O achado arqueológico que inspirou “Paêbirú”, o mais caro disco brasileiro

Álbum lançado em 1975 por Lula Côrtes e Zé Ramalho deixou status de renegado e tornou-se cultuado a ponto de virar raridade em vinil

No coração da caatinga paraibana, na Pedra do Ingá, um monumento pré-histórico foi descoberto por soldados no final do século 16. Contendo caracteres nunca antes vistos esculpidos num painel de rocha cristalina, seu significado exato nunca foi desvendado. O mistério persiste até hoje, mas nos anos 70 motivou os artistas Lula Côrtes e Zé Ramalho a lançarem um dos discos mais raros e valiosos da história do Brasil: “Paêbirú”.

Uma viagem e tanto na caatinga

Côrtes e Ramalho viram o monumento pela primeira vez em 1972. Na ocasião, foram guiados pelo artista paraibano Raul Córdula.

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Pedra do Ingá, em foto de Claudio JJ / CC BY-SA 4.0

Maravilhados com a beleza e o mistério, além de uma dose considerável de cogumelos psicodélicos, os dois músicos – recém-apresentados e já formando uma amizade forte – começaram a tramar uma maneira de fazer um trabalho homenageando a remota ancestralidade brasileira.

Em 1973, Lula Côrtes lançaria seu disco de estreia, “Satwa”, em parceria com o violonista Lailson de Holanda. O grande chamariz sonoro do trabalho é o uso por parte de Lula de um tricórdio, uma espécie de cítara popular trazida por ele do Marrocos.

A experiência desse álbum impulsionou a confiança do músico paraibano, que resolveu ir a fundo no projeto com Ramalho e os dois se puseram a pesquisar as interpretações locais, o folclore e os mitos em volta do monumento.

Nessa busca, se depararam com índios cariris que demonstravam em sua música uma fusão de cultura africana com as sonoridades nativas. E uma figura mitológica foi aparecendo entre os relatos deles: Sumé, uma entidade que teria transmitido conhecimento ao povo antes da chegada dos europeus.

Numa matéria da Rolling Stone, Lula Côrtes comenta sobre a presença de Sumé na região:

“Todos os indícios levavam a Sumé. Até as palmeiras da região, por lá, são chamadas de ‘sumalenses’.”

A partir de registros arqueológicos, os dois músicos teorizaram a existência de um caminho místico que partia de São Tomé das Letras (onde existem registros da mesma escrita pré-histórica traçada na Pedra do Ingá) e conduzia até Machu Picchu, no Peru.

A crença indígena acredita que os monumentos são rastros deixados por Sumé após sua expulsão daquelas terras por guerreiros tupinambás. Foi nessa peregrinação que Sumé criou “Peabirú”, que traduzido do tupi-guarani se revela “O Caminho da Montanha do Sol”.

Como transformar a lenda em música

Feita a pesquisa, Lula Côrtes e Zé Ramalho se puseram a elaborar o álbum, intitulado “Paêbirú”. O vinil duplo é separado de maneira que cada lado simboliza um dos quatro elementos – Água, Ar, Terra e Fogo – com a parte musical evocando as características de cada um. Entre as influências, havia uma presença forte de T. Rex, Crosby Stills and Nash e Captain Beefheart, este último sinalizando talvez os rumos mais experimentais do disco.

O lado “Terra” é marcado por percussão, “Ar” por harpas e sopros, “Água” por cantos africanos – com direito a louvações a Iemanjá – e “Fogo” por rock psicodélico. O disco em meio a isso também é marcado pelo uso de onomatopeias, conversas e gravações de riachos. Entretanto, a característica que reina acima de tudo em “Paêbirú” é a construção de uma sonoridade psicodélica verdadeiramente brasileira, casando música indígena, africana e regional do Nordeste.

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A cineasta Kátia Mesel, companheira de Côrtes na época, teve papel ativo na produção do disco, fazendo o design do encarte elaborado contando a lenda de Sumé e do caminho, além de servir como produtora executiva do álbum. Em matéria da Rolling Stone, ela comentou sobre os desafios relacionados às limitações do estúdio:

“Num estúdio de dois canais, baby? Era o playback do playback do playback! A gente se consolava: ‘se os Stones gravaram na Jamaica em dois canais, por que a gente não?’ Em ‘Trilha de Sumé’, Alceu Valença toca pente com papel celofane. [O disco] tem desses requintes.”

Assista ao documentário “Nas paredes da pedra encantada”, sobre o álbum, dirigido por Cristiano Bastos e Leonardo Bomfim e lançado pela Monstro Discos.

Por que tão valioso?

Embora não tenha feito grande sucesso na época de seu lançamento, “Paêbirú” adquiriu seu status como relíquia através da boa e velha máxima do mercado de demanda ser muito maior que a oferta. Da tiragem original de 1,3 mil cópias, só sobraram 300 depois que uma enchente do rio Capibaribe em 1975 alagou a sede da gravadora Rozenblit e destruiu mil desses exemplares.

Helio Rozenblit, fundador da gravadora e produtor de “Paêbiru”, detalhou à Folha de S.Paulo o dano dessa enchente à tiragem:

“Toda a primeira tiragem do ‘Paêbirú’, com exceção de amostras entregues aos artistas, foram inutilizadas, juntamente com as madres e matrizes. As fitas foram salvas da água por estarem no alto das estantes de aço do nosso arquivo.”

Com o tempo, a lenda do disco foi crescendo graças às pessoas afortunadas de terem conseguido uma cópia na época do lançamento, a ponto de fazer o vinil da tiragem original custar até R$ 10 mil – mais valioso até que “Louco Por Você”, primeiro disco de Roberto Carlos renegado pelo cantor.

Em 2019, a Polysom finalmente reeditou o disco de forma oficial, a partir das fitas salvas por estarem no alto das estantes. As cópias originais, entretanto, continuam valendo uma fortuna.

Lula Côrtes e Zé Ramalho – “Paêbirú”

Lado Terra

  1. Trilha de Sumé
  2. Culto à Terra
  3. Bailado das Muscarias

Lado Ar

  1. Harpa dos Ares
  2. Não Existe Molhado Igual ao Pranto
  3. Omm

Lado Fogo

  1. Raga dos Raios
  2. Nas Paredes da Pedra Encantada, Os Segredos Talhados Por Sumé
  3. Maracás de Fogo

Lado Água

  1. Louvação à Iemanjá
  2. Regato da montanha
  3. Pedra Tempo Animal
  4. Sumé

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

1 COMENTÁRIO

  1. pedro a master não se perdeu na inundação. está nos arquivos da comdil a enpresa que assumiu on acervo da rozenblit. Mais caro do que o Paêbirú e o compacto dos mutantes quando ainda se chamava O’Seis, de 1966. E muito mais raro é o Rosa de Sangue de Lula Côrtes, de que só foram fabricadas meia centena de discos.Nem foi lançado.

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