No coração da caatinga paraibana, na Pedra do Ingá, um monumento pré-histórico foi descoberto por soldados no final do século 16. Contendo caracteres nunca antes vistos esculpidos num painel de rocha cristalina, seu significado exato nunca foi desvendado. O mistério persiste até hoje, mas nos anos 70 motivou os artistas Lula Côrtes e Zé Ramalho a lançarem um dos discos mais raros e valiosos da história do Brasil: “Paêbirú”.
Uma viagem e tanto na caatinga
Côrtes e Ramalho viram o monumento pela primeira vez em 1972. Na ocasião, foram guiados pelo artista paraibano Raul Córdula.
Maravilhados com a beleza e o mistério, além de uma dose considerável de cogumelos psicodélicos, os dois músicos – recém-apresentados e já formando uma amizade forte – começaram a tramar uma maneira de fazer um trabalho homenageando a remota ancestralidade brasileira.
Em 1973, Lula Côrtes lançaria seu disco de estreia, “Satwa”, em parceria com o violonista Lailson de Holanda. O grande chamariz sonoro do trabalho é o uso por parte de Lula de um tricórdio, uma espécie de cítara popular trazida por ele do Marrocos.
A experiência desse álbum impulsionou a confiança do músico paraibano, que resolveu ir a fundo no projeto com Ramalho e os dois se puseram a pesquisar as interpretações locais, o folclore e os mitos em volta do monumento.
Nessa busca, se depararam com índios cariris que demonstravam em sua música uma fusão de cultura africana com as sonoridades nativas. E uma figura mitológica foi aparecendo entre os relatos deles: Sumé, uma entidade que teria transmitido conhecimento ao povo antes da chegada dos europeus.
Numa matéria da Rolling Stone, Lula Côrtes comenta sobre a presença de Sumé na região:
“Todos os indícios levavam a Sumé. Até as palmeiras da região, por lá, são chamadas de ‘sumalenses’.”
A partir de registros arqueológicos, os dois músicos teorizaram a existência de um caminho místico que partia de São Tomé das Letras (onde existem registros da mesma escrita pré-histórica traçada na Pedra do Ingá) e conduzia até Machu Picchu, no Peru.
A crença indígena acredita que os monumentos são rastros deixados por Sumé após sua expulsão daquelas terras por guerreiros tupinambás. Foi nessa peregrinação que Sumé criou “Peabirú”, que traduzido do tupi-guarani se revela “O Caminho da Montanha do Sol”.
Como transformar a lenda em música
Feita a pesquisa, Lula Côrtes e Zé Ramalho se puseram a elaborar o álbum, intitulado “Paêbirú”. O vinil duplo é separado de maneira que cada lado simboliza um dos quatro elementos – Água, Ar, Terra e Fogo – com a parte musical evocando as características de cada um. Entre as influências, havia uma presença forte de T. Rex, Crosby Stills and Nash e Captain Beefheart, este último sinalizando talvez os rumos mais experimentais do disco.
O lado “Terra” é marcado por percussão, “Ar” por harpas e sopros, “Água” por cantos africanos – com direito a louvações a Iemanjá – e “Fogo” por rock psicodélico. O disco em meio a isso também é marcado pelo uso de onomatopeias, conversas e gravações de riachos. Entretanto, a característica que reina acima de tudo em “Paêbirú” é a construção de uma sonoridade psicodélica verdadeiramente brasileira, casando música indígena, africana e regional do Nordeste.
A cineasta Kátia Mesel, companheira de Côrtes na época, teve papel ativo na produção do disco, fazendo o design do encarte elaborado contando a lenda de Sumé e do caminho, além de servir como produtora executiva do álbum. Em matéria da Rolling Stone, ela comentou sobre os desafios relacionados às limitações do estúdio:
“Num estúdio de dois canais, baby? Era o playback do playback do playback! A gente se consolava: ‘se os Stones gravaram na Jamaica em dois canais, por que a gente não?’ Em ‘Trilha de Sumé’, Alceu Valença toca pente com papel celofane. [O disco] tem desses requintes.”
Assista ao documentário “Nas paredes da pedra encantada”, sobre o álbum, dirigido por Cristiano Bastos e Leonardo Bomfim e lançado pela Monstro Discos.
Por que tão valioso?
Embora não tenha feito grande sucesso na época de seu lançamento, “Paêbirú” adquiriu seu status como relíquia através da boa e velha máxima do mercado de demanda ser muito maior que a oferta. Da tiragem original de 1,3 mil cópias, só sobraram 300 depois que uma enchente do rio Capibaribe em 1975 alagou a sede da gravadora Rozenblit e destruiu mil desses exemplares.
Helio Rozenblit, fundador da gravadora e produtor de “Paêbiru”, detalhou à Folha de S.Paulo o dano dessa enchente à tiragem:
“Toda a primeira tiragem do ‘Paêbirú’, com exceção de amostras entregues aos artistas, foram inutilizadas, juntamente com as madres e matrizes. As fitas foram salvas da água por estarem no alto das estantes de aço do nosso arquivo.”
Com o tempo, a lenda do disco foi crescendo graças às pessoas afortunadas de terem conseguido uma cópia na época do lançamento, a ponto de fazer o vinil da tiragem original custar até R$ 10 mil – mais valioso até que “Louco Por Você”, primeiro disco de Roberto Carlos renegado pelo cantor.
Em 2019, a Polysom finalmente reeditou o disco de forma oficial, a partir das fitas salvas por estarem no alto das estantes. As cópias originais, entretanto, continuam valendo uma fortuna.
Lula Côrtes e Zé Ramalho – “Paêbirú”
Lado Terra
- Trilha de Sumé
- Culto à Terra
- Bailado das Muscarias
Lado Ar
- Harpa dos Ares
- Não Existe Molhado Igual ao Pranto
- Omm
Lado Fogo
- Raga dos Raios
- Nas Paredes da Pedra Encantada, Os Segredos Talhados Por Sumé
- Maracás de Fogo
Lado Água
- Louvação à Iemanjá
- Regato da montanha
- Pedra Tempo Animal
- Sumé
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pedro a master não se perdeu na inundação. está nos arquivos da comdil a enpresa que assumiu on acervo da rozenblit. Mais caro do que o Paêbirú e o compacto dos mutantes quando ainda se chamava O’Seis, de 1966. E muito mais raro é o Rosa de Sangue de Lula Côrtes, de que só foram fabricadas meia centena de discos.Nem foi lançado.