Aviso de conteúdo: o artigo sobre Tina Turner a seguir contém descrições gráficas de abuso doméstico, agressões físicas e psicológicas contra mulheres. Para denunciar e buscar ajuda a vítimas de violência contra mulheres, ligue 180.
Era 1º de julho de 1976. Os Estados Unidos estavam a três dias de celebrar o bicentenário de sua independência e a Ike & Tina Turner Revue iriam para Dallas fazer um show.
A caminho do aeroporto, Ike agrediu Tina Turner porque ela não quis uma barra de chocolate. Durante o voo, ele chutou a esposa repetidamente na frente de toda a banda e equipe. O abuso sofrido pela cantora era uma figura constante no cotidiano dos dois desde a primeira vez que ela tentou estabelecer qualquer tipo de independência.
Porém, aquela vez era diferente. O peso de 16 anos de abuso havia finalmente motivado ela a fazer algo a respeito.
Antes disso, sejamos claros sobre o grau das agressões e controle exercidos por Ike.
Controle através do medo
Ike Turner já era um músico estabelecido na cena de St. Louis – sendo responsável por uma das primeiras gravações do que veio a ser o rock’n’roll, a canção “Rocket 88” – quando conheceu Anna Mae Bullock, uma garota da comunidade rural Nutbush, próxima a Brownsville, no Tennessee. Ela chamou sua atenção pela voz e entrou para a banda dele, The Kings of Rhythm, como backing vocal.
“A Fool in Love” era uma canção composta por Ike para outro artista, Art Lassiter, que não compareceu à sessão. Anna Mae, que estava tendo um caso com Ike, perguntou se podia cantar no lugar.
O resultado acabou chamando a atenção das gravadoras, especialmente pela qualidade dos vocais dela. Sempre foi mais pelo talento dela que dele.
Em julho de 1960, o primeiro single creditado a Ike & Tina Turner, “A Fool in Love”, se tornou um sucesso, chegando ao 2º lugar das paradas de R&B e a 27ª posição na Billboard Hot 100.
Ike estabeleceu um sistema onde ele pagaria o aluguel da casa onde Tina morava, mas ficaria com todo o resto do dinheiro faturado nas vendas de singles, discos e shows. A cantora revelou no livro “I, Tina, My Life Story”, escrito em parceria com Kurt Loder, que sofreu agressão pela primeira vez quando retrucou a respeito disso:
“Eu falei que não queria mais me envolver com ele. E essa foi a primeira vez que ele bateu em mim. Com um alargador de sapatos – sabe aquelas coisas de madeira com parafusos no meio? Pegou um e começou a me bater com ele. Depois ele me fez ir pra cama e transou comigo. Meu olho estava todo inchado.– Deus, era horrível. E esse foi o começo, o começo de Ike colocando medo em mim. Ele mantinha controle de mim através do medo.”
Ao longo dos anos, o abuso foi só se tornando pior à medida que o sucesso deles aumentava, como ela escreveu no livro “My Love Story” (via USA Today):
“Ele jogou café quente na minha cara, me dando queimaduras de terceiro grau. Ele usava meu nariz de saco de pancadas tantas vezes que eu podia sentir o gosto de sangue na garganta enquanto cantava. Ele quebrou meu maxilar. E eu não conseguia lembrar como era não ter um olho roxo.”
Tina tentou se matar em 1968, ingerindo dezenas de calmantes. Ela acordou numa cama de hospital com Ike falando que ela deveria ter morrido.
Em “I, Tina, My Life Story”, Tina escreveu sobre por que não conseguia deixá-lo na época:
“Por que eu não larguei ele? É fácil falar agora que eu deveria ter feito. Mas olha minha situação então: eu já tinha um filho e dei à luz outro bebê dele. Cantar com Ike era como eu ganhava a vida. E eu vivia melhor do que em qualquer outra época da minha vida. O que eu ia fazer? Correr de volta para o Barnes Hospital e tentar conseguir meu emprego de assistente de enfermagem de volta? Não. Eu estava ferida e estava com medo, mas eu não podia pensar em voltar para trás. Eu precisava ir para a frente.”
Entretanto, aquele 1º de julho de 1976 era diferente.
Liberdade para Tina Turner
A comitiva chegou em Dallas, e Ike bateu em Tina ainda mais no carro a caminho do hotel. A ponto de ela chegar com o rosto inchado e ensanguentado em um nível que pessoas se perguntavam como ela poderia se apresentar naquela noite.
Enquanto Ike dormia, Tina fugiu, levando consigo apenas 36 centavos e um vale-combustível da Mobil. Nenhuma de suas roupas, joias, perucas ou sequer seu filho. Era uma questão de sobrevivência.
Ela se escondeu em um motel do outro lado da rodovia, se identificando para o gerente e oferecendo-lhe pagar quando pudesse. O homem acreditou em sua história e ofereceu comida e um quarto. Além disso, colocou um segurança de prontidão caso Ike viesse atrás dela.
A artista voltou à Califórnia, onde os dois moravam, e entrou com o pedido de divórcio, exigindo pensão alimentícia para ela e os quatro filhos, que ela reivindicou a custódia. Nesse período, Tina estava sem dinheiro algum: trabalhava de empregada doméstica e sustentava a si mesma e as crianças na base de cupons de comida do governo americano.
Mesmo assim, ela não voltava para Ike. Nem sequer quando seus capangas tentavam intimidá-la atirando contra sua casa de noite, como ela contou em “My Love Story”:
“Uma noite… nós ouvimos esse ‘bangue, bangue, bangue’ muito alto vindo do lado de fora. Quando olhamos, vimos que a janela traseira do carro de Rhonda [Graam, sua assistente e amiga] havia sido estourada com balas. Outra noite, eles chegaram a atirar contra a casa. Nós ficamos com tanto medo que Rhonda dormiu no quarto dos meninos e eu dormi no armário porque o quarto tinha uma clarabóia e eu tinha medo que haveriam mais tiros.”
Mesmo assim, ela não voltou para Ike. O divórcio foi finalizado em março de 1978, com ela retendo os direitos das canções compostas por ela, além de carros, joias e roupas. O mais importante de tudo foi ter mantido para si o direito de se chamar Tina Turner.
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