Ao acompanhar a sessão de imprensa do filme “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”, a responsável pela cabine da distribuidora Diamond Films fez um alerta quanto ao título: é “Tudo em Todo ‘o’ Lugar ao Mesmo Tempo”. Algumas pessoas podem estar comendo a letra “o” ao citar o longa dirigido e roteirizado por Daniel Scheinert e Daniel Kwan, os “Daniels”.
Assim que terminei de assistir a obra, pude entender o preciosismo em não permitir que nenhuma letra sequer faltasse. Estávamos diante de um filme que entrará para a história do cinema. E como a história não permite erros, esse título, apesar de grande e diferente, precisa ser dito corretamente em cada canto do planeta – seja no original “Everything Everywhere All at Once” ou em suas traduções.
*Este texto não contém spoilers.
Enredo que celebra a criatividade
“Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” apresenta Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma imigrante chinesa que luta para conseguir se manter nos Estados Unidos. Ela cuida do pai idoso, tem um casamento em crise, enfrenta problemas com a Receita Federal e ainda lida com uma crise com sua filha. Por tudo isso, é uma pessoa amarga e dura, sem capacidade de demonstrar sentimentos.
Parece um drama familiar comum envolvendo imigrantes, certo? Por obra da criatividade dos “Daniels”, o enredo toma contornos filosóficos e ganha a tela ao ser contado através do tão falado multiverso.
Evelyn recebe a visita da versão de seu marido vinda de outra realidade. Rapidamente instruída, a mulher é alertada de que o multiverso está em perigo e somente ela poderia salvá-lo. Começa aí a avassaladora experiência de arte – o verdadeiro “multiverso da loucura” prometido por “Doutor Estranho 2”.
Ainda acredito que o Universo Cinematográfico Marvel (UCM) oferecerá uma grande aventura dentro da ideia de multiverso. Por enquanto, todavia, a casa do Homem de Ferro deveria se esconder de vergonha. Com orçamento enxuto de US$ 25 milhões, os “Daniels” entregaram uma obra sem erros valendo-se de um conceito até então dado apenas para filmes de heróis.
“Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” é um filme alucinante e fora de si. Não há medo de ir além na sua loucura e criatividade. E surpreende justamente por não ser bagunçado ou sem propósito. A insanidade em tela, aqui, foi traduzida em obra de arte e ainda nos presenteia com uma mensagem de vida.
E volto a dizer: com um orçamento enxuto de US$ 25 milhões, que, para a realidade do mercado americano, é “dinheiro de filme independente”.
Por que o orçamento é assunto
Este longa é mais um lançamento do estúdio A24, responsável por obras como “O Farol” (2019), “Joias Brutas” (2019), “Hereditário” (2018) e “Moonlight” (2016) – este último, vencedor do Oscar –, entre vários outros. Para quem vê cinema como arte, como a produtora citada, um orçamento de US$ 25 milhões é mais do que o suficiente.
A A24 acredita no cinema feito com maestria, em roteiros desenvolvidos com perfeição e interpretações vindas de um ponto específico da verdade de um ator, como se estivéssemos diante de uma peça Shakespeariana. Foi o que viabilizou uma obra que, em tese, precisaria de bem mais dinheiro para tornar-se realidade.
O real multiverso da loucura
Um dos grandes trunfos de “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” é mostrar o conceito de multiverso através apenas de diálogos, elementos rotineiros, ideias absurdas, jogos de câmera e visões de fotografia. A montagem também é especial: nada de megalomania, apenas criatividade em diversos aspectos técnicos.
O teatro ensina que é sempre possível trazer elementos simples para ajudar a contar uma história, especialmente quando se falta investimento. Em meio à era dos grandes orçamentos, tal ideia ficou um pouco esquecida no cinema contemporâneo. A tecnologia permite tornar real tudo o que se sonha. Mas quando a criatividade consegue o mesmo efeito, é lindo de se ver.
O coração máximo de “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”
Michelle Yeoh está para o cinema chinês, principalmente no segmento de artes marciais, assim como Fernanda Montenegro está para o brasileiro. Uma das lendas da área no continente asiático, ela alcançou rapidamente o sucesso mundial, destacando-se no histórico “O Tigre e o Dragão” (2000) e sendo até mesmo uma bond girl em “007: O Amanhã Nunca Morre” (1997).
Em “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”, a atriz de 59 anos voltou a entregar boa performance. Oferece de tudo: drama, comédia, lutas, tempos, ritmo, agressividade, vazio, coração, tudo. Como a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas tem visto esse tipo de obra de forma menos negativa, não dá para imaginar outra pessoa recebendo o Oscar de Melhor Atriz na próxima premiação – ainda que, evidentemente, outras grandes interpretações apareçam ao público nos próximos meses.
O ator Ke Huy Quan também nos presenteia com uma performance deliciosa como o marido Waymond Wang, especialmente nas mudanças entre um universo e outro. Quan, vale lembra, vale lembra, é mestre em artes marciais e se consagrou ao interpretar ainda criança o pequeno Dado em “Os Goonies” (1985) e o divertido Short Round em “Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984).
Outro nome destaque no elenco é Jamie Lee Curtis, que traz Deirdre, implacável funcionária da Receita Federal. “Primeira-dama” dos filmes de terror, Curtis dispensa todo e qualquer ego ao assumir o próprio corpo no filme e surpreende a ponto de nos fazer implorar por mais bons papéis a ela.
Rumo à glória eterna
Em território nacional, “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” estreia no próximo dia 23 de junho, mas foi disponibilizado em pré-estreia a partir desta quinta-feira (16). No exterior, é exibido desde março – e já conquistou o maior faturamento da história do estúdio A23, com US$ 83,5 milhões em bilheteria.
Vale a pena assisti-lo. Da loucura à criatividade, trata-se de uma obra histórica para o cinema.
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