Em setembro de 2015, fui ao Rock in Rio pela primeira vez. A expectativa maior era pelo Mötley Crüe, que se apresentaria antes do headliner Metallica, mas havia uma banda antes de ambos no Palco Mundo que despertava minha curiosidade. Era o Royal Blood, que lançara, treze meses antes, meu álbum favorito de 2014 e estava ali para fazer sua estreia em solo brasileiro.
Praticamente ninguém com quem conversei durante o evento parecia conhecer o duo inglês formado por Mike Kerr (voz e baixo) e Ben Thatcher (bateria). Afinal, o trabalho deles era relativamente recente e não muito divulgado no país. Então, assumi a função de fã pentelho e recomendei que todos ficassem atentos àquele grupo, que poderia roubar as atenções dos headliners — ambos em relativa decadência técnica, embora o Metallica tenha recuperado o alto nível de performance nos anos seguintes.
Não deu outra: todos com quem pude trocar ideia gostaram daquela dupla que, ok, tinha até alguma influência alternativa, mas fazia um som pesado, guiado por riffs e refrães fortes. Ainda assim — e embora Kerr admita que aquela plateia tenha sido a maior para a qual tocou até hoje —, o show não foi dos mais agitados. Obviamente, a reação do público era mais de conferir atentamente a músicas que acabavam de conhecer do que cantar junto, pular ou bater cabeça.
Quase nove anos depois, o cenário é diferente. O Royal Blood veio ao Brasil pela terceira vez, sendo a primeira somente para performances fora de festivais. Vale lembrar que a segunda visita, em 2018, envolveu um show no Lollapalooza, outro abrindo para o Pearl Jam no Maracanã e um sideshow intimista no Cine Joia, em São Paulo. Na ocasião atual — que contemplou uma apresentação na Audio no último sábado (13) e contará com outra no Circo Voador, Rio de Janeiro, nesta terça-feira (16) —, o duo toca apenas para seu próprio público. Somente convertidos.
E que convertidos. Responsável por deixar a Audio bem cheia, a plateia fez a diferença. Claro que Kerr e Thatcher — apoiados pelo tecladista de turnês Darren James — cumpriram a parte deles, com uma execução primorosa de um repertório bem escolhido que praticamente não permitia respiros. No entanto, o público jogou junto do início ao fim: cantaram não apenas a maior parte das letras, como também os riffs; realizaram rodas (mais tímidas do que as vistas em shows de metal, é verdade, mas elas existiram); gritaram em coro o nome da banda sempre ao surgir um intervalo mais longo do que três segundos; entre outras demonstrações de forte apreço.
Pontualidade britânica, reação sul-americana
Mike Kerr e Ben Thatcher subiram ao palco pontualmente às 21h. Dois minutos antes, o som da casa executou o prelúdio da Suíte nº 1 para Violoncelo, de Johann Sebastian Bach. Quase uma ironia em relação ao barulho que viria nos 85 minutos seguintes.
A dinâmica entre as duas músicas de abertura, “Boilermaker” e “Out of the Black”, serviu como resumo do que viria na sequência: uma alternância bem dosada entre momentos dançantes e pesados ao longo do set, sem blá-blá-blá ou enrolação. O groove irresistível da primeira tirou a poeira dos quadris de muita gente, enquanto a segunda promoveu bate-cabeça e contou com uma roda inaugural ao som do baixo grosseiro e carregado de Kerr, único responsável por dar sustentação melódica às canções. Perto do fim desta, Thatcher levantou e se encaminhou lentamente para a frente da plateia. Atirou baqueta, desceu na galera, pegou uma bandeira do Brasil… sentiu de perto o calor do público local, que cantava tão alto a ponto de encobrir a voz de Mike.
“Car@lho, é muito bom estar de volta”, proclamou o frontman antes de emendar “Mountains at Midnight”, primeira da noite a vir do álbum recente, o mediano “Back to the Water Below” (2023). A boa notícia é que todas as faixas do disco tocadas na noite — esta, a cadenciada “Shiner in the Dark”, a dançante “Supermodel Avalanches” e a balada ao piano “Pull Me Through” — soaram melhores ao vivo e foram recebidas pela plateia como se já fossem clássicas: canto em voz alta, rodas, palmas, mãos para o alto e tudo o mais.
Como esperado, no entanto, o bicho pegou mesmo nas mais famosas. Presente no álbum de estreia homônimo de 2014 e na trilha sonora da ótima série “Peaky Blinders”, “Come on Over” soou tão insana quanto as brigas da família Shelby. Do mesmo disco vieram peças como “Little Monster” e “Loose Change”, guiadas por riffs dignos de se deixar Tony Iommi (Black Sabbath) com orgulho. “Lights Out”, única do álbum “How Did We Get So Dark?” (2017) além da faixa-título a marcar presença, ganhou ares quase cinematográficos no momento em que uma forte iluminação vermelha banhou os músicos durante o “solo”. Como em “Boilermaker”, a dobradinha dançante “Trouble’s Coming” e “Typhoons” voltou a trazer o que há de melhor no LP batizado com o nome da segunda canção citada e lançado em 2021.
…Mas já vai?
O repertório se mostrou efetivo até mesmo nas escolhas das músicas menos conhecidas. As envolventes “You Can Be So Cruel” e “Ten Tonne Skeleton”, pérolas do disco de 2014 tocadas pela primeira vez pelo duo neste ano, e “One Trick Pony”, excelente lado B que — sabe-se lá o porquê — sequer chegou a ser incluída neste trabalho, mantiveram o nível de empolgação em alto patamar. Com a execução das duas primeiras citadas, o álbum homônimo foi tocado quase todo na íntegra: oito de suas dez canções apareceram no setlist de São Paulo, faltando apenas “Careless” e “Better Strangers”.
A capital paulistana também foi agraciada com o repertório mais longo da tour latino-americana até aqui: rolaram 18 canções ao todo, contra 17 de México e Argentina e 16 de Chile, Peru e Colômbia. Mas a sensação quando tocaram a derradeira “Figure It Out”, outra a fazer o público delirar e cantar até os riffs, é de que o Royal Blood poderia tocar mais. 85 minutos é pouco.
Dá para entender que o show seja curtinho. São apenas dois caras — às vezes acompanhados de um terceiro — fazendo som, na maioria das vezes de forma acelerada e intensa. Embora não tenha demonstrado cansaço, Mike Kerr acumula funções: canta, toca baixo, manipula um pedalboard e uma pedaleira imensos e, quando dá (até porque raramente é preciso), conduz a plateia. Deve acabar mentalmente exausto, mesmo com o apoio de Ben Thatcher, o baterista dos sonhos de qualquer banda: não dá uma batida em falso sequer. Até a postura é corretíssima, digna de aluno de conservatório.
Ainda assim, este foi, muito provavelmente, o único defeito do show. Ninguém reclamaria se incluíssem mais uns 15 minutos. Mas pode ser intencional, para deixar o tal gostinho de “quero mais”. É certo que ninguém saiu reclamando.
*Mais fotos e vídeos ao fim da página.
Royal Blood — ao vivo em São Paulo
- Local: Audio
- Data: 13 de abril de 2024
- Turnê: Audio
Repertório:
- Boilermaker
- Out of the Black
- Mountains at Midnight
- Come on Over
- You Can Be So Cruel
- Lights Out
- Shiner in the Dark
- Supermodel Avalanches
- Blood Hands
- Trouble’s Coming
- Typhoons
- Pull Me Through
- One Trick Pony
- Little Monster + solo de bateria
- How Did We Get So Dark?
- Loose Change
Bis:
- Ten Tonne Skeleton
- Figure It Out
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