As luzes ainda estavam acesas quando foi exibido o primeiro vídeo referente ao show que começaria poucos minutos depois. Trazia imagens desbotadas, como daquelas antigas câmeras Super 8, dos membros do Lynyrd Skynyrd no início de carreira, ali numa longínqua década de 1970.
Parecia alguma homenagem a quem estava prestes a celebrar seus 50 anos de carreira naquela que seria apenas a sua segunda apresentação no Brasil. Na verdade, porém, era a propaganda do Hell House — o whiskey que a banda comercializa e que leva o nome do local onde foram criados vários dos clássicos que estavam prestes a serem tocados ao vivo.
Enquanto a atração principal não subia ao palco, o público formado por muitas cabeças grisalhas cantava alguns clássicos do rock que ecoavam pelos PA’s. “Jumpin’ Jack Flash” (Rolling Stones), “Kashmir” (Led Zeppelin) e “Panama” (Van Halen) foram tocadas na íntegra, até que mais um vídeo fosse reproduzido no telão. Mostrava um jovem comprando um vinil do Lynyrd Skynyd numa loja, em detrimento de álbuns de outras bandas, como Black Sabbath. Ao ouvir o álbum de estreia do grupo na vitrola, “Pronounced ‘Lĕh-‘nérd ‘Skin-‘nérd” (1973), o garoto se descobre um amante do rock. O que mais surpreende neste vídeo é a trilha sonora: “Thunderstuck”, do AC/DC.
A esta altura, estava claro o que estava para acontecer no Espaço Unimed, em São Paulo: um show de homenagens. Não apenas aos 50 anos de carreira da atração daquela noite, mas ao rock and roll como um todo, sendo que o grupo americano tem peso significativo nessa história.
*Fotos de Gustavo Diakov / @xchicanox, produzidas à distância conforme orientação do management da banda.
Condição sui generis
Acabado o vídeo, finalmente o Lynyrd Skynyrd subiu ao palco entoando já os primeiros acordes de “Workin’ for MCA”, de seu segundo álbum, “Second Helping” (1974). Além das marcas deixadas pela idade e experiência dos veteranos músicos, chamou atenção a simpatia de Johnny Van Zant, o vocalista que manteve o sorriso no rosto por toda a noite e não cansou de conversar com o público — muitas vezes elogiando e agradecendo uma plateia que não os via desde 2011, quando estreou em território nacional no já extinto festival SWU.
A animação da plateia ganhou força na sequência com “Skynyrd Nation”, rock vigoroso do álbum “God & Guns” (2009) que fez as pessoas saltarem e cantarem, formando um verdadeiro mar de telas de celulares reluzentes sobre as cabeças do público. Assim, em menos de 10 minutos, os veteranos já haviam coberto seu portfólio de mais de 30 anos de estrada, numa trajetória marcada por uma tragédia.
A queda do avião em 1977 que matou seis pessoas e feriu outras 20 é uma das histórias mais tristes do rock. Entre os mortos estavam três membros da banda: Ronnie Van Zant, também vocalista e irmão de Johnny, e os irmãos Steve (guitarrista) e Cassie Gaines (backing vocal).
As mortes puseram um fim aparente ao grupo, que só voltaria à ativa 10 anos depois, já com Johnny ao microfone e outros 4 sobreviventes. Era declaradamente uma banda tributo, que após uma turnê não à toa chamada “Lynyrd Skynyrd Tribute Tour”, foi ganhando corpo com o tempo e voltou a gravar em 1991.
No show de São Paulo, não havia um sobrevivente sequer do trágico acidente. Aliás, à exceção do guitarrista Rickey Medlocke — que havia integrado o grupo mais de 50 anos atrás, antes ainda da gravação primeiro álbum —, nenhum membro sequer fez parte do grupo em seu período considerado clássico, até 1977. Inclusive, o último remanescente da fase amplamente conhecida, o guitarrista Gary Rossington, morreu em março deste ano.
Essa condição sui generis do Skynyrd atual pode suscitar uma discussão interessante sobre o que podemos esperar para o futuro do rock. Será que com o envelhecimento dos nossos antigos heróis, o legado deles será tocado por seus discípulos e, depois, pelos discípulos dos discípulos, como numa religião?
Divertido pensar que, no dia seguinte, o grupo perfomaria no tradicional rodeio de Jaguariúna, no interior paulista. Por quê? Dinheiro? Desafio? Por um lado, difícil não imaginar se os compositores daquelas canções gostariam de tocá-las para uma audiência que não é a deles. Por outro, o evento já recebeu grupos como Kansas e Creedence Clearwater Revisited em outras edições.
Fato é que o público ali não parecia estar muito para devaneios do tipo quando mais um clássico explodiu nos PA’s: “What’s Your Name”, do último álbum antes da tragédia, “Street Survivors” (1977). Dali em diante, a banda só tocaria canções do já mencionado período clássico. Vieram “That Smell” e “I Know a Little” (ambas de “Street Survivors”), seguidas por “Whiskey Rock-a-Roller” e “Saturday Night Special” (oriundas do terceiro disco, “Nuthin’ Fancy”, de 1975). A última, aliás, um hino antiarmamentista digno de nota.
Os mais entusiasmados cantavam os clássicos a todo pulmão, enquanto no palco havia uma banda que nitidamente estava dando de tudo para agradar a audiência. As roupas coloridas e estampadas dos veteranos, a forma como se comunicavam com a plateia, os sorrisos e, principalmente, o poderoso som das três guitarras mostravam como o rock de 50 anos atrás pode manter sua energia intacta.
O ponto baixo talvez tenha sido o sistema sonoro da casa. Quem estava mais perto do palco sofreu com o volume ensurdecedor que parecia ajustado para os metaleiros do Manowar — famosos por tocar em níveis sonoros pouco ortodoxos e que se apresentariam na casa no dia seguinte.
Homenagens, surpresa e muita emoção
A primeira música lenta da noite foi a linda “The Ballad of Curtis Low” (de “Second Helping”), que emocionou pela sensibilidade. A letra narra a história de um bluesman negro que encanta tocando sua dobro, uma espécie de guitarra ressonadora acústica. Em seguida, a primeira homenagem formal aos falecidos — mais precisamente a Gary, cuja imagem foi exibida no telão durante toda a execução de outra balada: “Tuesday’s Gone” (de “Pronounced”).
Ao final de “Gimme Back My Bullets” (álbum de mesmo título, 1976), veio a grande surpresa da noite. Johnny leu em voz alta o cartaz de alguém na plateia que pedia para cantar o clássico “Simple Man” no palco. Depois de um instante de hesitação, falou para o autor subir ao palco.
“Ele parece mesmo um vocalista”, brincou o frontman ao ver um homem de mais de 1,80m, cabeludo, com seus mais de 50 anos e vestindo uma camiseta com uma foto de Neil Young estampada na frente. Às lágrimas, o convidado parecia perdido no palco. Ora abraçava Johnny, ora falava-lhe ao ouvido. Mas eis que seu desejo foi realizado. Os primeiros acordes soaram e os versos iniciais foram divididos entre o americano e o convidado surpresa, dono de uma voz potente que fez Johnny arregalar os olhos.
Johnny podia não saber, mas ele havia convidado Nando Fernandes, um vocalista famoso no circuito do hard rock/heavy metal nacional e atualmente integrante da banda Sinistra. Que noite o músico brasileiro teve! Dividiu os vocais com seu herói em toda a música. Contaminado pela alegria do emocionado músico, o público respondeu cantando alto a ponto de cobrir o som dos PA’s no refrão. Enquanto não estava ao microfone, Nando ia tietar os demais membros da banda com abraços, apertos de mão e palavras ao pé do ouvido. O único que pareceu não dar muita bola foi Rickey, que estava mais preocupado em tocar sua guitarra e fazer esvoaçar sua vasta cabeleira cor de neve.
“Lynyrd Skynyrd é a melhor banda do mundo!”, Nando gritou ao microfone no fim da exibição, após fazer juras de amor ao grupo.
Coube a Johnny trazer o show de volta à programação normal. “A gente veio aqui para se divertir”, disse, preparando o público para o fim do momento emotivo. Veio a animada “Gimme Three Steps” (de “Pronounced”), com a divertidíssima letra que narra um homem que mexeu com uma mulher em um bar e que pede gentilmente para sair correndo quando ameaçado pelo namorado dela com uma arma calibre .44. Em seguida, outra música poderosa: “Call Me the Breeze”, um cover de JJ Cale que a banda gravou em “Second Helping”. Disco este que abre com o clássico dos clássicos “Sweet Home Alabama”, tocada logo em seguida: uma homenagem que os músicos de Jacksonville, Florida, em homenagem aos vizinhos de outro estado sulista.
Antes do bis, o telão exibiu imagens de velas legendadas com os nomes dos membros da banda falecidos ao longo desses 50 anos: nada menos de que 15 pessoas. É difícil imaginar o que significa dar continuidade a um legado dessa magnitude. Embora possa haver críticas — como dizer que quem está lá não é o Skynyrd de verdade —, a energia que o grupo traz ao palco e o respeito que fazem questão de mostrar a quem abriu espaço antes deles é digna de nota.
Para fechar a noite, “Free Bird” (de “Pronounced”), outro clássico absoluto do grupo americano. Durante a canção, mais uma homenagem: Johnny largou o microfone e deixou que uma gravação de seu irmão falecido há mais de 45 anos assumisse os vocais a partir do segundo verso. A banda continuava tocando, enquanto uma imagem em preto e branco de Ronnie cantando em algum show da década de 1970 era exibida. Emoção pura, que culminou numa catarse quando a parte lenta da música dá lugar a um ritmo mais acelerado e uma explosão de solos de 3 guitarras.
Agora resta saber os caminhos que o grupo vai tomar. Seguirá na ativa mesmo quando até aqueles que apenas conheceram os mortos já estiverem aposentados? Se depender da energia deles, a sensação que dá é que continuaremos a ver o Skynyrd por mais alguns anos nos palcos pelo mundo. Afinal, não foram eles que iniciaram uma turnê de despedia em 2018 para, 5 anos depois, falar em gravar um novo álbum? Disposição ali é o que não falta.
Repertório — Lynyrd Skynyrd em São Paulo:
- Workin’ for MCA
- Skynyrd Nation
- What’s Your Name
- That Smell
- I Know a Little
- Whiskey Rock-a-Roller
- Saturday Night Special
- The Ballad of Curtis Loew
- Tuesday’s Gone
- Gimme Back My Bullets
- Simple Man
- Gimme Three Steps
- Call Me the Breeze cover de J.J. Cale)
- Sweet Home Alabama
Bis:
- Free Bird
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Bacana eles fazerem homenagens aos verdadeiros criadores. Mostra carater. Humildade. Entao vale manter o som deles vivo.
A camiseta que Nando Fernandes estava usando é do Neil Young.