Ao fim da década de 1980, a Cortina de Ferro separando o bloco comunista do Ocidente estava estremecendo. A União Soviética passou por um processo de abertura conhecido como glasnost. Cada vez mais, a cultura ocidental podia adentrar os países de maneira legal, porém controlada.
A culminação desse processo foi quando o maior expoente cultural dos excessos ocidentais pode se apresentar no coração do comunismo. Essa é a história do Moscow Music Peace Festival, festival ocorrido nos dias 12 e 13 de agosto de 1989, e como o hard rock daquele período contribuiu, de certa forma, para a queda da URSS.
Balão de teste
Tudo começou por causa de uma declaração em uma festa. Mikhail Gorbachev, líder da União Soviética, ajudou a iniciar um período em que o bloco comunista se abriu mais não só ao Ocidente, mas a si próprio. Governos se tornaram mais transparentes e menos repressivos, representados por uma declaração feita por ele informalmente:
“Tudo que não é proibido por lei é permitido.”
Considerando o histórico de censura do país, um empresário chamado Stas Namin resolveu testar a veracidade da declaração. Namin era neto de Anastas Mikoyan, um dos políticos mais importantes da história da União Soviética, e fez sua carreira na indústria musical local como um dos fundadores do rock russo, depois produzindo bandas locais e promovendo turnês internacionais dessas.
Namin sabia da fome do povo russo por rock e da oportunidade disponível para organizar um festival com artistas ocidentais. Por isso, se pôs a explorar todas as avenidas possíveis, como afirmou ao site Rockcult:
“Todos os pormenores legais foram uma bagunça. ninguém tinha a menor ideia do que fazer. Então eu me aproveitei daquela declaração.”
Entretanto, para fazer desse plano uma realidade, é necessário aliados poderosos do outro lado da Cortina de Ferro e uma razão para organizar um festival. Entra em cena Doc McGhee.
Um dos empresários mais poderosos do rock, McGhee tinha clientes como Bon Jovi, Skid Row e Mötley Crüe. Ele também era o fundador de uma organização de caridade chamada Make a Difference Foundation, dedicada ao tratamento de alcoolismo e vício em drogas.
A União Soviética historicamente tinha um problema sério de alcoolismo em sua população e os métodos de tratamento para viciados em drogas ainda consistiam em terapia de eletrochoque. Logo, a fundação de Doc propôs, junto com o festival promovendo sobriedade, levar profissionais de saúde qualificados para treinar médicos locais em técnicas mais modernas.
Território desconhecido
Doc McGhee e Stas Namin se juntaram e montaram um lineup de dar inveja a qualquer festival do Ocidente. Bon Jovi, Mötley Crüe, Skid Row, Ozzy Osbourne, Scorpions e Cinderella representando bandas estrangeiras. Gorky Park, Nuance e Brigada S cumpriram a cota local.
A imprensa do regime detestou a ideia e previu o fracasso do festival, afirmando que a juventude soviética preferia música socialista ao invés do heavy metal decadente.
Os próprios organizadores do festival temiam fracasso por vários motivos. Os ingressos eram mais caros que o comum na Rússia – 15 rublos. Fora a possibilidade de tudo ser proibido a qualquer momento pelas autoridades.
Já as bandas demonstravam temores mais associados à percepção da União Soviética no Ocidente, como Jon Bon Jovi descreveu ao Rockcult:
“Eu achava que a ideia dos russos sobre a América era muito distorcida, assim como a minha era da Rússia. Eu imaginava tanques passando pelas ruas, bandidos vendendo esteróides em cada esquina, que na Rússia crianças tomavam leite e esteróides para se tornarem atletas olímpicos.”
Havia uma preocupação também com a falta de suprimentos e equipamentos para as bandas, o que fez uma operação enorme ser montada e efetuada três semanas antes do festival.
Em um documentário sobre os shows feito por Yury Dud, Doc McGhee descreveu a dimensão da bagagem levada:
“Nós levamos gelo da Suécia. Nós levamos nossa própria comida, colheres, garfos, copos. Não esperávamos encontrar nada disso na Rússia.”
Condições favoráveis
Na realidade, o que eles encontraram na União Soviética era um ambiente com um contingente considerável de fãs, além de condições extremamente prazerosas para roqueiros interessados em farrear, mesmo contra as regras impostas.
O Moscow Music Peace Festival tinha o objetivo de promover uma mensagem de sobriedade, e por isso todo álcool e drogas eram proibidos. McGhee pessoalmente supervisionou o descarte de tudo antes de chegarem ao hotel, mas mesmo assim não tinha como combater um problema grave, descrito ao Russia Beyond por Sebastian Bach, vocalista do Skid Row:
“Nós não conseguimos acreditar o quão barata a vodka era. Era tipo dois dólares a garrafa. Então a gente não comia, só bebia.”
Moscow Music Peace Festival lotado
Por mais que a imprensa local apostasse na fidelidade da juventude ao regime, a realidade se mostrou diferente. Mais de 180 mil pessoas compareceram ao festival de dois dias, 12 e 13 de agosto de 1989, no estádio Central Lenin, hoje chamado Luzhniki. Os shows também foram transmitidos ao vivo para 59 países, incluindo os Estados Unidos pela MTV.
Ao Rockcult, Stas Namin resumiu a importância do Moscow Music Peace Festival:
“Foi um momento tão importante para a juventude. Ninguém conseguia acreditar que aconteceria, e quando viram tudo ocorrer, sem ninguém ser preso, nenhum problema… Tudo era simples, humano e com uma vibe forte.”
A dimensão do festival e do momento histórico não foram suficientes, contudo, para impedir a tradicional briga de egos entre os artistas. A maioria das bandas tocando no festival achava que Doc McGhee estava mostrando tratamento preferencial ao Bon Jovi – especialmente o Mötley Crüe, que reclamava por apenas a banda de Jon Bon Jovi ter sido autorizada a usar pirotecnia.
O resultado disso acabou sendo a demissão de McGhee como empresário do Crüe após os shows. A dispensa, claro, ocorreu à moda da casa: o baterista Tommy Lee deu um soco na cara do profissional e disse que ele poderia gerenciar o The Chipmunks, pois não trabalharia mais com sua banda.
Ironicamente, McGhee foi dispensado pelo Bon Jovi pouco tempo depois, em 1991. Tornou-se empresário do Kiss em 1995 e dos mascarados não desgrudou mais.
Ventos da mudança
Uma banda que aproveitou muito o Moscow Music Peace Festival foi o Scorpions. O grupo alemão era veterano de fazer turnês na União Soviética e já tinha público cativo. Mesmo assim, a visão de centenas de milhares de pessoas em um estádio podendo aproveitar música livres do fardo da Guerra Fria motivou a banda a compor um de seus maiores hits: “Wind of Change”.
Em uma entrevista para a revista alemã Rocks em 2014, o vocalista do Scorpions, Klausn Meine, contou a inspiração por trás da música:
“A ideia me veio na União Soviética quando estava sentado no Gorky Park Center uma noite de verão, olhando para o Rio Moscou. A canção é a minha interpretação pessoal do que havia acontecido com o mundo nos anos anteriores.”
A canção, lançada em 1990 no álbum “Crazy World”, acabou se tornando um hino do fim da Guerra Fria. Seu lançamento como single no ano seguinte antecipou uma última tentativa da linha dura soviética de dar um golpe, cujo fracasso causou o fim da URSS.
Recentemente, o podcast “Wind of Change” sugeriu que tudo isso, desde o festival à própria canção, foi parte de um plano elaborado pela CIA para desestabilizar o regime soviético. Quando Meine foi perguntado sobre essa possibilidade pelo radialista Eddie Trunk, ele falou:
“É uma ideia fascinante, e é uma ideia divertida, mas não é verdade.”
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