ritmo pulsante. Eu não vi nada de especial nela. Paul sabia que seria um sucesso.”

Na opinião de Peter, qualquer credibilidade que o Kiss ainda tivesse foi por água abaixo quando gravou a canção. Ace ficou igualmente irritado. De acordo com o baterista, ele lhe perguntou: “O que é essa porcaria? Éramos uma banda de rock. Por que agora nos tornamos uma banda de disco music?”.

Paul admite que “I Was Made for Lovin’ You” é de fato uma música feita seguindo uma fórmula.

“Foi assim: ‘Vamos usar tudo dos discos de dança, vamos utilizar todos os efeitos sonoros’. Foi como se estivéssemos tentando provar a nós mesmos que não era tão difícil fazer sucesso se estiver disposto a realmente analisar algo e dissecá-lo (…) [No fim das contas,] foi uma grande música, que fez sucesso no mundo todo.”

As contribuições musicais em “Dynasty”

Além de “I Was Made for Lovin’ You”, são de Paul também o single “Sure Know Something”, na qual, segundo Poncia, ele “demonstra um pouco da influência de Rod Stewart”, e “Magic Touch”.

Pela primeira vez na história, Ace cantou mais músicas em um álbum do Kiss do que Gene. Foram elas “Hard Times” — cuja letra fala sobre seus dias de estudante do colegial no Bronx, bairro barra-pesada de Nova York —, “Save Your Love” e um cover de “2,000 Man”, dos Rolling Stones. O guitarrista conta que foi o título desta que originalmente chamou sua atenção.

“E, com uma grande revisão e um pequeno rearranjo, eu a tornei algo especial. Sempre amei os Stones, e ‘Their Satanic Majesties Request’ (1967) é um disco brilhante. Pelo que me lembro, era a resposta deles para o lançamento de ‘Sgt. Pepper’s’ (1966), dos Beatles. Vini adorou a ideia para o remake de ‘2,000 Man’, e ela se tornou uma das faixas principais do álbum.”

Notavelmente ausentes deste álbum, os talentos de compositor de Gene estão presentes apenas na tenebrosa “Charisma” — que tem no riff principal derivado do de “Black Diamond” sua tábua de salvação — e na irresistível “X-Ray Eyes”.

Diamantes, elevadores e controvérsias

“Dynasty” foi lançado em 23 de maio de 1979. O álbum atingiu o 7º lugar nas paradas, enquanto “I Was Made for Lovin’ You” explodia no mundo e se tornava o single mais popular do Kiss até então, superando “Beth” de “Destroyer” (1976).

Embora a música tenha causado um impacto sem precedentes, os fãs mais ardorosos torceram o nariz. Não obstante esse desapontamento, “Dynasty” recebeu disco de platina duplo pelas mais de dois milhões de cópias vendidas somente nos Estados Unidos enquanto os ensaios para a próxima turnê do Kiss estavam em andamento.

Em junho, a turnê “Dynasty” decolou com muita expectativa; era a primeira vez que o Kiss caía na estrada em mais de um ano. Ciente das fissuras internas, Gene queria que o espetáculo compensasse o que começava a faltar ao Kiss em precisão musical. Ele conta:

“Aumentamos o palco, seguindo um design que o Paul criou. Tínhamos elevadores que nos faziam surgir no meio do palco — algo que todo mundo imitou depois, de Michael Jackson a Jon Bon Jovi. Também criamos um sistema de iluminação que parecia ter saído do filme ‘Contatos Imediatos de Terceiro Grau’. Ele subia e descia. A bateria levitava ainda mais alto. A parte frontal do palco se desligava do restante e levantava a banda sobre a plateia.”

Foi “horrível”, recorda-se Paul.

“Na turnê de ‘Dynasty’, vestimos fantasias ridículas, como se fôssemos personagens da Disney saltitando por aí com roupas coloridas (…) Eu tinha um sobretudo lavanda com diversas camadas. Acho que pensaram que o visual com a estrela preta e prateada que sempre utilizara era extremo demais, então deveríamos acrescentar uma cor individual para cada membro da banda, tendo como base a cor da aura da capa de nossos álbuns solo.”

Num raro lampejo de concordância, Peter assina embaixo:

“Éramos uma caricatura de nós mesmos. Tínhamos novos figurinos, ornados com imitações de diamante. (…) Viramos uma coisa totalmente Las Vegas. Eu parecia um trapezista com meu novo traje.”

Dramas internos em plena turnê

Não bastassem os figurinos embaraçosos, os problemas com Peter Criss que começaram no estúdio agora se estendiam para os shows; ele não conseguia acompanhar o ritmo das músicas e sabotava regularmente seus vocais em “Beth”.

Em certa altura da turnê, ele e Ace Frehley trocaram socos no camarim; foi a única vez que uma discussão no Kiss chegou às vias de fato. Gene Simmons garante que “os dois choraram e se abraçaram em seguida”.

Paul Stanley conta que não era raro que Criss jogasse suas baquetas nele, em Gene ou em Ace se passassem na frente do elevado da bateria. Em uma situação, o músico foi longe demais.

“Houve uma noite próxima ao fim da turnê em que Peter tinha usado muitas drogas e estava tocando especialmente mal. Quando me virei durante uma canção para avisá-lo de que o tempo estava muito frenético, sua reação foi começar a retardar as músicas e acelerá-las novamente, aparentemente de propósito. Aquilo era ir longe demais. Uma coisa é sabotar o trabalho nos bastidores — e Deus bem sabe que ele fazia muito isso. Mas aquilo era diferente. Era na frente dos fãs, pessoas que haviam pagado para nos ver.”

Com a turnê mais próxima de ser concluída — e as plateias minguando a cada data que passava —, ficou óbvio para Gene, Paul e Ace que algo teria que ser feito sobre o comportamento de Peter. O Starchild destaca:

“Decidimos que o queríamos fora. Ace pode dizer o que bem entender agora, mas votou a favor da demissão de Peter sem qualquer tipo de pressão ou coerção (…) Quanto ao meu voto, não achei que demitir Peter fosse um ato frio ou calculista. Era apenas uma questão de sobrevivência. Eu deixaria que os problemas dele afundassem a banda inteira comigo junto? Nem pensar. Gene também pensava assim.”

Coube a Bill apaziguar a situação. Restavam apenas mais alguns shows a cumprir.

Peter é o primeiro a admitir que tocou muito mal naquela turnê. Mas justifica:

“Eu toco a partir do coração. Se não consigo levantar aquelas baquetas e tocar com sentimento, então não sou capaz de tocar para você. Na ocasião, não tinha nenhum sentimento; estava muito anestesiado pela cocaína. No entanto, mesmo se eu não estivesse doidão, ainda assim não iria querer mais me envolver com eles, e minha interpretação teria sofrido.”

Perspectivas sobre “Dynasty”

Olhando em retrospecto, Paul admite que, com Vini no comando, “Dynasty” não foi de fato um álbum de rock. Mas ele salienta que o Kiss já não era de fato uma banda de rock. “O espectro do que julgávamos musicalmente aceitável se expandiu com o tempo”, escreve ele.

Gene, por sua vez, acha que tanto ele quanto o sucessor, “Unmasked” (1980), foram equivocados.

“Perdemos nossa essência (…) Era uma banda com guitarra e de repente começaram a aparecer sintetizadores no disco (…) Mudanças de rumo são interessantes, mas não devem acontecer o tempo todo (…) Por exemplo, ‘I Was Made for Lovin’ You’ foi um sucesso esmagador no mundo todo, mas não era Kiss. Não tinha nada a ver com nossos corações ou nossas almas. Às vezes, fazemos algo do tipo só para provar às pessoas que podemos fazê-lo.”

Ace revela ter sentimentos confusos em relação a algumas das músicas. Ainda assim, acha que “Dynasty” é um dos melhores discos do Kiss, “com muito rock”.

Dentre os envolvidos diretamente, somente para o produtor Vini Poncia, “Dynasty” foi “um grande álbum”.

“A ideia geral era mostrar ao meio musical que esta banda era capaz de compor músicas e fazer um álbum melhor do que o anterior. Não que ‘Sure Know Something’ fosse melhor que ‘Detroit Rock City’, mas naquela época essas músicas eram consideradas menores do ponto de vista de composição musical (…) Todos nos divertimos muito fazendo o disco (…) Ele veio do coração.”

Kiss – “Dynasty”

  • Lançado em 23 de maio de 1979 pela Casablanca Records
  • Produzido por Vini Poncia

Faixas:

  1. I Was Made for Lovin’ You
  2. 2,000 Man
  3. Sure Know Something
  4. Dirty Livin’
  5. Charisma
  6. Magic Touch
  7. Hard Times
  8. X-Ray Eyes
  9. Save Your Love

Músicos:

  • Paul Stanley (vocais e guitarra base; guitarra solo em “Sure Know Something” e “Magic Touch”; baixo em “I Was Made for Lovin’ You” e “Magic Touch”)
  • Gene Simmons (vocais e baixo; guitarra base em “X-Ray Eyes”)
  • Ace Frehley (vocais e guitarra solo; guitarra base e baixo em “2,000 Man”, “Hard Times” e “Save Your Love”)
  • Peter Criss (vocais e bateria em “Dirty Livin’”)

Músicos adicionais:

  • Anton Fig (bateria)
  • Vini Poncia (teclados, percussão e backing vocals)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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