Em 1983, o Pink Floyd poderia estar comemorando o 10º aniversário de “The Dark Side of The Moon”, sua obra-prima; ainda colhendo os frutos do sucesso retumbante de “The Wall”, que acabara de ganhar uma versão cinematográfica no ano anterior; ou simplesmente vivendo a glória de ser a única banda entre os dinossauros do rock progressivo a se manter relevante na nova década sem mudanças drásticas em seu som.
No entanto, o prisma da época também oferecia feixes luminosos que apontavam para o lado obscuro da conjuntura particular do grupo. Pela primeira vez desde a saída de Syd Barrett em 1968, o Pink Floyd lidava com uma baixa na formação. O posto de tecladista ficou vago após Richard Wright ser sacado pelo baixista e vocalista Roger Waters em 1981. Internamente, Waters e o guitarrista/vocalista David Gilmour já viviam às turras, e o baterista Nick Mason se mostrava cada vez mais alijado do processo.
Para piorar o cenário, Roger encasquetou que o próximo álbum deveria partir de onde “The Wall” parou, aproveitando músicas já compostas anteriormente. E que traria um conceito envolvendo Guerra das Malvinas e a morte de seu pai.
Ou seja: seria, na visão dos demais integrantes, obsessivamente político e um tanto quanto individualista, pois continuaria a abordar traumas pessoais de sua infância. E o mais grave: cometeria o erro de requentar sobras do antecessor.
Ao jornalista e escritor britânico Mark Blake, autor do livro “Nos Bastidores do Pink Floyd” (2008), Gilmour ironizou:
“Se essas músicas não eram boas o suficiente para “The Wall”, por que elas seriam boas o suficiente agora?”
E acrescentou a David Fricke, da Rolling Stone, sobre essa fase da banda:
“Muito miserável. Até Roger diz que foi um período miserável – e foi ele quem o tornou assim, pelo menos na minha opinião.”
É nesse contexto que o Pink Floyd chega a “The Final Cut”, seu 12º álbum de estúdio. Lançado em 21 de março de 1983, foi o último com Roger Waters, o único sem Richard Wright e o que menos vendeu desde “Meddle” (1971). Um disco nascido sob o signo do fracasso – sequer houve turnê de divulgação – e que levou à ruptura definitiva no núcleo criativo da banda.
O sonho do pós-guerra
Roger Waters perdeu o pai pouco depois de nascer, com apenas cinco meses de idade. Eric Fletcher Waters morreu a serviço do exército britânico na Batalha de Anzio, em janeiro de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial.
No coração e na mente de Waters, o pai e demais soldados mortos em combate aos regimes totalitários do nazismo e do fascismo sacrificaram suas vidas em prol de um sonho: o de erigir um mundo de paz ao fim da guerra, em que a nova ordem mundial seria a harmonia entre as nações. A esse conceito, ele deu o nome de “the post war dream” (o sonho do pós-guerra).
Quando, em 1982, o Reino Unido, à época sob comando da primeira-ministra Margareth Thatcher, bombardeia uma navio da marinha da Argentina e dá início à Guerra das Malvinas, Waters sente como se seu pai, os militares que tombaram na Segunda Guerra Mundial e o povo britânico tivessem sido todos traídos.
Bingo! Estava pronto o roteiro de “The Final Cut”. O que antes fora imaginado como uma espécie de continuação de “The Wall” – inclusive, o nome inicial seria “Spare Bricks” (tijolos sobressalentes) – agora ganhava vida própria na forma de um disco conceitual baseado na Guerra das Malvinas.
Em “Nos Bastidores do Pink Floyd”, de Mark Blake, Waters explica:
“O ‘The Final Cut’ foi sobre como, com a introdução do estado de bem-estar social, sentimos que estávamos avançando para algo parecido com um país liberal em que todos cuidaríamos uns dos outros. Mas eu vi tudo isso ser eliminado, eu vi o retorno a uma sociedade quase dickensiana (de um grau de pobreza extrema) com Margareth Thatcher. Eu sentia que o governo britânico deveria ter buscado vias diplomáticas.”
O termo “The Post War Dream” também chegou a ser cogitado para o nome do álbum, mas acabou batizando somente a faixa que abre o trabalho. Nela, Waters se dirige diretamente a sua antagonista, “Maggie” (Margareth Thatcher): “Foi para isso que o papai morreu?”, “O que fizemos com a Inglaterra?”, “O que aconteceu com o sonho do pós-guerra?”, “Maggie, o que nós fizemos?”.
Conflito interno
Enquanto Reino Unido e Argentina mediam forças no Atlântico Sul, no campo de batalha do Pink Floyd o embate era entre Roger Waters e David Gilmour. E o que se viu prevalecer foi um massacre de autoridade do baixista sobre o guitarrista.
Roger Waters assina sozinho todas as 13 canções de “The Final Cut”. Para quem nunca foi muito afeito a cantar, ele surpreende fazendo o vocal principal em 12 delas – apenas em “Not Now John” divide a tarefa com David Gilmour.
Apesar do novo conceito surgido a partir da Guerra das Malvinas, musicalmente Waters não abriu mão de aproveitar composições remanescentes da época de “The Wall”. Ele desengavetou pelo menos seis delas: “Your Possible Pasts”, “One of the Few”, “The Hero’s Return”, “The Fletcher Memorial Home”, a faixa-título e, especialmente, “When the Tigers Broke Free”, que demanda explicação.
Composta em 1979, ela já havia sido recusada pelos outros integrantes, que alegaram ser uma canção pessoal demais. A letra narra exatamente a história da morte do pai de Waters. “When the Tigers Broke Free” foi vetada novamente em um primeiro momento e passou a constar no tracklist de “The Final Cut” somente a partir da reedição de 2004 do álbum.
Em 2000, David Gilmour negou que o motivo do conflito fosse necessariamente o conteúdo lírico, mas a qualidade das canções.
“Havia todo tipo de discussão sobre assuntos políticos, e eu não partilhava das visões dele. Mas nunca, jamais, quis ficar no caminho dele de expressar a história de ‘The Final Cut’. Eu simplesmente não achava que algumas das músicas estavam à altura.”
Sobre sua completa ausência no processo de composição, Gilmour admite que não se esforçou tanto para colaborar. Em “Nos Bastidores do Pink Floyd”, o guitarrista conta ao jornalista e escritor Mark Blake que tem culpa no cartório, mas volta a atacar com fogo amigo o material apresentado por Waters:
“Eu certamente sou culpado por ter sido preguiçoso. Havia momentos em que Roger dizia: ‘bem, o que você trouxe?’, e eu dizia: ‘então, eu não tenho nada; preciso de um tempo para gravar algumas ideias’. Existiu tudo isso e, anos depois, você olha para trás e diz: ‘é, ele tinha razão’. Mas ele não estava certo em querer colocar algumas músicas idiotas em ‘The Final Cut’.”
A falta de sintonia da dupla criativa do Floyd gerou, inevitavelmente, situações tragicômicas em que astros não se comunicam em estúdio. Waters gravava suas partes com o engenheiro de som Andy Canelle. Gilmour trabalhava exclusivamente com o produtor James Guthrie, que depois tinha a missão de juntar o material.
A contribuição do baterista Nick Mason foi ínfima, muitas vezes se resumindo apenas em tocar o que lhe era ordenado. Ray Cooper, que já trabalhara com Elton John, Paul McCartney, Eric Clapton e Rolling Stones, acrescentou percussões.
A tarefa de gravar os teclados ficou com Michael Kamen, maestro e compositor que já havia participado de “The Wall” e famoso pela parceria orquestral com o Metallica na década de 1990. No fim das contas, Gilmour foi excluído dos créditos de produção.
O corte final
Daryl Easlea, jornalista da revista especializada Prog, escreveu um longo artigo sobre “The Final Cut” em 2022. Ele diz que “o álbum tem poucos ganchos marcantes, nenhum momento comercial de destaque e nada dele foi tocado pelo Floyd ao vivo”. E acrescenta: “inicialmente, isso não freou o rolo compressor do Pink Floyd […], mas logo esse rolo compressor virou apenas um canivete”.
Difícil discordar de que esse seja realmente o lugar de “The Final Cut” na vasta discografia do Pink Floyd, apesar de, pelo menos, “Not Now John” e “The Fletcher Memorial Home” serem, sim, momentos de bastante relevo no cancioneiro da banda.
Porém, o próprio Roger Waters reconhece que a obra tem sérios problemas. Acusado muitas vezes de ser quase um disco solo do baixista, o álbum não viu a cor da estrada e dificilmente aparece entre os favoritos dos fãs.
Em 1984, sem realizarem um único show sequer para divulgá-lo, os integrantes já estavam ocupados com suas respectivas carreiras solo. No ano seguinte, Waters jogou a toalha e saiu do Pink Floyd para nunca mais voltar.
Em entrevista a Chris Salewicz em 1987, ele fez um balanço:
“O ‘The Final Cut’ foi absolutamente um tormento de se fazer, embora eu o tenha ouvido ultimamente e goste muito dele. Mas eu não gosto do modo que cantei nele. Você pode ouvir uma tensão louca correndo por toda parte. Como se eu estivesse tentando expressar algo, mas sendo impedido porque estava muito tenso. Foi uma época horrível. Estávamos todos brigando como cães e gatos. Finalmente estávamos percebendo – ou aceitando, se preferir – que não havia mais uma banda.
Ele vendeu três milhões de cópias (até 1987), o que não é muito para o Pink Floyd. Como consequência, David Gilmour saiu dizendo: ‘aí está, eu sabia que ele (Waters) estava errado o tempo todo’. Mas é absolutamente ridículo julgar um disco apenas pelas vendas. (…) De qualquer forma, um dia eu estava em uma quitanda e uma mulher de uns 40 anos veio até mim. Ela disse que achou o disco o mais comovente que já tinha ouvido. Seu pai também havia sido morto na Segunda Guerra Mundial. Eu voltei para o carro e dirigi para casa pensando: ‘isso já é bom o bastante’.”
Por fim, “The Final Cut” levou esse nome em referência à famosa tragédia “Júlio César”, de William Shakespeare. Na peça, a traição de Brutus, que assassinou César a facadas, é descrita como “the most unkindest cut of all” (o corte mais indelicado de todos). Uma clara metáfora a como Roger Waters se sentia.
Traído por seu próprio país, por sua própria banda.
Pink Floyd – “The Final Cut”
- Lançado em 21 de março de 1983 pela Harvest / Columbia
- Produzido por Roger Waters, James Guthrie e Michael Kamen
Faixas:
- The Post War Dream
- Your Possible Pasts
- One of the Few
- When the Tigers Broke Free
- The Hero’s Return
- The Gunner’s Dream
- Paranoid Eyes
- Get Your Filthy Hands Off My Desert
- The Fletcher Memorial Home
- Southampton Dock
- The Final Cut
- Not Now John
- Two Suns in the Sunset
Músicos:
- Roger Waters (voz; baixo em todas as faixas exceto a 7; violão nas faixas 2, 3, 4, 6, 7, 9, 10, 11 e 12; sintetizadores nas faixas 3, 4 e 11; guitarra de 12 cordas na faixa 11; efeitos de fita)
- David Gilmour (guitarra solo; guitarra base nas faixas 1, 2, 4, 5, 8, 10, 11 e 12; co-vocal na faixa 12, backing vocals adicionais)
- Nick Mason (bateria nas faixas 1, 2, 4, 5, 8, 10 e 11; efeitos de fita)
Músicos adicionais:
- Michael Kamen (piano nas faixas 5, 6, 8, 9, 10 e 12; piano elétrico nas faixas 2 e 5; harmônio nas faixas 1 e 10)
- Andy Bown (órgão Hammond nas faixas 2, 6, 11 e 12, piano na faixa 5, piano elétrico na faixa 4)
- Ray Cooper (percussão na faixa 6)
- Andy Newmark (bateria na faixa 12)
- Raphael Ravenscroft (saxofone tenor nas faixas 5 e 12)
- Doreen Chanter (backing vocals na faixa 11)
- Irene Chanter (backing vocals na faixa 11)
- National Philharmonic Orchestra, regida e arranjada por Michael Kamen (faixas 1, 5, 6, 7, 8, 9 e 10)
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Cada músico com seu ponto de vista. e cada fã também. Eu gosto muito do disco.
Comprei logo que foi lançado e, na época, eu escutava quase que diariamente.
Engraçado, pra mim, o melhor disco do PF, ainda que eu não seja fã do Waters.
Por mais que esse álbum não é um dos mais favoritos da banda eu gosto bastante dele, principalmente da faixa tema “The final cut”.
Eu queria muito que a banda tivesse feito um tour dela.
Minha vida com Pink Floyd começou com esse e The Wall, talvez por isso gosto tanto dele, mas não consigo escolher um melhor rsrs gosto de todos anteriores e do The Pros and Cons of Hitch Hiking, o próximo rs Reza a lenda que ele chamou Clapton pra tocar, viu que não precisava do Gilmour, montou um show cheio de atuações como no The Wall e The Final Cut foi o último dele no Pink Floyd, gosto muito da carreira solo, mas foi paia acabar ali, pelo menos foi um belíssimo ponto final.
E a dúvida do que seria When the Tigers Broke Free me acompanhou por anos desde que a ouvi no filme The Wall rsrs
é um disco sem brilho musical, mas comovente liricamente. havia um desespero expresso em cada parte, que retratava desde a crise ambiental até a iminência da guerra nuclear. Roger sempre foi um letrista sensível, por isso a relevância do álbum também.