Poucas cantoras e compositoras de rock possuem o mesmo respeito de fãs que Polly Jean Harvey. A inglesa construiu uma carreira marcada por canções indo do folk ao noise rock, mas sempre marcadas por uma profunda visceralidade, seja por seus vocais, o conteúdo das letras, ou ambos ao mesmo tempo.
Mas existe um álbum acima de todos quando falamos sobre a carreira dela. Uma porrada sonora gravada com Steve Albini no mesmo estúdio que o Nirvana registrou “In Utero”.
Vamos falar de “Rid of Me”.
PJ Harvey Trio
PJ Harvey nasceu filha de um pedreiro e uma escultora em Dorset, no sudoeste da Inglaterra. Sua família seguia o estilo de vida hippie autosuficiente, com seus pais organizando shows de rock pela região onde moravam e doutrinando a filha no tipo de música que gostavam. Isso significava muito folk, Bob Dylan, John Lee Hooker, Howlin’ Wolf e Captain Beefheart.
Numa entrevista à Melody Maker em 1993, Harvey explicou sua predileção por tais artistas:
“É a única música capaz de me fazer sentir algo. Estou sempre procurando pelos extremos nas coisas. É isso que faço com minha música, empurrar algo o máximo que dá. A ponto de ser quase inaceitável.”
A cantora inicialmente começou a tocar saxofone, até migrar para a guitarra, onde serviu como música de apoio para alguns artistas locais. A primeira grande chance de PJ como música foi quando entrou para o grupo Automatic Dlamini em 1988.
Liderado por John Parrish, o Automatic Dlamini era um grupo de rock experimental com uma formação em fluxo constante. Harvey fez parte da banda até 1991. Durante esse período, eles lançaram os dois primeiros álbuns, apesar dela não aparecer em nenhum deles.
Em entrevista ao The Guardian em 2016, Harvey refletiu sobre seu tempo no grupo:
“Eu acabei não cantando tanto assim, mas estava feliz de aprender a tocar a guitarra. Eu compus muito no tempo que passei com eles, mas minhas primeiras canções eram bem ruins. Eu estava escutando muita música folk irlandesa na época, então as canções eram bem folky, cheias de flautinhas e essas coisas. Demorou um tempo até eu me sentir pronta para tocar minhas próprias canções em frente a outras pessoas.”
Durante o tempo dela no Automatic Dlamini, PJ também se tornou bastante influenciada por artistas mais contemporâneos dela: Nick Cave e Pixies. Quando ela deixou o grupo, em 1991, ela levou consigo o baterista Rob Ellis e o baixista Ian Oliver, para formar a banda PJ Harvey Trio.
A esse ponto, em junho de 1991, a cantora ainda não levava a carreira tão seriamente, se matriculando e sendo aceita para o curso de escultura na St. Martin’s College, em Londres. Oliver havia deixado a banda, retornando ao Automatic Dlamini, e foi substituído por Steve Vaughan. Polly Jean estava questionando seu futuro na música. Entretanto, a demo do trio chamou a atenção de gravadoras, e eles assinaram um contrato com o selo independente Too Pure.
Ela decidiu trancar os estudos, e em outubro daquele ano, saiu seu primeiro single, “Dress”. A canção imediatamente chamou a atenção de um dos DJs mais proeminentes do Reino Unido, John Peel, que escreveu como crítico convidado sobre a música na Melody Maker:
“O jeito como Polly Jean parece esmagada pelo peso de suas próprias canções e arranjos, como se o ar estivesse literalmente sendo sugado para fora delas… admirável, apesar de nem sempre ser agradável.”
Peel convidou o grupo para gravar uma sessão ao vivo a ser transmitida no seu programa dia 29 de outubro de 1991, na qual tocaram e eles apresentaram ao mundo quatro canções inéditas: “Oh, My Lover”, “Victory”, Water e a que viria a ser o segundo single da banda, “Sheela-Na-Gig”.
Numa entrevista para a Puncture Magazine em 1992, Harvey explicou o significado por trás do título do single:
“‘Sheela-Na-Gig’ é uma estátua de pedra entalhada Celta de uma figura feminina agachada, abrindo sua vagina e rindo insanamente ao mesmo tempo. O que eu gostei sobre a estátua é que ela estava rindo e se despedaçando. Você tem humor e horror. É algo que quero muito explorar.”
Quando o disco de estreia do PJ Harvey Trio, “Dry” saiu, imediatamente ganhou aclamação da crítica e excedeu todas as expectativas de vendas, atingindo a 11ª posição na parada inglesa.
Kurt Cobain ficou fã a ponto de incluí-lo entre seus álbuns preferidos de todos os tempos, lista presente no livro “Journals”.
E toda essa atenção começou a incomodar Harvey, que confessou ao NME em 1992:
“Me incomoda que essas coisas tenham acontecido tão rápido porque para mim estamos recebendo mais que merecemos cedo demais. Nós ainda estamos nos entrosando como banda e eu ainda estou me encontrando como compositora. Não acho que merecemos os elogios que estamos recebendo no momento porque pra mim não somos nem de perto tão bons quanto podemos ser.”
Pressão e criatividade
A turnê e as pressões associadas a essa fama sendo colocada em seus ombros causou um desgaste emocional enorme em PJ Harvey. O grupo havia assinado um contrato com a Island Records após o sucesso inicial dos singles e agora ela estava na posição de precisar compor um segundo disco.
Felizmente, o disco começou a tomar forma cedo, como ela contou à Spin:
“Eu lembro começar a escrever a canção ‘Rid of Me’, sentada na cama no meu quarto do lado do aquecedor. Quando estou compondo para um disco, tem sempre uma canção que emerge como o lastro de tudo. Naquela época, eu queria muito escrever canções que chocassem. Quando eu estava na faculdade de arte, tudo que eu queria era chocar com minha arte. Quando eu escrevi ‘Rid of Me’, eu choquei a mim mesma. Eu pense, ‘Bem, se eu estou chocada, outras pessoas podem ficar chocadas.’ O som das palavras era poderoso, e o ritmo parecia limpo e simples de falar. Eu sabia que esse era o tipo de canção que estava tentando compor.”
Assim que a turnê terminou, o trio entrou no estúdio com o produtor Head. Após cinco dias, as sessões renderam “Man-Size Sextet”, chamada assim por ter a presença de um sexteto de cordas.
Entretanto, o processo bateu numa parede. Tensões entre integrantes da banda e o peso do sucesso fizeram Harvey ter um colapso nervoso, e ela abandonou Londres, buscando refúgio em Dorset, sua cidade natal.
Harvey alugou um apartamento em cima de um restaurante, e durante o período de recuperação, se pôs a compor o que seria a maior parte de “Rid of Me”. O período foi tão prolífico a ponto das canções chegarem ao resto da banda quase finalizadas, como disse Rob Ellis à Spin:
“As canções chegavam pra gente praticamente feitas. Nos ensaios, nós nunca questionávamos sobre o que era tal canção ou perguntávamos para Polly, ‘O que você está querendo fazer considerando que a letra é essa?’ Era puramente instintivo. E nós raramente precisamos mudar demais. Era quase instantâneo. No primeiro ensaio de uma música, o que quer que alguém tocava era a coisa certa imediatamente.”
O teor das letras em “Rid of Me” continuava a temática sexualmente carregada de “Dry”, que fazia a imprensa da época categorizar Harvey como um ícone – ou, dependendo do quão incomodado você fica com mulheres no rock, ameaça – feminista. Entretanto, a cantora recusava o rótulo, preferindo abraçar uma ambiguidade de intenções.
O conteúdo, por sua vez, mostrava uma compositora adotando os mesmos maneirismos líricos de seus ídolos – leia-se o uso constante de duplo sentido no blues – e os aplicando num contexto pós-revolução sexual. Polly Jean Harvey sempre usou de sua música para exaltar o horror e a beleza da figura feminina, a natureza animalesca do sexo e o ridículo da cultura masculina.
Um ótimo exemplo disso em “Rid of Me” é encontrado em outro single do disco, “50ft Queenie”. Na canção, Harvey descreve a si mesma como uma gigante devoradora de homens, uma ideia que ela revelou em entrevista à Melody Maker em 1993 ser influência de rap:
“Eu gostei muito da contação de vantagem, do jeito como rappers dizem seus próprios nomes várias vezes. Eu queria compor algo sobre uma personagem bem difícil de aturar. Ela é grande porque se alimenta de homens e essa é uma ótima fonte de proteína.”
Tensões e o fim do trio
O trio decidiu gravar “Rid of Me” com Steve Albini, e com ele foram até o Pachyderm Studios, em Cannon Falls, Minnesota. Harvey descreveu sua admiração pelo engenheiro à Spin:
“Eu sabia que queria trabalhar com Steve Albini ao escutar os Pixies e ouvir os sons que ele estava conseguindo, que eram diferentes de todos os outros sons que eu havia escutado em vinil. Eu queria muito aquela sonoridade crua, bem real. Eu sabia que combinaria com as canções. É como tocar objetos reais ou sentir o grão da madeira. Isso é o que o som dele é pra mim. É bem tangível. Dá pra quase sentir a sala.”
O período de gravações em Minnesota foi de duas semanas, mas segundo Harvey ao programa 120 Minutes, a maior parte do disco foi feito em apenas três dias. O trio havia vindo direto de uma turnê rápida pelos EUA, e o peso de estar constantemente na estrada trouxe muita tensão, como Rob Ellis contou à Spin:
“Eu lembro de chegar no estúdio me sentindo exausto. Estávamos fazendo tantos shows. Estávamos passando por um período difícil. Se extendia domesticamente para Polly. Definitivamente pra mim também. Meu casamento estava completamente nas últimas naquela época. Minha vida pessoal estava ferrada. Eu lembro andar sozinho pelo estúdio, na neve, em silêncio absoluto. Não tinha som de pássaros nem nada. A neve absorvia o som dos seus passos. Era uma sensação muito estranha. A gente se sentiu completamente isolados. É difícil dizer como essa atmosfera transparece no estúdio, mas nós éramos todos bem individualistas. Estávamos começando a ficar bem chatos, e ficando um em cada canto em termos do que estávamos fazendo como trio. Nós estávamos trancados em nossos pequenos mundinhos. A casa e o isolamento trouxeram ainda mais disso.”
Quando as sessões terminaram, o resultado foi tão satisfatório a ponto de Albini usar como exemplo das possibilidades do estúdio em Minnesota para outro grupo interessado em trabalhar com ele: o Nirvana.
Albini descreveu o papel que “Rid of Me” teve nos planos para “In Utero” à Spin:
“Parte da conversa inicial com o Nirvana era que, com um viciado na banda, arranjar um estúdio no meio do mato era melhor que um na cidade para diminuir as chances de uma recaída. Eles todos acharam isso uma boa ideia, mas não estavam familiarizados com o que havia sido feito no lugar [Pachyderm Studios]. Então eu lhes mandei uma cópia de ‘Rid of Me’. Kurt me falou especificamente que ele achou a voz de Polly ótima naquelas gravações. Ele gostou mesmo do jeito como os vocais dela saíram. Ele era um fã.”
“50ft Queenie” foi o primeiro single lançado de “Rid of Me”, em abril de 1993. Surpreendentemente, chegou ao 27o lugar das paradas britânicas. O clipe, dirigido por Maria Mochnacz refletia uma mudança estética que Harvey estava adotando nos shows mais recentes do trio. Ao contrário do visual mais sério até então, ela agora usava vestidos coloridos, batom vermelho, óculos escuros e boás, criando uma persona rock’n’roll como meio de lidar com a fama e distanciar PJ Harvey, a rockstar, da pessoa Polly Jean.
“Rid of Me” saiu em 4 de maio de 1993, novamente aclamado pela crítica, o que a banda não esperava por considerar o disco tão difícil e anticomercial. Mais surpreendente ainda foi o fato do álbum ter atingido o 3º lugar das paradas inglesas e a 10ª posição da Heatseekers da Billboard.
A esse ponto, era fato consumado que o PJ Harvey Trio estava para acabar a qualquer momento. Tensões foram simplesmente aumentando durante a turnê, especialmente após serem forçados a ter o Radiohead como banda de abertura, e cada um foi por seu caminho ao final de um período abrindo para o U2.
Durante esse período, Harvey falou à Rolling Stone:
“Me deixa triste. Eu não teria chegado aqui sem eles. Eu precisava deles no começo – muito. Mas eu não preciso mais deles. Nós todos mudamos como pessoas.”
A primeira aparição importante de PJ Harvey como artista solo foi em setembro de 1993, quando se apresentou sozinha no “Tonight Show”, tocando uma versão visceral da faixa-título de “Rid of Me”.
Em outubro de 1993, ela lançou “4-Track Demos”, uma compilação de canções inéditas e outras em estado bruto, provando o quanto a qualidade de “Rid of Me” se devia à sua capacidade como compositora.
Daí em diante, Harvey se estabeleceu como uma das cantoras e compositoras inglesas mais influentes e respeitadas da sua geração, vendendo mais de um milhão de cópias do seu álbum seguinte, “To Bring You My Love” (1995), e sendo a única artista a vencer o maior prêmio da música inglesa, o Mercury Prize, mais de uma vez – por “Stories From The City, Stories From The Sea” (2001) e “Let England Shake” (2011).
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