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No Rio, Roger Waters provoca bombardeio audiovisual em mais um genial espetáculo

Ainda que com público aquém da capacidade, estádio Nilton Santos recebeu apresentação onde ex-Pink Floyd prova sua genialidade artística

O Rio de Janeiro foi o segundo destino da etapa nacional da “This is Not a Drill”, atual turnê de Roger Waters. No estádio Nilton Santos — popularmente conhecido como Engenhão, por ser localizado no bairro Engenho de Dentro —, o músico e sua excelente banda promoveram mais um ataque aos sentidos, incitando o público a refletir.

A arte é uma manifestação estética e comunicativa, podendo ser representada em diversas formas de linguagens. Ela pode incomodar a alguns e agradar a outros. É sempre subjetivo. Mas, muitas vezes, o aborrecimento causado surge do confronto de ideias e percepções.

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Muito criticado por suas visões políticas, o ex-Pink Floyd não costuma poupar críticas e acaba, por conta disso, criando inimigos. Até em seu público.

Em 2018, provocou reações exaltadas por incluir o nome de um então candidato à presidência da república na lista de novos fascistas mundiais. Pronto, foi chamado de comunista e aproveitador da lei Rouanet.

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Em junho de 2023, o advogado Ary Bergher, vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil (CONIB) e presidente do Instituto Memorial do Holocausto, enviou uma carta ao Ministro da Justiça, Flávio Dino, pedindo que Waters não tivesse sua entrada permitida no país, o acusando de antissemitismo. Isso ocorreu após uma estúpida confusão quando Roger trajou, em um show na Alemanha, um casaco representando uniforme nazifascista. Em couro preto e adornado por duas braçadeiras vermelhas com seus famosos martelos cruzados, ele personifica a crítica contundente ao fascismo, já apresentada no filme baseado no álbum “The Wall”, de 1982. Quando é retirada do contexto crítico e identificada como antissemitismo, soa como mero ato de censura.

Alguns dirão que o preço pago por expor suas visões políticas foi o de ingressos não esgotados e estádio com público aquém da capacidade – mais de 40 mil pessoas. Não é bem assim. Shows no Rio de Janeiro, mais voltados ao rock, não costumam lotar. Sobretudo esses em estádios — embora, claro, existam exceções. Some-se a isso a quantidade de apresentações para grande público marcadas para o segundo semestre. Atrações como Paul McCartney, Red Hot Chilli Peppers e Taylor Swift, além do festival Primavera Sound, possuem ingressos com valores similares aos de Waters. Para quem desejou ficar mais próximo do ídolo, o ingresso custou R$ 990,00 (fora taxas!) em uma pista nada premium em modalidade inteira. Lute contra o capitalismo, diria o cantor.

Primeiro ato

O aviso que introduz o show, dá um claro sinal do que viria: “se você é um daqueles que diz ‘Eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza para o bar” (em bom carioquês). Com estrondo de trovão e sons de tempestade, tem início a nova versão de “Comfortably Numb”, lançada em 2022. De clima sombrio e introspectivo, suprime o icônico solo do eterno desafeto David Gilmour (ex-guitarrista do Pink Floyd).

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Trajado com jaleco branco, o octogenário empurra uma cadeira de rodas com um homem em uma camisa de força. A nova versão parece causar mais desconforto, e uma certa decepção, do que ovação. O que mudaria assim que “The Happiest Days of Our Lives” introduz a clássica — e em sua versão tradicional — “Another Brick in the Wall Pt 2”.

Se não é possível ficar imune às ideias político-sociais de Roger, o mesmo pode ser dito quando o assunto é música. Versões atuais de composições solo são bem melhores que as registradas em estúdio. Casos da poderosa “The Powers that Be” (oriunda do album “Radio K.A.O.S”, 1987) e da mais Floydiana “The Bravery of Being out of Range” (do disco “Amused to Death”, 1992). Na primeira, a junção de animação com imagens reais das forças repressoras do Estado mostrava, também, nomes de vítimas ao redor do mundo. Ao término da canção, o nome da vereadora assassinada Marielle Franco aparece no telão para uma reação pouco entusiasmada. Estupefação coletiva. Ainda assim, causa espécie a falta de uma manifestação mais calorosa.

Estar em show de Waters é ser bombardeado constantemente. Uma montanha-russa de sensações. Sua postura humanista e humanitária o coloca no centro de discussões sobre guerras. A proposta para lidar com as crises mundiais ou locais é apresentada em uma nova composição: “The Bar”. De forma simples diz: conversem uns com os outros. Comunicação é a chave para o desenvolvimento humano. A música? Ah, sim, é fácil esquecer que há uma banda tocando ali, tamanha a gama de pensamentos a que somos levados a desenvolver. Não é um show de rock comum, daqueles em que comportamentos um tanto primitivos são exultados; é uma performance artística sem concorrentes a altura. Voltando para a canção, trata-se de uma composição ótima. Centrada no piano, tem acento um tanto melancólico, mas, de alguma forma, também indica esperança. Segundo o cantor, esse é apenas um segmento de uma criação bem longa. Que venha o resto.

Foto: Marcos Hermes / divulgação

De volta aos clássicos de sua velha banda, ataca de “Have a Cigar”, onde fotos dos outrora jovens integrantes vão aparecendo. Menos um: David Gilmour. Em seguida, “Wish You Were Here” – clássico das rodas de violão – faz uma bela homenagem a Syd Barrett, cofundador do Pink Floyd. Roger conta um pouco dos primórdios da amizade. Sempre para lembrar que não estamos em um treinamento (“drill”) quando perdemos alguém; a vida é pra valer.

Emenda com outra música composta para homenagear o falecido amigo: “Shine on You Crazy Diamond”. A primeira em que empunha o baixo, tendo transitado entre guitarras e pianos. Ou apenas ao microfone.  Uma grande ovelha sobrevoa o público ao som de “Sheep”, do maravilhoso “Animals” (1977) – homenagem a George Orwell e seu livro “A Revolução dos Bichos”. Se não conheces nem um, nem outro, fica a indicação para que o faça e, dessa forma, entenda como uma forma de arte influencia a outra.

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Pausa e retorno

Com uma hora de apresentação, segue-se um Intervalo de 15 minutos, muito necessário para descansar e assimilar o que ocorreu.

A volta se dá com o outro sobrevoo, dessa vez de um porco pintado com os tijolos da capa do “The Wall” e com a frase “you´re up against the wall right now” (“agora você está contra a parede”). Serve para que “In the Flesh” traga Roger Waters, dessa vez, na camisa de força e conduzido ao palco em cadeira de rodas.

O show é corajoso ao deixar de fora clássicos como “Time” e “Mother” e lançar luz em músicas de sua carreira solo. Como “Deja Vu”, de seu álbum de inéditas mais recente, o ótimo “Is This the Life We Really Want?” (2017), e que não faria feio em “The Wall”. É precedida pelo vídeo de soldados americanos fuzilando nove civis em uma rua de Bagdá, em 2007. O vídeo foi vazado por uma ex-soldado norte-americana, Chelsea Manning, para Julian Assange (ativista, fundador do site WikiLeaks, preso na Inglaterra por não ter cumprido determinações da Justiça), que o tornou público.

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Com um Keffieh – lenço utilizado pelos Palestinos e popularizado por Yasser Arafat, líder da autoridade palestina e presidente da organização para a libertação da Palestina (OLP) – no pescoço, o cantor e seu violão começam a música enquanto os telões exibem imagens de bombardeios, seguindo até mostrar o pedido de fim do genocídio e conclamar que todos tenham seus direitos respeitados. Sem dúvida, um dos momentos mais emocionantes da apresentação.

Para quem ficou preocupado com a nova versão de “Comfartbly Numb” e a recente releitura do mais que clássico “The Dark Side of The Moon”, a execução do lado B do referido álbum em seu modo natural trouxe alívio aos mais puristas. “Money” e “Us and Them” foram cantadas pelo guitarrista Jonathan Wilson, fazendo as vezes de David Gilmour. Até sua aparência entrega uma certa semelhança com ex-parceiro de Roger.

Os músicos sempre são precisos e muito competentes. O outro guitarrista, Dave Kilminster, também emula Gilmour, mas na guitarra, reproduzindo os solos em um misto de técnica e emoção. A banda é completada por Jon Carin (teclados), que já tocou na versão do Pink Floyd sem Waters; Gus Seyfert (baixo); Joey Waronker (bateria); Seamus Blake (saxofone); Robert Walker (órgão e piano); e pelas cantoras Amanda Blair e Shanay Johnson.

Encerrando o lado escuro da Lua, a reprodução da capa em feixes de luz e lasers colore o estádio enquanto “Eclipse” brilha.

“Two Suns in the Sunset” e o medo de uma guerra nuclear mostram que o famigerado “The Final Cut” (1983) – último álbum do Pink Floyd com Waters e considerado por muitos como o início de sua carreira solo – não é um álbum esquecível. Pelo contrário.

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Eis que voltam ao tema de “The Bar”, com todos os músicos ao redor do piano em clima bem descontraído.  Cita o encontro que teve com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o chamando de “a lovely chap” (“um cara adorável”). A reação teve algumas vaias, mas muitos gritos de aprovação. Seguindo, agradece a três pessoas importantes a quem dedicou a canção: Bob Dylan; sua esposa Kamilah Chavis, que estava presente; e seu irmão John Waters, falecido ano passado. Ela se mistura com “Outside the Wall” para finalizar com os músicos, um a um, sendo apresentados ao saírem do palco.

Essa pode ser sua última turnê mundial (ainda dá tempo de assisti-lo), nem ele sabe ao certo. Deixará uma enorme lacuna. Marca de todo grande artista. Se gerou polêmica ou incômodos, Roger Waters, mesmo sem precisar, provou sua genialidade criativa e a verve desafiadora e contestatória em um show irrepreensível e inesquecível.

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Roger Waters – ao vivo no Rio de Janeiro

  • Local: Estádio Nilton Santos (Engenhão)
  • Data: 28 de outubro de 2023
  • Turnê: This is Not a Drill

Repertório:

  1. Comfortably Numb
  2. The Happiest Days of Our Lives
  3. Another Brick in the Wall, Parte 2
  4. Another Brick in the Wall, Parte 3
  5. The Powers That Be
  6. The Bravery of Being Out of Range
  7. The Bar
  8. Have a Cigar
  9. Wish You Were Here
  10. Shino On You Crazy Diamong (Partes 6 a 9)
  11. Sheep
  12. In the Flesh
  13. Run Like Hell
  14. Déjà Vu
  15. Déjà Vu (reprise)
  16. Is This The Life We Really Want?
  17. Money
  18. Us and Them
  19. Any Colour You Like
  20. Brain Damage
  21. Eclipse
  22. Two Suns in the Sunset
  23. The Bar (reprise)
  24. Outside the Wall

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Claudio Borges
Claudio Borges
Jornalista, DJ, Produtor, Apresentador, Editor e o que mais ele encontrar pelo caminho da música. Descobriu Rock em 1982 e só ampliou gosto e conhecimento. Começou a tocar bateria aos 16 anos e guitarra aos 17.

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