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John Cale ressurge indomável em “Mercy”, primeiro disco de inéditas em uma década

Aos 80 anos, cofundador do Velvet Underground dispensa "piedade" artística e segue inquieto, acompanhado por convidados que você não conhece (mas deveria)

Esperar o que de quem foi expulso do Velvet Underground por excesso de experimentalismo? No fim de 1968, Lou Reed já queria trilhar caminhos mais acessíveis. John Cale, por sua vez, pretendia gravar o próximo álbum da banda com os amplificadores debaixo d’água!

A vida e obra de Cale sempre flertaram com o risco. Não seria na velhice que ele faria as pazes com a obediência. Aos 80 anos, o galês ressurge indomável, uma vez mais, agora quebrando hiato de uma década sem lançar um álbum de inéditas. O nome do novo delito? “Mercy”.

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Mas se a palavra sugere “misericórdia”, “compaixão” ou “clemência”, o que o inquieto octogenário faz é o oposto. Ele dispensa “piedade” artística, seja na forma ou no conteúdo.

“I’m not making excuses; I’m not making amends” (“Eu não estou dando desculpas; eu não vou fazer as pazes”), avisa Cale em “Everlasting Days”, um dos destaques do disco.

Voltando a compor

Lançado em 20 de janeiro pela Double Six Records, subsidiária da britânica Domino, “Mercy” é o 17º álbum solo de John Cale e marca seu retorno às composições. Isso porque o trabalho anterior, “M:FANS” (2016), se resumiu a releituras de canções escritas por ele na década de 1980.

Cale, portanto, não lançava material inédito desde “Shifty Adventures in Nookie Wood” (2012). De lá para cá, muito se passou. Inclusive a morte de Lou Reed, em 2013. Teria isso lhe impactado de alguma forma? É provável – e “Mercy” dá algumas pistas.

O disco é melancólico, frio, cinzento. Poucos momentos são capazes de alterar a cadência predominantemente arrastada de boa parte do material. Não se trata necessariamente de um álbum triste, mas emotivo. E cabe ao ouvinte interpretar o leque de emoções transmitidas.

Versátil, Cale transita por diversos instrumentos ao longo das 12 faixas: baixo, bateria, piano e sintetizadores, em maior, e guitarra, violão e teclado, em menor grau. Sua marca indelével, porém, é a voz premonitória. É ela que dá o tom num trabalho que, liricamente, não se furta a abordar temas como pandemia, mudanças climáticas, Donald Trump e o recrudescimento da extrema direita.

Nova vanguarda do pop

John Cale não está sozinho nessa empreitada. Para se deslocar com desenvoltura por gêneros como art rock, eletrônico, neo soul e uma infinidade de ramifinações do pop (dream, synth, chamber), ele recorre a convidados ilustres que ninguém conhece, mas deveria.

Gente que compõe uma nova vanguarda da música pop, como Natalie Laura Mering (aka Weyes Blood), Animal Collective, Laurel Halo, Tei Shi e Sylvan Esso.

Essas participações proporcionam alguns dos melhores momentos de “Mercy”, como a supracitada “Everlasting Days” (Animal Collective), “Story of Blood” (Weyes Blood) e a faixa-título, que conta com Laurel Halo, uma das artistas mais inventivas da música na última década.

Cale se mostra não só antenado ao cenário atual como rechaça viver preso à bolha retrô, alimentada por saudosismo. Experimentar ainda é sua predileção.

O ápice de “Mercy” vem com “Night Crawling”, retrato fiel da Nova York libidinosa que o Velvet Underground ajudou a personificar. Um R&B eletrônico que entrega o melhor groove do álbum e cujo videoclipe, em formato de animação, é estrelado por David Bowie e o próprio Cale numa noite de peregrinação pelos inferninhos de Manhattan.

O canto do cisne?

Considerando diversos fatores, desde a promoção do disco até a forma como se consome música na era do streaming, é improvável que “Mercy” gere grande impacto ou tenha a visibilidade que merece. A longa duração – 71 minutos – e algumas faixas pouco inspiradas – “Marilyn Monroe’s Legs”, “The Legal Status of Ice” – jogam contra.

Não estamos diante de um clássico, como os dois discos de John Cale com o Velvet, ou de uma obra-prima de sua carreira solo, como “Paris 1919”, lançado em 1973, mas de um trabalho que reitera a relevância de quem soube envelhecer com dignidade.

E que pode ter protagonizado seu ato final, sem jamais mendigar nossa caridade.

Ouça “Mercy” a seguir, via Spotify, ou clique aqui para conferir em outras plataformas digitais.

John Cale – “Mercy”

  1. Mercy
  2. Marilyn Monroe’s Legs (Beauty Elsewhere)
  3. Noise of You
  4. Story of Blood
  5. Time Stands Still
  6. Moonstruck (Nico’s Song)
  7. Everlasting Days
  8. Night Crawling
  9. Not the End of the World
  10. The Legal Status of Ice
  11. I Know You’re Happy
  12. Out Your Window

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Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É repórter do Globo Esporte e atua no jornalismo esportivo desde 2008. Colecionador de discos e melômano, também escreve sobre música e já colaborou para veículos como Collectors Room e Rock Brigade. Atualmente revisa livros da editora Estética Torta e é editor do Morbus Zine, dedicado ao death metal e grindcore.

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