Próximo ao final da apresentação do Vio-Lence, Sean Killian fez uma menção ao Carnaval brasileiro. Com a resposta opaca da empolgada plateia, extenuada após rodas de pogo incessantes pelo quarto show seguido, o vocalista deduziu que ninguém ali no Kool Metal Fest se importava com os festejos no feriadão. Definiu os presentes como “público de thrash metal de verdade”.
De folia mesmo, apenas a boa e amigável diversão violenta que tomou conta de um quente Carioca Club no último domingo (11), bem cheio de pessoas “fantasiadas” de preto — muitas já bêbadas e sem camisa quando Phil Demmel, numa noite de um autêntico guitar hero, encerrou emocionado sua trajetória com os headliners da noite, banda que fundou quase quarenta anos antes.
*Fotos de Gabriel Gonçalves @dgfotografia.show.
Santa Muerte, Cerberus Attack e Escalpo aquecem o público
A edição internacional de 2024 do Kool Metal Fest começou ainda à tarde, com a banda paulistana Santa Muerte subindo ao palco minutos após às 14h30 com “Scars of Guilty”, do EP “Psychollic” (2017). Apesar de mais de dez anos de estrada, o trio, capitaneado por Marilia Massaro (ex-Sinaya) nas guitarras e vocais, se apresentou para um Carioca Club esvaziado em que o ar condicionado ainda era um bálsamo em relação ao calor externo.
Alguns empolgados abriam rodas na pista para o thrash metal com alguma levada mais agressiva conduzida pela baterista Jhully Souza ao lado de Marcelo Araujo, guitarrista da banda seguinte e quebrando o galho no baixo. Entre um gole e outro de cerveja, o trio executou quase todo o citado EP, além de “Hipocrisia Never Ends”, single de 2019. Os vinte minutos da apresentação inicial pareceram apenas um aquecimento para o que ainda viria.
Repertório — Santa Muerte:
- Scars of Guilty
- Survive or Live
- Personal Hell
- Círculo de Sangre
- Cyco Pit
- Hipocrisia Never Ends
- Trap on Track
- Reactions
Com uma espera não tão grande — apesar de maior do que a apresentação da Santa Muerte —, Araujo retornou ao palco para fazer principalmente os solos do quarteto paulistano Cerberus Attack. Comandados por Jhon França (também do Blasthrash) nas guitarras e vocais, a banda da zona leste da cidade abriu seu set com a introdução apropriada “Straight Outta East Side” e desfilou seu thrash rápido e vigoroso por pouco mais de meia hora.
O Carioca Club começava a ficar mais cheio e quente. Também ficava mais claro que se formava um público mais afeito à velha guarda do metal. Assim, enquanto o Cerberus Attack executava faixas como “Fastest Way to Die”e “Duck Parade”, de seu trabalho mais recente, “Abyss of Lost Souls” (2021), a resposta da pista aumentava de intensidade.
Não havia ninguém na pista insatisfeito quando “Moshers” e “Harbinger of Decay”, com sua introdução introspectiva de baixo de Marcelo Maskote antes de descambar para pancadaria, encerraram a apresentação do entrosado quarteto com direito uma menção à clássica melodia de “Detroit Rock City” no final.
Repertório — Cerberus Attack:
- Straight Outta East Side
- Strategic Cut On Education
- Mithify Yourself
- Fastest Way to Die
- Third World Kids
- Duck Parade
- Moshers
- Harbinger of Decay
Diferentemente do público tradicional do Kool Metal Fest, mais cabeça aberta a várias tendências mais undergrounds da música pesada, a maior parte de quem compareceu no domingo ao festival era fã de thrash metal da velha guarda e esperava mesmo era pelo Vio-Lence. Assim, quando Escalpo subiu ao palco com uma pegada que misturava death metal com uma levada meio hardcore d-beat, as reações não foram das mais intensas.
Longe de dizer que o quinteto de Rio Claro, interior de São Paulo, tenha sido uma decepção. Houve rodas, claro, mas boa parte da pista mais acompanhava o som do grupo, cujo vocalista Neri Orleone anunciou que deve partir em breve para excursionar pela Europa.
A apresentação de vinte e cinco minutos do Escalpo, iniciada com “Onda de Estupidez”, focou-se exclusivamente em faixas de seu mais recente álbum “. I .”, lançado ano passado. Quando “Desumanização” encerrou a participação para bem menos rodas do que no show anterior, boa parte do público já estava desinteressada.
Repertório — Escalpo:
- Onda de estupidez
- Olhando Pro Chão
- Eviscerando o Opressor
- Desconstrução/Destruição
- A Dor Do Açoite
- Escravidão Auto Imposta
- Retrocedendo
- Desumanização
Damn Youth aproveita chance para conquistar velha guarda
Uma das características mais legais do Kool Metal Fest é a de buscar bandas pelo Brasil e dar-lhes maior visibilidade. Ao longo do ano, costumam acontecer edições variadas, muitas delas gratuitas na capital paulista, sempre mantendo o espírito independente e underground com que foi concebido mais de 20 anos atrás.
Na edição “brasileira” de 2019, no Teatro Mars, no centro paulistano, o Damn Youth veio de Caucaia, no Ceará, e aproveitou a exposição para construir uma base de fãs na cidade, que já compareceu no fim de tarde de domingo em bom número com as vestes do grupo pela pista do Carioca Club.
A volta do quarteto ao estado foi a chance de aparecer para um público diferente daquela apresentação cinco anos atrás, dessa vez mais afeito à velha guarda do thrash metal. Não apenas a banda não desperdiçou a oportunidade, como entrou cinco minutos antes do horário previsto para promover uma pancadaria incessante desde a primeira música, “Senseless Massacre”, de “Descends into Disorder” (2023), disco mais recente do grupo.
Era impossível não se deixar contagiar pelo thrash metal vigoroso proporcionado pelo entrosamento quase telepático dos riffs de Camilo Neto e a cozinha formada por Italo Rodrigo (bateria) e Jardel Reis (baixo). Rodas cada vez maiores tomavam conta da pista e o público perdia a vergonha de subir ao palco para pular de volta. O ar condicionado do Carioca Club nem mais parecia estar ligado.
Sem pausas, o grupo revezava faixas mais recentes a canções já consagradas de seus lançamentos anteriores, como “Straight Line”, de “Skate in Hell”, demo de 2015, e do primeiro disco “Breathing Insanity” (2018), como “Jurisdiction”. Não faltaram pessoas invadindo o palco e cantando junto a Elton Luiz no microfone.
Simpático, o vocalista deixou seu recado música após música até a última, “No Mercy to Nazi Sympathy”, do EP de mesmo nome de 2016, encerrar os frenéticos 35 minutos de uma apresentação que certamente trouxe novos fãs ao Damn Youth.
Ratos de Porão “joga em casa” e celebra renovação do público
Em teoria, o crossover do Ratos de Porão talvez fosse um pouco deslocado do thrash metal do Vio-Lence. Diferente do Escalpo, ser uma banda clássica tocando em casa tem suas vantagens, mas o lendário quarteto punk paulista entrou como se tivesse que se provar diante da pista cheia do Carioca Club.
O início, com “Satanic Bullshit” de “Just Another Crime… in Massacreland”, disco que completa 30 anos, talvez tenha permitido ao público imaginar um repertório diferente da banda — em janeiro, o álbum foi executado na íntegra em duas apresentações no tradicional Sesc Pompeia.
“Amazônia Nunca Mais”, do icônico álbum “Brasil” (1989), já trouxe o quarteto de volta à realidade nacional. João Gordo, bem de saúde, movimentava-se bastante no palco e demonstrava fôlego para, ahn, cantar as clássicas músicas da banda, provando ter conseguido se recuperar bem dos problemas de saúde que o afetaram recentemente.
Claro, nem sombra da correria do baixista Juninho ou da imposição com que o guitarrista Jão, o original, comandou a presença de palco, para um público animado e participativo. Faixas mais recentes como “Aglomeração” e “Alerta antifascista”, de “Necropolítica” (2022) se misturavam a clássicos do porte de “Farsa Nacionalista”, “Crianças sem Futuro” e “Descanse em Paz”, com Gordo no papel de frontman para fazer o público acompanhar com gritos o final da música.
Nos cinquenta minutos do Ratos de Porão em cima do palco, não faltaram os hinos “Crucificados pelo Sistema”, “AIDS, Pop e Repressão” ou “Beber até Morrer”. Gordo ficou feliz ao ver um público renovado de fãs misturados à velha guarda, mérito inegável da proposta do Kool Metal Fest.
Show de respeito do Exhorder não manteve intensidade do público
Não dá para dizer que havia muitos fãs do Exhorder na pista do Carioca Club. Pela reação do público ao longo dos 45 minutos de palco dos americanos, a postura era mais de respeito e ansiedade pelo Vio-Lence. O som do grupo, obviamente, proporciona um ambiente para rodas e elas continuaram acontecendo, mas num ritmo menos frenético em relação às duas bandas brasileiras que os antecederam.
Não é algo inesperado pelo Exhorder. Originários de Nova Orleans, no estado da Louisiana, o grupo trouxe uma proposta sonora, não muito compreendida na época, que acabou se tornando o elo perdido entre o thrash metal vigoroso dos anos 80 e o som grooveado que fez de um certo quarteto texano os reis da música pesada na década seguinte.
Hoje, o disco “Slaughter in the Vatican” (1990), tem aura cult e suas músicas alternando riffs velozes e andamentos cadenciados, como a faixa-título que abriu a apresentação seguida de “Legions of Death”. Ambas despertaram reações acaloradas na plateia, apesar das falhas no som da guitarra do também lendário vocalista Kyle Thomas e do guitarrista Waldemar Sorychta.
Quando Thomas foi anunciar “My Time”, do álbum “Mourn the Southern Skies” (2019), ninguém o avisou sobre o Carnaval brasileiro e seu discurso sobre aproveitar a noite de domingo antes de uma segundona brava teve o mesmo impacto que a desconhecida música para baixar os ânimos do público.
A situação não melhorou muito com as duas seguintes composições do futuro disco “Defectum Omnium”. A ser lançado em março, o álbum contará com o ex-Cannibal Corpse e Nevermore Pat O’Brien nas guitarras, ausente dessa turnê pelos efeitos da condenação pelos crimes cometidos no final de 2018.
Foi necessário voltar ao clássico disco de estreia para reaquecer o público, ainda que o Carioca Club continuasse uma sauna. A homônima e veloz “Exhorder” e o groove pesado de “Desecrator” encerraram uma apresentação que esteve longe de ser ruim, mas não deve ficar marcada na memória de muitos dos presentes.
Repertório:
- Slaughter in the Vatican
- Legions of Death
- My Time
- Year of the goat
- Forever and Beyond Despair
- Exhorder
- Desecrator
Sean Killian ovacionado em último show de Phil Demmel no Vio-Lence
Após uma apresentação celebrada no Setembro Negro de 2022, o Vio-Lence voltou com uma formação bem diferente menos de dois anos depois. Apenas o tradicional vocalista Sean Killian e o baixista belga Christian Olde Wolbers, da formação clássica noventista do Fear Factory, bateram ponto no palco do Carioca Club de novo.
O destaque, como não poderia deixar de ser, foi o guitarrista Phil Demmel. Ausência gritante daquela noite — ele havia se apresentado na véspera com a banda cover Metal Allegiance no Rock in Rio —, o show que fechou o Kool Metal Fest foi sua despedida do Vio-Lence, após anunciar que fará parte da banda de Kerry King (Slayer).
Não apenas pelo fator histórico de sua saída da banda: como o Vio-Lence se apresentou no palco como um quarteto, Demmel provou que vale por dois guitarristas, ou até mais, numa exibição que se mostrou digna da Flying V preta de bolinhas brancas, homenagem ao inesquecível Randy Rhoads.
Por pouco mais de uma hora, o Vio-Lence apresentou um repertório focado em seu trabalho de estreia, “Eternal Nightmare” (1988), um dos discos mais intensos do thrash metal da Bay Area de San Francisco, com quatro de suas músicas executadas logo de cara. Rodas de pogo, stage divings, galera cantando junto.
A ignorância não diminuiu com as faixas escolhidas de “Oppressing the Masses” (1990) nem com a mais recente “Upon Their Cross”, do EP “Let the World Burn” (2022), que manteve o público aceso e terminou com gritos acompanhando o tempo da bateria mesmo após o seu final.
Sean Killian olhava embasbacado ao que ele chamou de um “público de thrash metal de verdade”. Após introduzir os músicos e ver a reação empolgada da plateia para Phil Demmel, o vocalista teve seu nome anunciado por Wolbers e foi ovacionado em volume ainda maior do que o guitarrista.
Na parte final de sua apresentação, ao executar um cover para “California Uber Alles” (numa versão menos frenética e mais densa que a original do Dead Kennedys), a banda chamou ao palco Kyle Thomas, vocalista e guitarrista do Exhorder. Parecia mais farra de fim de turnê, alguns roadies no palco tão empolgados quanto o público — que quando invadia, era prontamente chutado pelos próprios músicos de volta à pista.
O encerramento da noite veio com “World in a World”, de “Oppressing the Masses”, e Demmel claramente não escondia a emoção ao cantar todos os versos da música, alguns cara a cara com Killian. Filmando a reação do suado público aglomerando-se à sua frente ao distribuir seu estoque final de palhetas, o guitarrista deve ter percebido que, ao lado de Kerry King, não vai ter a sensação de executar suas próprias canções num ambiente acalorado como o do Carioca Club na noite deste Kool Metal Fest num domingo de Carnaval.
*Fotos de Gabriel Gonçalves @dgfotografia.show.
Repertório:
- Eternal Nightmare
- Serial Killer
- Phobophobia
- Kill on Command
- I Profit
- Calling in the Coroner
- Officer Nice
- Upon Their Cross
- California Über Alles (cover do Dead Kennedys com Kyle Thomas)
- World in a World
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