Bruce Springsteen era o futuro do rock. Desde o momento que foi apresentado a John Hammond, lendário caça-talentos da Columbia responsável por assinar Bob Dylan, o cantor e compositor era visto como um artista capaz de elevar a música a um outro patamar.
Essa expectativa se tornou realidade com “Born to Run”, lançado em 1975. O impacto do disco, considerado hoje um dos maiores da história do rock, foi capaz de colocar Springsteen na capa da Time e da Newsweek na mesma semana, um feito inédito para qualquer artista.
Foi então que uma série de batalhas começaram. Springsteen se viu impossibilitado de gravar. Normalmente, algo assim destruiria um cantor. Entretanto, estamos falando de alguém visto como um artista capaz de elevar a música a um outro patamar.
Briga com empresário
Ao mesmo tempo que Bruce Springsteen estava chegando no topo, a relação dele com uma das pessoas responsáveis por acompanhá-lo até ali, Mike Appel, estava praticamente destruída.
O cantor havia assinado em 1972 um contrato de produção e gerenciamento com a empresa de Appel, a Laurel Canyon Ltd, que basicamente abria mão de muitos dos direitos de seu catálogo. Isso não foi um problema tão grande durante os dois primeiros discos – “Greetings from Asbury Park, N.J.” e “The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle”, ambos de 1973.
Mas quando “Born to Run” se tornou um sucesso, atingindo o 3º lugar nas paradas americanas, o cantor percebeu que recebia menos de 10% da renda do álbum e turnê.
No mesmo período, Mike Appel tentava fazer Springsteen assinar um novo acordo de longo prazo. O cantor, agora armado de conhecimento sobre o quanto seu contrato anterior não lhe era favorável, queria apelar para a amizade entre os dois com o intuito de chegar a um consenso.
Springsteen escreveu em sua autobiografia, “Born to Run” (via Ultimate Classic Rock), sobre o momento que a relação azedou de vez:
“Agora, eu estava a par dos nossos contratos mais antigos, mas o que eles eram comparados à gente? A música, a plateia, o que a gente tinha passado junto, nossos sentimentos um pelo outro… Eu comecei: ‘Mike, eu sei que os contratos são ruins, mas está tudo bem. Nós podemos consertar isso, são apenas papéis. A gente pode rasgar tudo e começar de novo. Temos X dólares por cinco anos de trabalho. Vamos dividir e ir adiante. Me fala só quanto que é meu e quanto é seu’. Eu estava procurando por uma resposta justa e racional. Ao invés disso, Mike respondeu: ‘Bem, depende’.”
Appel ofereceu termos mais favoráveis a Springsteen se ele assinasse por mais cinco anos com ele. O cantor escreveu em sua autobiografia:
“Naquele momento, as palavras de Mike foram além de negociação e se tornaram uma ameaça muito mal velada. Entre amigos, isso não é legal. Nós iríamos brigar, feio.”
Em 27 de julho de 1976, Springsteen entrou com um processo contra a Laurel Canyon, alegando fraude. O cantor queria trocar Appel como seu produtor e empresário por Jon Landau, crítico musical famoso por seu trabalho na Rolling Stone que ajudou a produzir “Born to Run”.
Mike processou Bruce de volta por quebra de contrato e entrou com uma liminar o impedindo de entrar no estúdio com Landau para gravar o disco seguinte.
Em sua autobiografia, “Born to Run”, Springsteen refletiu sobre
“A ironia é que eu tive muito a ver com o levantamento e a existência dessa tenda no canto de meu parque de diversões particular. Mike não deveria ter sido tão controlados, mas meus medos de jovem e recusa de aceitar responsabilidade por minhas próprias ações também contribuíram para isso tudo acontecer.”
Ao final de dez meses de batalha judicial, os dois lados chegaram a um acordo. O advogado de Appel, Leonard Marks, categorizou à Rolling Stone os termos como uma vitória absoluta de seu cliente, tamanha foi a quantia paga para livrar Springsteen do contrato. Na mesma matéria, contudo, o advogado do cantor, Peter Parcher, discordou:
“Se Leonard Marks realmente fala que ele teve uma ‘vitória completa’, então não é verdade. Eu sugiro que a imprensa observe quem irá produzir o próximo disco de Bruce; se a Laurel Canyon tem algo a ver com o álbum em termos de produção ou gerenciamento; e quem agora controla o catálogo inteiro de canções.”
Um consciente prolífico
Enquanto Bruce Springsteen não podia entrar em um estúdio, ele e sua banda precisavam de dinheiro. Então saíram em turnê com o álbum “Born to Run” e compunham novas músicas em ritmo alucinado.
Ao contrário de sua obra até ali, Springsteen agora criava canções mais enxutas, sem versos apinhados de palavras. A música continuava exuberante, mas agora tinha uma corrente mais sombria. Os Estados Unidos enfrentavam um período político e social complicado, com escândalos políticos se acumulando e o fim da Guerra do Vietnã.
Enquanto isso, ele desenvolveu amizades com Robert De Niro e Martin Scorsese, nomes de destaque da chamada Nova Hollywood. O próximo disco originalmente se chamaria “Badlands”, inspirado em parte pelo filme dirigido por Terrence Malick – cuja dramatização dos assassinatos cometidos por Charles Starkweather e Caril Ann Fulgate entre 1957 e 58 ainda inspirou outro álbum do cantor, “Nebraska” (1982).
Ele buscava inspiração também na obra de John Steinbeck, principalmente nos livros “East of Eden” e “As Vinhas da Ira”, por identificar paralelos com sua família e a realidade social da época.
A classe trabalhadora de onde Springsteen surgiu estava começando a sentir os efeitos do processo de desindustrialização de cidades. Com fábricas fechando por toda parte, o desemprego só aumentava. O cantor sentia uma necessidade de se manter antenado a isso, para não se perder no sucesso, como contou ao The Guardian em 2016:
“A força por trás de ‘Darkness…’ era uma coisa de sobrevivência. Depois de ‘Born to Run’, eu tive uma reação à minha boa fortuna. Com sucesso, eu achei que muita gente que veio antes de mim havia perdido uma parte essencial de si. Meu maior medo era que sucesso iria mudar ou diminuir aquela parte de mim.”
Bruce e a E Street Band – Stevie Van Zandt (guitarra), Gerry Tallent (baixo), Roy Bittan (piano), Danny Federici (órgão Hammond), Clarence Clemmons (saxofone) e Max Weinberg (bateria) – entraram no Atlantic Studios com Jon Landau em 1 de junho de 1977.
Inicialmente, a banda se pôs a trabalhar em canções já finalizadas durante a turnê, mas rapidamente o material foi crescendo. Springsteen rapidamente escrevia canções em cima de ideias musicais ainda sem letra, além de testar faixas destinadas a outros artistas, como foi o caso de “Fire”, composta para Elvis Presley.
Após três meses, o ambiente no Atlantic Studios se provou inadequado para Springsteen. Então, eles mudaram as sessões para a Record Plant em Nova York, onde haviam gravado “Born to Run”.
Uma grande dificuldade presente no processo inteiro era o fato de ninguém na banda ou Jon Landau conhecerem técnicas de produção. No documentário “The Promise: The Making of Darkness on the Edge of Town”, uma cena mostra o cantor frustrado enquanto gravava a bateria de Max Weinberg por nenhum dos presentes conseguir retirar o som da baqueta.
Weinberg refletiu sobre a experiência toda com bom humor ao The Guardian:
“Foi um aprendizado para todos nós. Frustrante e engraçado ao mesmo tempo. Estávamos tentando fazer um grande disco. Toda vez que tocávamos, a gente estava tentando fazer algo significativo, que iria durar. Estávamos tentando tantas coisas diferentes. Bruce nos fazia ensaiar por dias numa canção e então descartá-la. Ele tinha um plano – às vezes não era tão óbvio para o resto de nós.”
Pequenas ajudas começaram a surgir. Steven Van Zandt, que recebeu um crédito de produtor assistente, revelou à Rolling Stone (via Guitar.com) a razão:
“Eu ganhei um crédito de arranjador em “Darkness…” porque, naquele ponto, ele [Bruce] queria começar a deixar as coisas mais enxutas em comparação à natureza épica de ‘Born to Run’. E isso é a minha praia. Eu sou o Sr. Dois Minutos e Meio.”
Nesse período, Springsteen compôs entre 50 e 70 músicas. Algumas delas foram aproveitadas em álbuns subsequentes do cantor, enquanto outras acabaram cedidas a outros artistas – Patti Smith teve seu único hit com “Because the Night” em 1978 e as Pointer Sisters chegaram ao 2º lugar da Billboard com “Fire”.
No final, as dez músicas selecionadas tinham em comum uma qualidade crua. Bruce Springsteen queria expressar muitas coisas, mas a principal, ele contou à Rolling Stone em 1978, era como lidar com desilusão:
“É meio difícil explicar sem ficar pesado. É o compromisso dos personagens. Diante de todas as traições, diante de todas as imperfeições que te cercam em qualquer tipo de vida que você leva, é a recusa do personagem de abrir mão de sua própria humanidade, de abrir mão de sua fé no outro lado. É uma certa perda de inocência – mais do que nos outros álbuns.”
Provar a noite toda
O título decidido, “Darkness on the Edge of Town”, surgiu a partir da última música gravada para o álbum. Inicialmente composta durante a turnê de “Born to Run” sob o nome “The Racer”, ela foi uma das faixas descartadas nos estágios iniciais de gravação no Atlantic Studios.
Em 8 de março de 1978, dois meses após o fim das gravações na Record Plant, Springsteen chamou a banda inteira para trabalhar numa nova versão da música. No dia 10 eles terminaram de gravar e a mixagem foi concluída no fim do mês, bem a tempo de entrar na tracklist final.
O nome “Darkness on the Edge of Town” é sinônimo da capa do disco. A foto de Springsteen com sua jaqueta de couro e cabelo desgrenhado foi tirada por Frank Stefanko, um fotógrafo então desconhecido, apresentado ao cantor por Patti Smith.
Stefanko tirou as fotos em sua casa, na cidade de Haddonfield, no estado de Nova Jersey. Ele sequer tinha escutado o disco. Concentrava-se apenas em retratar Springsteen como era naquele dia perante ele.
Em entrevista ao The Guardian, o cantor lembrou de sua reação:
“Quando vi a foto eu disse: ‘esse é o cara nas canções’. Eu queria a parte de mim que ainda é aquele cara na capa. Frank tirou toda a celebridade e deixou só a essência. É sobre isso que o disco se trata.”
“Darkness on the Edge of Town” foi lançado em 2 de junho de 1978, com pouquíssima divulgação por parte da Columbia, a pedido de Springsteen. O disco chegou ao 5º lugar das paradas americanas e vendeu mais de três milhões de cópias. Bem menos que “Born to Run”, mas o cantor queria estabelecer sua credibilidade como artista sob seus próprios termos, como contou ao The Guardian em 2016:
“Pessoas acharam que a gente já era. Acabados. Eles achavam que ‘Born to Run’ era uma criação da gravadora. Tivemos que provar nossa viabilidade toda noite e isso levou muitos anos. Você precisava estar comprometido.”
A turnê “Darkness” acabou sendo o palco em que Springsteen se estabeleceu mesmo não como o futuro do rock, mas seu presente. A banda ficou conhecida por suas maratonas musicais, contendo canções não apenas do disco, mas outtakes que incluíam os singles feitos famosos por outros artistas.
Por mais que “Born to Run” tenha sido o momento de ruptura de Bruce Springsteen e sua ascensão à fama, “Darkness on the Edge of Town” foi quando ele moldou sua imagem de artista como seria conhecida a partir de então.
Bruce Springsteen – “Darkness on the Edge of Town”
- Lançado em 2 de junho de 1978 pela Columbia
- Produzido por Bruce Springsteen, Jon Landau e Steven Van Zandt
Faixas:
- Badlands
- Adam Raised a Cain
- Something in the Night
- Candy’s Room
- Racing in the Street
- The Promised Land
- Factory
- Streets of Fire
- Prove It All Night
- Darkness on the Edge of Town
Músicos:
- Bruce Springsteen (vocais, guitarra, gaita)
- Roy Bittan (piano, backing vocals)
- Clarence Clemons (saxofone, backing vocals)
- Danny Federici (órgão Hammond, glockenspiel)
- Garry Tallent (baixo)
- Steven Van Zandt (guitarra, backing vocals)
- Max Weinberg (bateria)
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