Nunca o nome de um festival foi tão condizente com a realidade quanto The Metal Fest. Em um país que respira metal, o evento reuniu bandas dos mais variados estilos, porém sem espaços para modernidades. Era o metal em suas formas mais puras, sem as alterações notórias do passar das últimas duas décadas.
O foco acabou sendo o metal extremo, todavia, tivemos uma das mais brilhantes pérolas do metal melódico, o Stratovarius, espremido entre o grindcore insano do Napalm Death e o heavy metal visceral do Accept.
O cast estrelar do evento chileno – realizado na Movistar Arena, em Santiago, no último dia 23 de abril – serve como uma espécie de aquecimento para o Summer Breeze, que rola no Brasil nos dias 29 e 30, no Memorial da América Latina, em São Paulo. Mas vamos por partes.
*Por Clovis Roman e Kenia Cordeiro
Benediction compensa o “minuto de atraso”
O The Metal Fest voltou ao calendário chileno após nove anos, em uma edição um pouco mais enxuta que outrora: antes eram dois dias, agora, apenas um. E que dia! No começo da tarde, com a Movistar Arena já bastante preenchida com os insanos headbangers daquele país, o Benediction abriu os trabalhos no Metal Stage, o principal.
Houve um atraso de um mísero minuto, que gerou um momento curioso: alguém na plateia gritou, claramente em tom de pilhéria: “Um minuto de atraso! Quero meu dinheiro de volta”. No primeiro acorde, tudo foi esquecido.
O início com “Divine Ultimatum” levou o público a loucura de imediato. Aqueles que não conheciam a música, agitavam insanamente, criando um clima muito intenso. Em cima do palco, os britânicos não baixaram o ritmo em momento algum, sendo com músicas do último disco, “Scriptures” (2020), como a densa “Progenitors of a New Paradigm”, “Scriptures in Scarlet” e “Stormcrow”, seja com clássicos primordiais como “Nightfear”, “Unfound Mortality” e “Vision in the Shroud”.
O primeiro álbum do Benediction, “Suconscious Terror” (1990), trazia como vocalista Barney Greenway, que logo depois entrou no Napalm Death, no qual permanece até hoje. Como ambas as bandas estavam no mesmo evento, dava para sonhar com uma participação do vocalista com o Benediction. E rolou. Na faixa-título, sob uma semipenumbra, Barney subiu ao palco com os antigos colegas e ocasionou o primeiro momento de insanidade coletiva. Única representante do colossal “The Dreams You Dread”, a canção homônima foi apresentada em uma versão especialmente furiosa, abrindo caminho para a saideira “Magnificat”, do “Grind Bastard” (1998). Um repertório sólido e rápido, que durou 45 minutos e deixou saudades assim que acabou.
Repertório – Benediction:
- Divine Ultimatum
- Scriptures in Scarlet
- Vision in the Shroud
- Unfound Mortality
- Nightfear
- Progenitors of a New Paradigm
- The Grotesque
- Subconscious Terror (com Barney Greenway, do Napalm Death)
- Stormcrow
- The Dreams You Dread
- Magnificat
Dark Angel com ódio musical e velocidade
Um fator que uniu quase todas as bandas da noite foi a mudança de integrantes muito recentes ou até mesmo em cima da hora. Com o Benediction, tivemos o baixista Nik Sampson, que entrou este ano.
Cruzando o oceano, vindos dos Estados Unidos, o Dark Angel é uma lenda do thrash metal. Na formação, a novidade foi a entrada de Laura Christine no lugar do lendário e membro original Jim Durkin, que faleceu cerca de um mês e meio antes do festival.
A despeito da fatalidade, o quinteto entregou uma performance repleta de ódio musical e velocidade. O ritmo demente foi instaurado logo com “We Have Arrived” e “Time Doesn’t Heal”, faixas homônimas do debut e do quarto álbum.
O vocalista Ron Rinehart foi brilhante na fantástica “Never to Rise Again”, incendiando ainda mais o show que entregou clássicos do inquestionável “Darkness Descends”, como “The Burning of Sodom” e a própria “Darkness Descends”.
Na bateria, Gene Hoglan, um dos bateristas mais sobrenaturais da história do metal, com uma execução acima de qualquer questionamento. Curiosamente, sua ex-banda, o Testament, também integrava o cast, mão não rolou uma participação especial.
Repertório – Dark Angel:
- We Have Arrived
- Time Does Not Heal
- Never to Rise Again
- The Burning of Sodom
- No One Answers
- Darkness Descends
Pausa para o Hell Stage
Além de uma estrutura imensa e qualidade de som primorosa, o The Metal Fest proporcionou um segundo palco, o Hell Stage, repleto de bandas chilenas e tendo como headliner o divertido/curioso Finntroll.
Durante a tarde, as bandas locais apresentaram shows excelentes, mostrando a força da cena metal daquele país. O Torturer, por exemplo, mesmo com sol a pino, apresentou seu death metal com nuances do thrash de maneira brutal, como um rolo compressor.
E diferentemente do Brasil, os headbangers prestigiaram cada uma delas em grande número. O amplo espaço, ao ar livre, ficou apinhado de gente durante todo o dia. Temos muito o que aprender com eles.
Napalm Death explosivo como uma bomba atômica
Voltando ao cenário principal, chegava a vez dos mestres do grindcore, o Napalm Death. A surpresa veio quando constatamos que o baixista Shane Embury não estava presente, forçando o grupo britânico a contar com um substituto, Adam, que cumpriu sua função com excelência, ajudado, claro, por usar o mesmo setup de Embury, com aquele timbre tosco e encorpado tão característico.
Reorganizar as coisas na pressa levou à eliminação de algumas canções atemporais, como “I Abstain”, “Everyday Pox” e “Unchallenged Hate”, algo que, todavia, não maculou a performance sempre consistente do Napalm Death.
Antes mesmo de começarem, o vocalista Mark Barney Greenway, explicou aos fãs, em espanhol, que Embury teve um problema de saúde que motivou sua ausência, mas que ele estava bem e não havia motivos para se preocuparem. Assim, começam com uma porção substancial de músicas novas, um deleite para aqueles que, assim como eu, já viram a banda ao vivo inúmeras vezes.
O atual momento criativo do Napalm Death é espetacular, mesclando groove em meio a pancadaria incessante que caracteriza o som deles desde sempre. Nos vocais, Barney sempre se reinventa e aposta mais em partes limpas, sem perder a fúria a cada verso vociferado. Como prova, a hipnótica “Invigorating Clutch” e os gritos desvairados na abertura de “Throes of Joy in the Jaws of Defeatism”.
Petardos como “Narcissus”, “Backlash Just Because”, “Fuck the Factoid” e “Contagion”, todas mais recentes, ditaram o tom do show curto e explosivo como uma bomba atômica, mesmo que as guitarras de John Cooke careçam um pouco de pegada e clareza nas palhetadas. O músico ainda não é considerado um membro oficial, e sim um substituto temporário de Mitch Harris, afastado por questões pessoais. O problema é que logo completa uma década desse afastamento e não há previsão de retorno.
Das velharias, “Lucid Fairytale” quase passou despercebida, por durar menos de um minuto, assim como “The Kill”, que mal soma 15 segundos e “You Suffer”, com menos de dois segundos. As sempre funcionais “Suffer the Children” (com discurso de Barney sobre como é um absurdo a religião querer determinar como a mulher deve cuidar do seu corpo) e “Siege of Power” traçaram um panorama daquilo que fizeram de melhor nessas quatro décadas de dedicação à música extrema. Os reis do grindcore, mesmo desfalcados, sempre entregam uma experiência única. Na despedida, Barney brada: “Hasta la vitoria, siempre!”.
Repertório – Napalm Death:
- Narcissus
- Backlash Just Because
- Fuck the Factoid
- Contagion
- Lucid Fairytale
- Invigorating Clutch
- Scum
- Throes of Joy in the Jaws of Defeatism
- Amoral
- The Kill
- Suffer the Children
- When All Is Said and Done
- You Suffer
- Nazi Punks Fuck Off (cover de Dead Kennedys)
- Siege of Power
Stratovarius, um oposto bem recebido
Depois do esporro musical do Napalm Death, uma banda que vai para o lado oposto dentro do metal, o Stratovarius. Um dos reis do metal melódico, o quinteto finlandês encontrou uma receptividade monstruosa, com a galera entoando todas as melodias e refrães, não apenas de clássicos como “Black Diamond”, “Paradise” e “Hunting High and Low”, mas também das músicas da atual fase com o guitarrista Matias Kupiainen, que está no lineup há 15 anos. Com ele, o grupo gravou os álbuns “Polaris”, “Elysium”, “Nemesis”, “Eternal” e “Survive”, que mantiveram a tradição de títulos com apenas uma palavra, instaurada em 1995 com “Episode”. Faixas como “Survive” (e aquele “oooo” vergonhoso que parece Coldplay) e “Unbreakable” foram entoadas em alto e bom som como fossem hits jurássicos.
Com menos de uma hora disponível de palco, o Stratovarius pouco se comunicou e focou na música portentosa e alegre que construíram sua identidade musical. A mais antiga foi a fabulosa “Speed of Light”, antecedida por “Stratosphere” (ambas do “Episode”). O novo álbum, “Survive”, teve, além da supracitada faixa-título, “Fronzen in Time” e “World on Fire”, que evocam elementos diametralmente opostos, e foram tocadas na sequência.
Para o final do set, a imagem no telão do palco surgiu com uma bandeira do Chile e o logotipo do conjunto, gerando um frenesi ainda maior. Com um entrosamento fantástico, Kotipelto cantando absurdos e Jens Johansson mandando um breve interlúdio de teclado bastante climático, o Stratovarius só pecou em reservar 30% do repertório para músicas mais novas. Em festivais, é comum fazer algo mais próximo de um best-of, ainda mais quando o tempo é escasso. Se bem que o Napalm Death fez isso e se saiu muito melhor. Em todo caso, mais uma noite memorável proporcionada pelos finlandeses.
Repertório – Stratovarius:
- Survive
- Eagleheart
- Stratosphere / Holy Light
- Speed of Light
- Paradise
- Frozen in Time
- World on Fire
- Black Diamond
- Unbreakable
- Hunting High and Low
De volta ao Hell Stage
Do lado de fora, no Hell Stage, o Torturer apresentou seu thrash metal com elementos thrash com muita fúria e blasfêmia, com petardos poderosos como “Santa Inquisición”.
A pista estava abarrotada de gente, assim como o setor superior, que era a borda externa da Movistar Arena. Quem estava nas cadeiras podia sair por um corredor e do lado de fora, mas ainda dentro da edificação, ver o palco externo com visão privilegiada.
Accept curto, porém intenso
O Accept manteve a sina de bandas com problemas na formação para aquela noite. Subiram ao palco com dois desfalques, e a explicação veio após duas músicas.
O vocalista Mark Tornillo explicou que o baterista Christopher Williams estava doente, com uma intoxicação alimentar, e, por isso, contaram com o técnico de bateria para supri-lo. A outra ausência foi mais fácil de ser resolvida. Como o Accept tem três guitarristas atualmente, Philip Shouse não causou um buraco na parede sonora de riffs e melodias memoráveis do Accept. Ainda mais quando os outros dois são Wolf Hoffmann, o criador de tudo, e Uwe Lulis, o monstruoso ex-guitarrista do Grave Digger.
Tantos problemas resultaram em um setlist curtíssimo, com apenas uma música nova, “Zombie Apocalypse”, na abertura, e o resto, clássicos. Não tem como não se render ao mais puro metal quando uma banda lendária despeja os seguintes clássicos na sequência, sem pausa para respirar: “Restless and Wild”, “Midnight Mover”, “Princess of the Dawn”, “Metal Heart”, “Teutonic Terror” e “Pandemic”.
Tornillo cantou demais, como de costume, enquanto o resto da banda cumpriu suas funções da maneira mais adequada possível. Passando por cima de tudo como uma besta enfurecida, o Accept fechou o show com, obviamente, “Balls to the Wall”. Ela não foi o ápice da noite, pois os coros vinham da multidão em todas as canções, não apenas nos maiores hits. Curto, porém intenso.
Repertório – Accept:
- Zombie Apocalypse
- Restless and Wild
- Midnight Mover
- Princess of the Dawn
- Metal Heart
- Teutonic Terror
- Pandemic
- Balls to the Wall
Testament sem surpresas, ainda bem
Os titãs do thrash metal, Testament, não tiveram questões de última hora, mas também trouxeram novidades no lineup. Após uma saída confusa e um tanto inesperada de Dave Lombardo – que havia retornado ao grupo não há muito tempo –, efetivaram e apresentaram aos fãs sul-americanos Chris Dovas, o novo baterista, que mostrou personalidade ao imprimir uma dose extra de violência ao som. A celebrada “Rise Up” abriu com fúria, incluindo efeitos pirotécnicos não vistos até aquele momento, dando espaço na sequência para a imortal “The New Order” e “The Pale King”, que traz uma enxurrada de riffs fantásticos, que remetem ao material clássico.
Sem querer celebrar apenas o passado, o grupo americano trouxe coisas da fase atual mescladas aos hits dos anos 1980. “Children of the Next Level”, “The Formation of Damnation” (que gerou um wall of death brutal, solicitado pelo vocalista Chuck Billy) e as duas há pouco citadas fizeram bonito em meio às colossais “Over the Wall”, “Into the Pit”, “The Hauting” e a dobradinha do The Gathering: a assassina “D.N.R. (Do Not Resuscitate)” e “3 Days in Darkness”.
Entrevistei Eric Peterson há algumas semanas, e ele ventilou a possibilidade de trazer algumas novidades para a América do Sul, como uma “Low” ou “Fall of Sipledome”, mas no fim das contas, presenciamos o setlist regular deles já há algum tempo.
Ninguém, todavia, é maluco de reclamar disso. Concluíram com “Into the Pit” e “Alone in the Dark”, sempre um arregaço musical, com Peterson e Alex Sklonic correndo e pulando feito malucos e mais jatos insanos de fogo. Além disso tudo, ver Steve DiGiorgio destilando técnica e agressividade com seu baixo é um deleite por si só.
Repertório – Testament:
- Rise Up
- The New Order
- The Pale King
- Children of the Next Level
- The Haunting
- D.N.R. (Do Not Resuscitate)
- 3 Days in Darkness
- WWIII
- The Formation of Damnation
- Over the Wall
- Into the Pit
- Alone in the Dark
Kreator traz o inferno para o festival
Se a energia foi elevada ao máximo logo no primeiro show do dia, o público chileno redefiniu o conceito de loucura e paixão pelo metal quando o Kreator subiu ao palco. O grande diferencial deles para os demais foi o fato de serem a única banda da noite a se apresentar completa ou com uma formação já consolidada.
Apesar do baixista Frédéric Leclercq estar no grupo há apenas quatro anos, o cara já se tornou um membro notório, por sua presença de palco e qualidade técnica acima da média. Muito melhor vê-lo aqui que com o deprimente Dragonforce.
Os alemães abriram com a furiosa “Hate Über Alles” (um clássico desde já), do mais recente e homônimo álbum, e emendaram então com as eternas “People of the Lie”, “Awakening of the Gods” (infelizmente, apenas a primeira parte), “Enemy of God”, “Phobia” e “Betrayer”. As rodas, gigantes, aumentaram ainda mais, e a fúria de ambos os lados era quase palpável.
Montando um setlist de maneira primorosa, organizaram o segundo bloco apenas com materiais mais recentes, da última década e pouco. Pegando as melhores de cada um dos quatro discos que compreendem este intervalo, mantiveram a atenção de todos, afinal, não há como passar incólume ou sequer pensar em sair para pegar uma cerveja e ir ao banheiro. A adorável “Satan Is Real”, a colérica “Hordes of Chaos (A Necrologue for the Elite)” e “666 – World Divided” soaram como bombas nucleares, assim como a espetacular “Phantom Antichrist”, antecedida pelo breve interlúdio “Mars Mantra”. Mais recente, “Strongest of the Strong” teve uma função similar àquela que “Voices of the Dead” tinha nos shows há quase duas décadas, por mais que elas não sejam parecidas entre si. O ponto aqui é que ambas são muito mais melódicas, quase acessíveis, e servem para um descanso sem perder o foco.
Para quem cresceu ouvindo o EP “Out of the Dark… Into the Light”, conferir “Terrible Certainty” executada com a mesma fúria de 35 anos atrás, foi emocionante. “Violent Revolution” (com um solo caótico de Mille Petrozza) e “Flag of Hate”, antecedida por um pedido de Petrozza para o público exaurir suas últimas energias ali, abriram caminho para a saideira, “Pleasure to Kill”, outra velharia de respeito, adornada por mais fogos que eram ejetados incessantemente. O calor e a música barulhenta trouxeram a sensação de estar no inferno para dentro da Movistar Arena.
Repertório – Kreator:
- Hate Über Alles
- People of the Lie
- Awakening of the Gods (trecho)
- Enemy of God
- Phobia
- Betrayer
- Satan Is Real
- Hordes of Chaos (A Necrologue for the Elite)
- 666 – World Divided
- Mars Mantra + Phantom Antichrist
- Strongest of the Strong
- Terrible Certainty
- The Patriarch + Violent Revolution
- Flag of Hate
- Pleasure to Kill
Finntroll: peso e descontração
Terminado o cast principal do The Metal Fest, ainda houve tempo para pular no Hell Stage e assistir o Finntroll, uma banda maluca de folk metal da Finlândia, que se apresenta ao vivo com uma caracterização bastante divertida, como fossem elfos ou algo assim.
Sem a pressão de estarem no palco principal, entregaram um show descontraído e bastante pesado, considerando o estilo adotado por eles. Entre algumas das favoritas do fãs, mandaram sons do mais recente álbum, “Vredesvävd”: “Att Döda Med En Sten”, “Mask”, “Ormfolk” e “Ylaren”.
Vale a viagem ao Chile
Todos os shows começaram no horário, exceto o Accept com dez minutos. O profissionalismo da organização foi tamanho que poderíamos atualizar o ditado “pontualidade britânica” para “pontualidade chilena”.
O The Metal Fest foi uma celebração de reais headbangers difícil de explicar em palavras. Uma experiência que precisa ser vivida e sentida no coração e na alma de qualquer um que tem o metal como lema de vida. Brutal, emocionante e inesquecível.
Comece a quebrar seu cofrinho aí, conte as moedas e planeje uma ida ao Chile para as vindouras edições do evento. Não tem como não sair de lá extasiado.
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