O Deep Purple ficou conhecido por suas músicas tanto quanto pelas mudanças frequentes na formação. São verdadeiros garotos-propaganda de tensão criativa.
A banda já teve nove iterações que existiram oficialmente. Porém, a mais importante delas continua sendo a segunda: a que gravou “Machine Head”, seu álbum mais popular, e também continha as figuras mais famosas.
Notoriamente, também era a mais cheia de brigas por causa dessas figuras. O vocalista Ian Gillan e o guitarrista Ritchie Blackmore viviam às turras. A primeira reunião dessa formação clássica, em 1984, acabou cinco anos depois com a demissão do cantor.
Gillan retornou a pedido da gravadora em 1992, para comemorar o jubileu de prata da banda. Junto dele, as tretas. O que se seguiu foi uma batalha pelo controle do Deep Purple ao longo de um ano e um disco.
Essa é a história da briga.
Primeiro retorno
O Deep Purple implodiu em março de 1976, consumido por brigas internas e uma agenda de shows insustentável. O guitarrista Tommy Bolin, que havia substituído Ritchie Blackmore nas seis cordas um ano antes, morreria em dezembro daquele ano, tomado pelo vício em drogas. Ele tinha 25 anos.
Enquanto os colegas do hard rock alçavam voos cada vez mais altos, o Purple não passava de cinzas e seus sobreviventes da formação clássica encontravam novos jeitos de se manter no topo. Ritchie Blackmore formou o Rainbow com Ronnie James Dio, que ainda contou com Roger Glover quando Dio já não fazia mais parte do lineup. Ian Gillan tinha um grupo com seu nome. Quanto a Jon Lord e Ian Paice, os dois fizeram parte dos inícios do Whitesnake, grupo de David Coverdale.
Por outro lado, algo contava em favor da banda: eles haviam terminado antes do surgimento do punk. Naquele período, o Purple nunca era colocado entre os dinossauros do rock. A fama deles só crescia graças ao trabalho de fãs dedicados que compartilhavam bootlegs de shows e espalhavam a palavra.
O fervor do público pela formação clássica era tanto que quando Rod Evans, vocalista original do grupo, tentou fazer uma turnê usando o nome Deep Purple, os protestos de fãs nos shows foram tão responsáveis pelo fim da empreitada quanto o processo movido pela banda original.
Blackmore e Gillan voltaram a se falar em 1982, quando planos de um retorno da formação clássica começaram a ser desenhados. Àquela altura, o Rainbow vivia sua melhor fase comercial, mas não tinha o mesmo ímpeto criativo da década de 1970. Estava no piloto automático, com brigas internas e falta de criatividade. Já a banda solo de Ian nunca emplacou. Os dois viam uma oportunidade para algo novo.
Glover e Paice toparam um retorno tranquilamente, mas Lord recusou, alegando lealdade ao Whitesnake. Como Ian Gillan caracterizou no livro “Smoke on the Water: The Deep Purple Story”, de David Thompson:
“Após criar sua própria intriga pública… a ideia murchou.”
Gillan entrou para o Black Sabbath após uma noite de bebedeira. Ficou por quase dois anos achando que a banda devia ter mudado de nome quando ele entrou. Quando o empresário de Ritchie Blackmore o contatou novamente ao final de 1983 sobre uma volta do Deep Purple, ele estava mais interessado que nunca. Dessa vez, até Jon Lord estava disponível, tendo em vista sua saída do Whitesnake.
O grupo se reformou no começo de 1984, lançando o disco “Perfect Strangers” em outubro daquele ano. O lançamento foi um sucesso: atingiu o 12º lugar da parada americana e a 5ª posição no Reino Unido.
A turnê que se seguiu foi estrondosa, mas o álbum seguinte, “The House of Blue Light”, começou a mostrar os problemas. Jon Lord resumiu a situação em entrevista de 1989 à Modern Keyboard:
“‘The House of Blue Light’ foi um disco estranho e difícil de montar. ‘Perfect Strangers’ escreveu a si mesmo sozinho. Era tão glorioso porque era ótimo estarmos juntos depois de tantos anos separados. A gente sorria de orelha a orelha. Na turnê fomos segundo lugar em ingressos vendidos, atrás de Bruce Springsteen. Aí a gravadora e os empresários falaram: ‘é hora de fazer o próximo álbum, rapazes.’ Fizemos o grande erro de tentar fazer nossa música atual. Descobrimos que as pessoas não queriam isso de nós. Queriam o que fazemos de melhor.”
Segundo retorno
Ian Gillan foi demitido novamente em 1989, após sua relação com Ritchie Blackmore azedar de novo. O grupo contratou como seu substituto Joe Lynn Turner, ex-Rainbow. Entretanto, não era uma escolha popular entre os integrantes, como Jon Lord falou à Keyboards em 1994:
“Eu era contra Joe Lynn Turner desde o começo. É engraçado porque o fato era que nenhum de nós queria ele, mas era o único que havia sobrado. O cara que a gente queria, se *tivéssemos* que trabalhar com um substituto para Gillan, era o cantor do Survivor [Jimi Jamison], um cara bem legal, bem quieto, bem agradável. Ele era um fã enorme do Deep Purple e teria aceito o trabalho feliz. Mas na época ele tinha medo dos seus empresários. Eles eram ítalo-americanos; isso já é suficiente. (Risos)”
Sobre o período conturbado de Turner na banda, Lord declarou na mesma entrevista:
“Digo, a visão de Joe para essa banda não era a nossa visão. Ele queria fazer algo dessa banda que não podia ser, e nós queríamos mudar ele para algo que ele não podia ser. Era um casamento infernal.”
O disco lançado pelo grupo com Joe Lynn Turner, “Slaves and Masters”, não atingiu o sucesso esperado e fãs reclamaram do fato de soar como os momentos mais pop do Rainbow. Quando a turnê terminou e trabalhos no sucessor começaram, o vocalista foi posto para fora, para desgosto de Blackmore.
Em 1993, o Deep Purple comemoraria seu aniversário de 25 anos e Roger Glover ainda tinha contato com Ian Gillan. No livro “Smoke on the Water: The Deep Purple Story”, o baixista relembrou um telefonema com o cantor:
“Nós não conversamos sobre a banda por vários anos, até eu ligar pra ele um dia e falar: ‘ei, eu sei que não vamos falar sobre a banda, mas eu quero sim falar sobre a banda, [porque] eu quero você de volta para ela’.”
A BMG, gravadora do Deep Purple, estava pressionando o grupo para reunir a formação clássica novamente e celebrar o jubileu de prata. Quando Gillan teve sua primeira sessão de composição com Glover, ele percebeu depois de alguns dias estar sendo testado para ver se suas habilidades como cantor e compositor estavam afiadas. A banda não confiava totalmente nele.
Quando Ian entrou no estúdio, o álbum “The Battle Rages On…” já estava praticamente pronto, com as músicas compostas enquanto Joe Lynn Turner ainda fazia parte do grupo – fora três canções criadas junto a Mike DiMeo, que foi testado entre a saída de Turner e a volta de Gillan. Fato é que o cantor clássico estava lá para trabalhar em novas letras e acertar os vocais. Ele falou em “Smoke on the Water: The Deep Purple Story”, de David Thompson:
“‘The Battle Rages On…’ era um emprego, não um trabalho de amor. Eu recebi um álbum finalizado… Eu estava cantando em faixas nas quais tive nada a dizer. Elas não eram minhas canções.”
O disco também marcou a primeira vez desde os primórdios da banda que eles usaram um produtor de fora, Thom Panunzio. Na entrevista para a Keyboards, Jon Lord revelou suas impressões a respeito do produtor:
“Eu também pensei que Thom era uma escolha muito estranha. Mas depois percebi que ele havia sido a escolha certa. Thom é muito reservado, bem quieto, mas ele ama rock’n’roll e ele trouxe consigo seu próprio engenheiro, Bill Kennedy. Um cara de 30 e poucos anos que claramente queria ainda ter 20 e poucos. com um cabelo punk e uma voz de dois maços de cigarro por dia. Ele insiste em aumentar o volume de gravação, quase até o ponto em que começa a distorcer!”
Saída definitiva
Apesar do péssimo 192º lugar na parada da Billboard, “The Battle Rages On…” foi um sucesso em outras partes do mundo. O disco ficou de fora do top 20 britânico por uma posição e surgiu entre os dez mais vendidos em outros cinco países.
A turnê, contudo, foi mais uma reedição dos embates entre Ian Gillan e Ritchie Blackmore, com ambos zombando um do outro em shows. A diferença foi que, dessa vez, o guitarrista percebeu como não importava quantas vezes ele demitia o vocalista, o cara sempre voltava.
Em entrevista para o livro “Smoke on the Water: The Deep Purple Story”, Blackmore resumiu os problemas com Gillan de maneira simples:
“Eu não me dava nada bem com Ian no fim das contas. Eu queria tocar boa música e ele queria tocar música ruim. Ele tinha uma visão diferente, no lado oposto ao meu do espectro.”
Ritchie Blackmore saiu da banda em 17 de novembro de 1993, no meio de uma turnê, em Helsinque. Ian Gillan reconheceu em “Smoke on the Water: The Deep Purple Story” que se não fosse pelo empresário Bruce Payne ter dito algumas verdades para a banda, eles não teriam continuado:
“Ele nos falou sobre certas coisas que não estávamos a par, o que nos convenceu a continuar. Jon, Ian [Paice] e Roger haviam sido profundamente afetados pelo que estava acontecendo, mas haviam persistido. Jon e Ian tiveram coisas terríveis feitas com eles, como quando foram excluídos do processo de composição. O problema é que para Ritchie, a banda era ele. E não era. Ele era apenas um quinto do todo. Não é apenas o artilheiro o segredo para um grande time, é também o meio e a defesa.”
O Purple continuou em atividade. A opção encontrada para ocupar a vaga de Blackmore naquele momento foi Joe Satriani, que chegou a bater o telefone na cara de seu empresário quando recebeu a oferta, ofendido com a ideia de substituir um de seus ídolos. Felizmente, ele contou à Ultimate Classic Rock, mudou de ideia:
“É claro, 30 minutos depois eu liguei de volta pro meu empresário e falei: ‘ei, você já falou não pros caras?’. E ele falou: ‘não, eu sabia que você mudaria de ideia’.”
Satriani permaneceu na banda até a metade de 1994, quando recusou um convite para ser efetivado. Ele contou em um Q&A (via Ultimate Guitar) a razão de não ter se juntado à banda permanentemente:
“Se eu pudesse, eu teria feito. Mas eles meio que me emprestaram da minha carreira solo logo quando estava entrando numa fase interessante. Eu não achava que seria capaz de dar a eles 100%, e é o que eles precisavam. Eles estavam substituindo Ritchie Blackmore e eles precisavam de alguém 100%. Graças a Deus eles encontraram Steve Morse, porque ele era um gênio.”
Steve Morse era guitarrista do Dixie Dregs e teve um período de sucesso no Kansas. Ele permaneceu no Deep Purple por 28 anos, saindo apenas em 2022 para cuidar de sua esposa, Janine, após um diagnóstico de câncer.
Em entrevista de 2018 para o programa de Eddie Trunk (via Blabbermouth), Ian Gillan falou sobre a importância da saída de Ritchie Blackmore e a entrada de Steve Morse para a continuação do Deep Purple.
“Você precisa lembrar de algumas coisas. O Deep Purple estava afundando com Ritchie. Nós estávamos tocando para um quarto de lotação na Europa, um dos nossos territórios mais fortes – na Alemanha. Lugares menores, e eles não estavam sequer cheios. Se a gente tivesse continuado daquele jeito e se Ritchie não tivesse saído, isso teria sido o fim da história. E a outra coisa foi a resposta de Steve para aquela pergunta quando fizemos nossa primeira coletiva. Quando alguém perguntou pra ele: ‘como se sente calçando os sapatos de Ritchie Blackmore?’. E ele respondendo: ‘pelo que sei, Ritchie levou os sapatos consigo quando saiu da banda’.”
O Deep Purple continua junto até hoje. Jon Lord morreu em 2012 – ele deixou o grupo em 2002 –, mas Ian Gillan, Ian Paice e Roger Glover permanecem na formação.
Deep Purple – “The Battle Rages On…”
- Lançado em 2 de julho de 1993 pela RCA / BMG
- Produzido por Thom Panunzio e Roger Glover
Faixas:
- The Battle Rages On
- Lick It Up
- Anya
- Talk About Love
- Time to Kill
- Ramshackle Man
- A Twist in the Tale
- Nasty Piece of Work
- Solitaire
- One Man’s Meat
Músicos:
- Ian Gillan (voz)
- Ritchie Blackmore (guitarra)
- Roger Glover (baixo)
- Jon Lord (teclados)
- Ian Paice (bateria)
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